O Oitavo Mandamento

Sermão pelo Rev. Hugo Lj. Odhner

"Não dirás falso testemunho contra o teu próximo" 


Êxodo 20:16

Os mandamentos do Decálogo condenam toda sorte de males no agir, falar ou pen­sar, na intenção e na cobiça. No seio do homicídio, do adultério e do roubo encerram-se todos os males. Não existe nenhuma cobiça que não tenha sido instruída nos dois últimos mandamentos, que proíbem cobiçar a casa do próximo ou cobiçar sua esposa e seus bens. O presente mandamento, "não dirás falso testemunho contra o teu próximo", que em seu sentido específico, proíbe a falsa acusação ou perjúrio, é também dirigido contra os males da mentira e da falsidade e seus congêneres, tanto na fala quanto no pensa­mento.
A mentira é coisa mais comum do que os crimes ativos do homicídio, do adultério e do roubo; e como é um mal tão corriqueiro, não é considerado (pelas pessoas) com tanta severidade como o são os outros males. Ademais, a mentira é um ato da fala, e por isso não é tão definitivo, não é uma forma tão completa de executar o mal como um ato operado com as mãos, como o assassínio e a violência. E também uma pessoa pode não ser tão facilmente convencida quanto a ter proferido uma falsidade, uma vez que ela muitas vezes pode estar realmente equivocada.
Mas os Escritos nos mostram que o mal da mentira anda lado a lado com todos os outros males, pois que a mentira provê a confirmação de todos os outros. Um mal que é cometido no calor da paixão até pode ser perdoado. A pessoa, quando se vê num estado mais racional, enxerga o mal no que ele é: vê a sua origem infernal, e daí reconhece a sua falta e tenta reparar o dano que causou, arrependendo-se humildemente em seu espírito. Mas se, em vez disso, ela tenta esconder o mal que cometeu cobrindo-o com falsidades diante dos outros, e obstinadamente se desculpa perante a sua própria consciência, então aquele mal começa a ser realmente do seu próprio, e ela passa a ser culpada aos olhos do Senhor e dos anjos.
O homem possui uma vontade e um entendimento. O mal que ele pratica pela vontade sem consultar seu entendimento não é tão deliberado - não é feito de "sangue frio"- como quando ele o faz com o consentimento de seu entendimento. A conjunção da vontade má com os raciocínios, as desculpas e mentiras que escondem o mal e censuram a própria consciência, é o que finalmente condena o homem. Quanto mais houver desse pseudo-casamento de falsidade e mal em sua mente, mais difícil se faz a penitência futura de um mal tão confirmado. Pois então a pessoa está sustentando falso testemunho a res­peito de si mesmo e a respeito dos males que infestam o seu espírito. Fez o mal parecer um bem, persuadindo-se de que era certo. E aquilo que a pessoa fez parecer lícito, ela continuamente comete no segredo de seu coração. Ela não pode de modo algum ser re­movida de um mal tão confirmado, a menos que seus olhos se abram para o fato mons­truoso de que vive num "testemunho da mentira".
O mal de mentir, que é praticado no entendimento do indivíduo e daí na fala, é, por isso, especialmente perigoso, porque confirma e estabelece seus males de intenção ou ato. E por causa desta sua terrível conseqüência, a falsidade tem de ser considerada um mal interior que precisa ser repelido continuamente, a fim de que não se torne habitual e irradicável; um mal contra o qual devemos sentir aversão por ser uma barreira entre nós e a salvação que só pode vir através da penitência e da remissão dos pecados.
Onde existe inocência, não existe necessidade de mentiras. Na história sagrada do começo de nossa raça, é dito  que antes de o mal ter entrado no bendito Jardim do Éden, Adão e sua esposa estavam ambos nus e não se envergonhavam. O pecado entrou no mundo pela sustentação de uma mentira, pelo engano da serpente que disse: "É assim que Deus disse...?" E assim, na vida de cada criança na terra, em alguma época começa a consciência do pecado e com ela a intenção de esconder sua falta atrás de uma mentira, ou seja, vestir-se em folhas de figueira para defender o respeito próprio.
Logo surge a primeira negação, a primeira mentira da criança, especialmente se ela tem mais medo do que amor, e se não houve o  cuidado em se lhe mostrar que o castigo tem em vista a sua proteção e não alguma vingança. Os pais não podem deixar de prestar atenção a esta importante mudança de estado, o momento em que as coortes do mal -mal hereditário do qual a criança ainda não é responsável - começam  sua invasão, começam a se insinuar, mudando a tática da disciplina infantil de combate aberto ao mal, para uma batalha mais difícil, mais sutil, contra males confirmados. São sábios os pais que conse­guem estar atentos e evitar esse primeiro sucesso do mal, mantendo o combate em campo aberto. Felizes são os filhos que podem permanecer em seu Éden, sem conhecer as plantas venenosas do engano e da mentira. Porquanto a mentira consome as relíquias do bem, destrói a própria cerne da infância, e torna impossível a caminhada na senda ce­lestial, embora ela possa ainda, arrependendo-se do mal, ser salva pela regeneração para o céu espiritual.
É aí, na infância, que a batalha contra a falsidade pode ser travada com mais su­cesso. No entanto, é uma tragédia universal que a maioria dos pais perdem essa oportu­nidade. Pois, quantas vezes os próprios pais não lançam mão do conveniente recurso de uma mentirinha para não encarar as questões ou estados de seus filhos? Quantas vezes os pais não fazem promessas disparatadas ou ameaças vazias sem nenhuma condição de cumpri-las? ou permitem a si mesmos e a seus filhos exagerar, exaltar e distorcer uma verdade para tirar vantagens ou proveitos em relação a sua própria importância?
Este hábito de desrespeitar a verdade nas matérias mais triviais acaba minando o amor à verdade, que é a afeição salvífica da raça humana o fundamento sobre o qual o caráter se constrói.
Pode parecer, pelo que foi dito, que os deveres dos pais são difíceis, pois nem sempre eles podem dizer toda a verdade a seus filhos, nem responder a todas as suas questões plenamente. Todavia, há sempre maneira correta de se responder e ainda pre­servar o amor à verdade. Esta maneira o Senhor mesmo usou quando falou às multidões por parábolas.  Os pais usam essa maneira quando contam as histórias da Palavra sobre a criação, sobre Adão e Eva, o dilúvio,  a torre de Babel; ou quando estimulam a imagina­ção das crianças através de estórias e lendas que representem, em tipos simbólicos, tipos que contêm e correspondem a verdades internas. Dessa maneira, também, todos os se­gredos da vida são abertos à criança por respostas que, ainda que sejam figuras e apa­rências, contêm em si mesmas e mostram a verdade espiritual real. Realmente, é assim que todos nós - simples e sábios - devemos aprender a entrar nas verdades interiores da sabedoria e do julgamento. Só aqueles que conhecem os usos reais das coisas estão pre­parados para usá-las.
O sentido óbvio e direto do Mandamento: "Não dirás falso testemunho contra o teu próximo" é que uma mentira solene e deliberada é um pecado contra Deus e contra o homem. É um pecado na mesma proporção em que for intencionalmente enganoso, e as­sim é, também, uma falsidade  do mal. Se não é uma mentira intencional dita por igno­rância ou por mal-entendido ou por temor a falsidade é, ainda uma falsidade do mal, po­dendo ainda conduzir ao mal, porém não é imputada como um pecado, mas como falsi­dade da ignorância. O Senhor disse: "Se fôsseis cegos, não teríeis pecado; mas como agora dizeis: Vemos; por isso o vosso pecado permanece." (João 9:4l).
É necessário que, embora consideremos algo aparentemente verdadeiro, não ten­temos persuadir os outros sobre aquilo, a menos que estejamos convictos de sua verdade e utilidade, para que não venhamos a ferir a fé que a pessoa tem no Senhor e na Palavra, ou a fé em seus semelhantes. Temos de ter responsabilidades pelo que dizemos, uma vez que a honra e a tranqüilidade dos outros, e até o bem do país, podem ser prejudiciais por nossas palavras levianas. Por isso a lei de Israel tinha o Mandamento: "Não andarás como mexeriqueiro entre os teus povos" (Lev. l9:l6). Entendida interiormente, esta ins­trução visa a proteger o bem espiritual dos outros, e, na letra, foi dada contra a maledi­cência, a circulação de opiniões levianas e irresponsáveis sobre os amigos e conhecidos. O amor natural do homem tem prazer em fazer isso, já que esta é uma forma velada de diminuir os outros em comparação a si mesmo.
A importância deste mandamento, em sua interpretação, foi vista desde a Igreja Judaica. Porque nenhum esforço social pode dar frutos se a atmosfera de uma comuni­dade estiver envenenada pelo cinismo, pela suspeita e pela desconfiança, e se as pessoas tendem a procurar faltas umas nos outras. Não pode existir uma amizade franca se hou­ver receio de que as confidências íntimas sejam depois abusadas.
Ainda que a maledicência ou fofoca seja tida como coisa inocente por muitos, é o instrumentos mais usado de difamação. É bom lembrar o  sentimento do apóstolo Tiago que, em sua epístola, disse que a língua, embora "um pequeno membro", "está cheia de peçonha mortal" e é difícil de se domar. E ainda: "Vede quão grande bosque um pequeno fogo incendeia" (Tiago 3:5). Mas também o livro dos Provérbios diz: "Sem a lenha, o fogo se apagará" (26:20). A falsidade só é detida por um ouvido cristão que a desaprove, por causa da caridade que, como disse o apóstolo Pedro, "cobre a multidão de pecados" (I Pe. 4:8). A caridade, como foi ensinado aos cristãos, "é sofredora, é benigna ... não suspeita mal; não folga com a injustiça" (I Cor. l3:4,7).
Mas pertence à caridade dar crédito a quem o crédito é devido; e também é da ca­ridade saber apreciar uma boa causa, dando o apoio devido e recompensando aos que foram instrumento da causa. A beleza, a força, a virtude e a utilidade são coisas real­mente merecedoras de elogio. Mas o elogio, quando passa um pouquinho que seja da medida, torna-se bajulação. E a bajulação, tanto quanto a difamação, implica em falso testemunho. Ainda que superficialmente a bajulação seja o oposto à difamação, ela nor­malmente vem do amor de si, e também estimula o mesmo amor de si nos outros. O elo­gio se torna bajulação não só quando é deliberadamente insincero, mas também quando é feito sem a devida consideração do fato de que todo uso pertence ao Senhor, e que a Ele devem ser dados toda honra e todo louvor.
Assim, a bajulação associada ao mal pode ser uma forma de mentir. É o meio re­conhecido pelo qual os espíritos enganosos no outro mundo, e homens semelhantes neste, empregam para obter influência sobre os outros. Os  maus espíritos engrandecem o homem com sua línguas, mas o desprezam em seus corações. Como é dito nos Pro­vérbios também: "O homem que lisonjeia a seu próximo arma uma rede aos seus passos" (29:5). Aparentemente, os maus espíritos louvam as virtude do homem, mas na realidade visam inflamá-lo em seu amor próprio e cegá-lo por sua própria vaidade. Assim podem levá-lo aonde querem, pois logo irá perder a capacidade de discriminar entre verdade e falsidade.
O engano e a insinceridade são a alma de toda mentira. E quando a pessoa conse­gue revestir seu engano com plausibilidade e piedade, torna-se um hipócrita, um ator, um dissimulador, fingindo virtudes que na realidade não possui. É um fato notável que a hi­pocrisia pode se desenvolver tão secretamente num homem que o próprio homem não é necessariamente ciente dela, e mesmo não admite ser um hipócrita, mas se engana e se ilude ao ponte de pensar que é mais santo do que os outros. Isto acontece porque sua mente fica cheia de mentiras que não se examinam à luz da verdade. O Senhor disse, por isso, aos principais dos sacerdotes e aos anciãos dos judeus, que os publicanos e as prostitutas que se arrependeram mediante o chamado de João, "os precederiam no reino de Deus". "Limpa primeiro o interior do corpo e do prato", Ele lhes disse, "e o exterior deles também estará limpo". Limpar o interior significa remover o engano e a concupiscência, e isto pelo auto-exame e pela penitência constante.
"Todo aquele que faz o mal odeia a luz, e não vem para a luz, para que suas obras não sejam reprovadas" (João 3:20). E, se entramos no sentido espiritual do preceito, en­contramos que estas palavras do Senhor são as próprias palavras do juízo sobre os maus após a morte. Os que fizeram o mal fugirão da verdade, terão ódio dela e preferirão viver como se a verdade fosse meramente um sonho e uma irrealidade. Assim, esconderão um vida de fantasia - a vida do inferno - a vida de seu egoísmo.
No mundo espiritual, até aqueles que amaram na terra a verdade natural, e tinham às vezes até defendido padrões de honestidade e sinceridade, poderão vir a notar que foram infratores do Mandamento: "Não dirás falso testemunho contra o teu próximo". "Falso testemunho" significa a falsidade da fé. E "próximo", no sentido espiritual, signi­fica o bem. Quer dizer: "não acusar o bem de ser mal por meio de falsa doutrina"; não persuadir que verdade é falsidade ou vice-versa, de propósito, conscientemente. Até o ateísmo pode defender a moralidade e a sinceridade em sua busca pela verdade natural, embora obstinadamente feche os olhos para toda verdade e toda virtude espirituais. O céu vem somente do Senhor, e sem o Senhor nenhuma virtude é genuína. Sem Ele, qual­quer virtude  não passa de atitude enganosa do amor de si e de desprezo interior pela orientação Divina, desprezo pela humildade que é inocente, pela pureza de coração que pode ver Deus e pela pobreza de espírito que herdará o reino do céu.
Nenhuma mentira é mais terrível em seu efeito devastador do que a mentira do tolo que diz em seu coração que não existe Deus. Nenhuma pode causar mais dano do que a falsidade sobre o Senhor, sobre o céu e sobre as coisas espirituais, ainda que essa mentira seja acompanhada de um amor pela verdade natural e ainda que seja adoçada pe­las exibições mais persuasivas de "caridade" natural. Todas as falsidades da religião ti­veram origem no amor de si do homem, formuladas e aceitas para cobrir e desculpar a fraqueza e o mal do homem.
A influência mais poderosa que uma pessoa pode exercer aqui na terra não é por meio de suas palavras, mas pela aprovação ou reprovação que ela mostra para com os usos que visam a salvação do homens. Por sua própria esfera ou atitude, a pessoa resiste ou favorece as influências dos infernos que buscam estabelecer no mundo das mentes humanas a mentira de que a comodidade própria e o próprio interesse são mais importan­tes do que os deveres do culto e os usos da Igreja, ou mais importantes  do que a auto-compulsão pela regeneração e por uma vida segundo a consciência, uma vida de uso. A vida do amor de si é uma mentira, um falso testemunho, como o são as falsas doutrinas.
Mas o senhor, em Sua Vinda, desmascarou os falsos testemunhos. A falsidade não pode mais reinar no mundo dos espíritos -tampouco na Igreja do Senhor na terra. A ver­dade da regeneração foi novamente revelada, e agora o Senhor é visto como a Verdade, o Caminho e a Vida. A verdade da Palavra do Senhor pode ser vista como o caminho para a vida racional na terra e para a felicidade eterna.
A nós nos cabe pedir humildemente o ânimo para, em cada ocasião de nossas vi­das, encarar a verdade dentro de nós mesmos, reconhecer nosso estado, aprender a quebrar as fantasias do engano, e evitar os males como pecados. Então estaremos mais próximos do céu. Pois o céu, com sua paz só pode descer na vida humana quando a boca puder falar com franqueza, sem reservas e a partir de um coração penitente, humilde, sin­cero e destemido, nada mais tendo a esconder. Amém.

Lições: João 18:18-38; VRC 321-323 partes.

Traduzido, com algumas adaptações, por Cristóvão Rabelo Nobre