Os pobres sempre os tendes convosco

Sermão pelo Rev. Martin Pryke

adaptado por C.R.N.

 

Porque os pobres sempre os tendes convosco,
mas a Mim nem sempre Me tendes


João 12:8

Lemos no evangelho de João que o Senhor vinha de Jericó em direção a Jerusalém nesta que seria sua última jornada, já perto da páscoa. Ele tinha de passar pelo Monte das Oliveiras, onde ficava a aldeia de Betânia. Ali moravam Lázaro, aquele que tinha sido ressuscitado dos mortos, e suas irmãs Marta e Maria. Eles O aguardavam. O Senhor Jesus veio, e assentou‑se para cear com eles. "Então Maria, tomando um arratel de ungüento de nardo puro, de muito preço, ungiu os pés de Jesus, e enxugou-lhe os pés com os seus cabelos; e encheu-se a casa do cheiro do ungüento" (João 12:3).
Este ato notável de devoção ao Senhor era mais do que simples reconhecimento: era um ato de culto, um gesto de amor e adoração. Assim, representava o amor do ser humano ao Senhor Jesus Cristo, esse amor regenerado que é o resultante da remoção de amores impuros do coração do indivíduo. O "ungüento" ou óleo perfumado representa o Bem Divino mais íntimo e, depois, o bem recíproco da pessoa que está no amor ao Senhor. O ato de Maria, portanto, representava a operação do Divino Bem, Sua Divina outorga do bem ao homem. Mas especialmente representava a operação do Divino Bem na própria glorificação do Humano do Senhor.
Todavia, uma nota discordante se fez ouvir naquela cena de completa devoção, porque Judas, reclamando do ato de Maria, disse: "Por que não se vendeu este ungüento por trezentos dinheiros e não se deu aos pobres? Ora, ele disse isto, não pelo cuidado que tivesse dos pobres, mas porque era ladrão e tinha a bolsa, e tirava o que ali se lançava..."
Dos motivos pessoais de Judas e sua real natureza nós não trataremos aqui, até porque já estivemos examinando este assunto há poucos dias. Mas voltemo-nos novamente para o que Judas representava na letra do Evangelho, a saber, a Igreja Judaica. Aquela igreja, já devastada, não podia compreender e desprezada um ato de amor; estava além de sua experiência, estranho à sua natureza; a Igreja Judaica não estimava coisa alguma senão o que podia ser visto e contado em sua formas mais externas. O ungüento não devia ser desperdiçado nos pés do Senhor: muito melhor seria vendê-lo e dar ao dinheiro um destino mais prático e caridoso: dá-lo aos pobres. Mas esta não era uma argumentação sincera, vinda de alguma afeição verdadeira.
De todos os episódios nesta história, o mais estranho é a resposta que o Senhor deu a Judas: "...os pobres sempre os tendes convosco, mas a Mim nem sempre Me tendes". A significação imediata destas palavras é logo notada. O Senhor, sabendo que a crucificação estava próxima, e que logo seria tirado da vista dos discípulos e dos seus seguidores, e restando pouco tempo para que fossem instruídos ou para que eles demonstrassem e confirmassem seu amor por Ele, permitiu que Maria o fizesse. Ela e os demais presentes precisavam da força transmitida por aquele ato de devoção, para os dias de aflição por que teriam de passar.
O Senhor já tinha exortado os seus discípulos que os dias próximos seriam de treva, e agora os fazia novamente lembrar: ...a Mim nem sempre Me tendes". Viria o tempo em que teriam toda oportunidade de servirem aos pobres, mas pouco tempo lhes restava para servir e seguir ao Senhor.
Mas até esta significação imediata destas palavras do Senhor soa estranha em nossos ouvidos. Parecem incompreensíveis: por que o Senhor teria chamado a atenção para Si mesmo, para a adoração à sua Pessoa como coisa de mais urgência do que a ajuda aos pobres? Deve haver um significado muito mais amplo nas palavras Divinas, o que certamente veremos pela revelação do sentido espiritual.
Os "pobres", no sentido literal, são aqueles que são privados dos bens do mundo e, reconhecendo sua condição, pedem nosso auxílio. Mas no significado espiritual, os "pobres" são aqueles que não possuem as verdades da Palavra e, assim, nenhum conhecimento concreto têm de Deus (AC 8478; VRC 427). Estes são "pobres" de riquezas espirituais, mas reconhecem essa pobreza, isto é, reconhecem que de si mesmos nada são, nada sabem e nada podem (AC 4459, 5008). Mais do que isto, eles anseiam ser instruídos. E aqueles que têm tal desejo, certamente receberão instrução, como lemos em Isaías: "Os aflitos e necessitados buscam águas, e não as têm, e a sua língua se seca de sede; mas Eu, o Senhor, os ouvirei; Eu, o Deus de Israel, os não desampararei" (41:17).
O termo "pobre" pode, obviamente, ter um bom ou um mal sentido; pode representar os ignorantes que não têm e não buscam a verdade, e que por isso estão fora do alcance da Palavra, rejeitando-a quando a ouvem, e pode também representar aqueles que estão no reconhecido de sua carência e realmente buscam a verdade por causa do bem. Estes últimos são os que foram entendidos na carta à Igreja de Éfeso, a quem o Senhor disse: "Conheço as tuas obras, a tua tribulação e a tua pobreza (mas és rico) (Apoc.2:9). Sua pobreza é representada pela confissão de que nada sabem por si mesmos, e sua riqueza pela afeição pelas verdades espirituais.
Nós temos um dever para com os pobres, tanto os que são pobres de riqueza material quanto os que o são de riquezas espirituais. Aqueles que foram abençoados com recursos materiais têm, sem dúvida alguma, a responsabilidade de socorrer os que delas carecerem. A riqueza e a pobreza em si mesmas não asseguram a salvação espiritual de ninguém, mas a atitude que a pessoa tem com relação à riqueza ou à pobreza é que terá um efeito marcante em sua vida. Mas os que carecem de recursos materiais, e que por isso se desgastam na luta árdua para garantirem mal a sobrevivência física, podem ficar tão oprimidos por essas lutas que a riqueza espiritual se torna algo distante e irreal. E nós não podemos consentir que isto suceda ao nosso próximo.
Por semelhante modo, aqueles que foram agraciados por Deus com o conhecimento da verdade (a riqueza espiritual), que possuem a Palavra em sua completa forma trina, não podem se contentar em apenas possuir e guardar para si estes conhecimentos, sem fazer algum esforço para dispensar essas verdades com aqueles que são realmente pobres - que não possuem a verdade, mas anseiam por ela. A Nova igreja não pode se furtar a compartilhar com o mundo as verdades do Segundo Advento.
Nosso primeiro dever é o de transmitir tais verdades aos que estiverem mais ligados a nós, ou seja, aos nossos filhos. Mas, com a mesma dedicação, temos de espalhar a boa-nova do Segundo Advento àqueles que estão lá fora.
Todavia, a preocupação com os pobres - de ambas espécies - não é suficiente, e foi isto o Senhor ensinou quando disse: Porque os pobres sempre os tendes convosco, mas a Mim nem sempre Me tendes. O Senhor não estava dizendo que os pobres não precisam de atenção. De fato, Ele indicava que viria o tempo em que socorrer os pobres seria o primeiro dever dos discípulos. O que Ele mostrava ali era que havia uma responsabilidade anterior àquela, mais urgente: antes do socorro aos pobres deve-se prestar culto ao Senhor - o culto representado pelo ato de Maria ungir-Lhe os pés.
O fato é que as boas obras, por si mesmas, não salvam. Muitos têm acreditado que o fato de fazerem benefícios aos necessitados, ajudarem às obras de caridade e ofertas às igrejas lhes dará recompensas no céu. Mas é preciso observar que, conquanto essas obras de caridade devam ser praticadas, elas não devem ser a primeira coisa na vida cristã. "A primeira coisa da caridade é visar ao Senhor e a segunda é afastar os males como pecados", lemos nas Doutrinas (Chiar.1). Os benefícios da caridade são o plano derradeiro na esfera da caridade espiritual; podem ser meios de nos introduzirmos na caridade real, mas não são a caridade em si mesma. Nós cometemos um erro se pensarmos diferentemente. É fácil acreditar que o primeiro dever cristão é socorrer os indigentes; isto é o que pensa o mundo à nossa volta; mas esta é apenas uma visão superficial do amor ao próximo, porquanto tais obras não terão sentido algum se não tiverem dentro delas a fé e o culto ao Senhor.
Os membros da Nova Igreja têm o dever de não se deixarem levar por ilusões. Sem dúvida alguma, devemos cumprir os deveres externos da caridade, a saber, as virtudes da gentileza, da paciência, da generosidade e outras. Cada membro fiel da Igreja haverá de querer cumprir os benefícios de caridade que estão além dos deveres de nossa função. O perigo é que passemos a visar esses deveres apenas, que ilusoriamente nos concentremos neles, pensando que eles formam a Igreja. A obra da Igreja e o primeiro dever do membro da Igreja é buscar o Senhor, aprender a amá-Lo afastando os males como pecados contra Ele. Isto é ungir os pés do Senhor com precioso óleo. E para não nos esquecermos desse dever o Senhor nos diz, como disse a Judas: Porque os pobres sempre os tendes convosco, mas a Mim nem sempre Me tendes.
Assim, vemos que o ato de atender às necessidades do pobre, seja provendo-lhes os essenciais da vida terra ou as riquezas do alimento espiritual, deve provir de uma vida devotada ao Senhor, que O busca em primeiro lugar, que se esforça para evitar os males somente porque são pecados contra Ele. Sem esta convicção e esta atitude pessoal, o socorro que se presta aos necessitados não tem nenhuma valia para a vida espiritual. Mas com tal fé e disposição interior, o socorro ao pobre é um ato verdadeiro de amor ao Senhor: "Quando o fizestes a um destes Meus pequeninos, a Mim o fizestes"(Mat.25:40).
O amor de Maria pelo Senhor foi manifestado e representado na unção com óleo dos Seus pés; e "encheu-se a casa do cheiro do ungüento" (12:3). A esfera do amor que ela demonstrava foi sentida por todos, e esse amor era a condição essencial para o estabelecimento da Igreja Cristã.
Às vezes ouvimos alguém se desculpar por negligenciar o culto dizendo que a vida das boas obras é mais importante; ou mesmo nos impressionamos com os atos aparentemente caridosos de alguém que não quer a formalidade da religião, achando que isto deve bastar. Mas essa atitude enganosa, esse descaso para com o culto, ainda que se dê importância às boas obras, é a mesma explicação dada por Judas: "Por que não se vendeu este ungüento por trezentos dinheiros e deu-se ao pobres?" O Senhor mesmo é Quem nos dá a resposta: Porque os pobres sempre os tendes convosco, mas a Mim nem sempre Me tendes.
Em quase todos os momentos de nossa vida diária, ficamos envolvidos com as preocupações terrenas, as necessidades materiais e tantas outras coisas de ordem material. É por isso que é da maior importância que separemos um tempo para uma pausa, para considerarmos os nossos princípios, os nossos motivos ocultos em nossos atos, as razões pelas quais fazemos ou deixamos de fazer cada coisa. Como Maria, precisamos, por alguns momentos, esquecer as necessidades terrenas e voltarmo-nos para o culto ao Senhor.
A casa de nossas mentes deve ser cheia do odor do ungüento precioso. Devemos nos revigorar na fonte das águas Divinas, refrigerar nossas almas em Sua aliança. As palavras do Senhor são um apelo a que estabeleçamos, em nós mesmos e na Igreja, uma perspectiva justa entre o relacionamento que temos com nossos semelhantes e o que temos com o Senhor. A Nova Igreja, o homem e a mulher da Nova Igreja, tem dois objetivos ou duas responsabilidades centrais: buscar ao Senhor para que a Igreja seja estabelecida em seus coração, e olhar pelos seus semelhantes, para que a Nova Igreja se estabeleça com uma crescente multidão daqueles que querem ouvir - os pobres que buscam a verdade por causa do bem.
Não podemos perder de vista estes dois objetivos. Se o fizermos, a Igreja será arrebatada de nós, para o deserto, e será entregue a outros servos, mais dignos do que nós. Vejamos isto claramente. Saibamos o que deve vir em primeiro lugar em nossas vidas, sem necessariamente negar o que vem em segundo. Enchamos o mundo com o cheiro suave do culto ao Senhor para que possamos ser fortalecidos em nossa obra de socorrer aos necessitados com o que há de mais precioso para eles, e assim estaremos cumprindo nosso papel na descida da Cidade Santa, a Nova Jerusalém.

Amém.


Lições: - Mateus 25:31-46; AC 5008