ESQUECIMENTO DO EU

Sermão pelo Bispo Willard D. Pendleton

E chamou José o nome de seu primogênito Manassés, porque disse:
Deus me fez esquecer todo o meu trabalho, e de toda a casa de meu pai.


(Gênesis 41;51)

                        Uma das mais trágicas histórias da Bíblia é a narração da traição praticada contra José pelos seus próprios irmãos. Quando ainda jovem, ele passou por essa extrema desilusão. Impelidos pela inveja, seus irmãos tramaram contra a vida dele e, não fosse a intervenção de Rubem, o teriam assassinado no deserto. Diante da interferência de Rubem, eles o venderam como escravo, sabendo muito bem que os que eram enviados ao mercado de escravos no Egito jamais reapareceriam.
Ao chegar ao Egito, José foi vendido a Putifar, capitão da guarda do Faraó. Como era moço de dons extraordinários, logo se tornou o superintendente da casa de Putifar e, no capítulo 39 do livro de Gênesis, versículo 6, se diz que "Putifar não sabia o que tinha, a não ser o pão que comia". É de admitir-se que, durante esses anos de servidão, José esperasse que sua recompensa fosse a liberdade, mas, em virtude da duplicidade da mulher de Putifar, ele foi objeto da ira de seu senhor e por isso foi lançado na prisão. Sob tais circunstâncias, não seria de admirar que sua esperança de libertação desse lugar ao desespero; mas, mesmo durante o encarceramento, ele dedicou sua vida aos companheiros de prisão. Pôs a força de seu espírito a serviço dos outros encarcerados.
Ainda que, por si mesmo, o homem não possa fazer o bem, entretanto ele pode fazê-lo pelo Senhor, isto é, por intermédio da Verdade. É por meio da verdade que o homem pode, se assim o desejar, vir a conhecer a verdadeira natureza de suas afeições. Não há outro meio pelo qual o homem possa ver-se como ele é realmente. Para isso, a verdade é dada ao homem. Por meio dela, a criatura humana pode adquirir uma verdadeira perspectiva do seu eu, isto é, pode vir a conhecer o eu como ele é e como pode tornar-se. E se a criatura humana subordina o eu ao bem do uso, então, e somente então, pode ela praticar o bem como por si mesma, sabendo, entretanto que o bem é do Senhor.
É através da subordinação do eu ao bem do uso que o homem é liberado do mal, porque, como os Escritos ensinam, o amor do eu não é necessariamente o mal. Como qualquer outro amor, ele provém, em sua origem, do Senhor, e o que provém do Senhor não pode ser o mal. Mas esse amor ao eu só se realiza genuinamente, só cumpre sua finalidade, quando pratica usos em benefício do próximo. E é essa prática de usos em benefício do próximo que se entende como o esquecimento do eu.
Em nenhum texto das Escrituras é a tese de nosso texto - o esquecimento do eu - ilustrada com mais exatidão do que na história de José. Quando ainda jovem, foi traído por seus irmãos, vendido como escravo, tratado com desprezo e lançado à prisão. Seria compreensível se ele se queixasse de que a Providência o havia abandonado. Mas ele não fez isso. Em sua aflição, não perdeu a esperança. Durante todo o sofrimento confiou em que Deus o salvaria. A razão é evidente: ele era o protótipo d'Aquele que viria salvar o mundo. Porque o Cristo também foi traído pelos seus e sofreu aflições. Veio ao mundo para que todos os homens cressem n'Ele e, entretanto, foi vilipendiado e perseguido.
Para compreendermos a história de José, devemos compreender o que significa o homem José. De acordo com os Escritos, ele representa o espiritual do celestial ou o bem da verdade, isto é, o bem proveniente da verdade. Há muitas coisas que levam o homem a praticar o bem: a recompensa, o medo da perda da honra, da reputação, do ganho e outras. Mas o bem praticado segundo essas razões não é o bem, isto é, não pode ser apropriado pelo homem como bem, porque o interesse contido em tais razões é egoístico. Espiritualmente falando, só há um bem genuíno: é aquele que praticamos tendo em vista a felicidade dos outros. Este bem provém do Senhor.
O homem, diferente dos animais irracionais, é dotado de capacidade de elevar-se acima do eu egoístico e praticar o bem genuíno. A origem dessa capacidade vem dos dias da infância e da juventude, quando o Senhor coloca no coração de cada criatura humana afeições e sentimentos puros. Essas afeições são chamadas nos Escritos de relíquias, porque permanecem na memória como tendências para o bem, quando não são destruídas por tendências egoísticas do eu. É por meio dessas tendências para o bem que somos guiados pelo Senhor no caminho que leva à vida da regeneração.
Aquele que, atendendo ao apelo do Senhor, reconhece que em cada intercâmbio humano há um uso a ser executado, e que alcança o conhecimento de que os usos devem ser executados num clima de honestidade e justiça, é conduzido pelo Senhor à felicidade decorrente desse comportamento, ficando, então, liberado do egoísmo do eu.
A verdadeira finalidade da vida consiste nas responsabilidades que são postas diante de nós pela Providência, cujos caminhos excedem a nossa compreensão. Acreditar em Deus não é apenas acreditar no autor das causas primárias da criação, mas sim acreditar que Ele nos criou com um objetivo. Esse objetivo deve ser encontrado em todos os usos da vida que o eu está destinado a praticar. Como José, que trabalhou entre os desprotegidos deste mundo, o homem pode encontrar significação na existência através da aplicação do eu ao bem que está compreendido no uso. É uma impropriedade classificar os usos de mais importantes e menos importantes. Todos os usos são importantes. Seu valor é determinado pelos bens neles contidos e os bens não são mensuráveis pelas leis naturais. Por isso, os usos que praticarmos, os mais elevados e os menos elevados, todos tendem a concorrer para a nossa felicidade e para a felicidade dos outros.
Há ocasiões, entretanto, em que nos damos conta de que nossos esforços em atender o apelo do Senhor são anulados pela barreira de nossos amores egoísticos. A razão disso é que o amor do eu é tão sub-reptício que se insinua quando menos suspeitamos de sua presença. Em nosso desejo de sermos úteis aos outros, naquilo que fazemos sem desejar retribuição, nas afeições que sentimos por aqueles que dependem de nós, encontramos frequentemente, de um modo ou de outro, motivações no amor do eu.
Mas, nessas ocasiões, devemos raciocinar que o eu é o instrumento dos usos a serem praticados. Como podemos praticar o uso sem o nosso eu? O que se deseja é que vejamos o eu em sua própria perspectiva, isto é, vinculado ao uso. Que benefício pode resultar desses mórbidos estados de auto-reflexão em que nos consideramos incapazes de praticar usos? Lemos na Palavra: "Concilia-te depressa com teu adversário" (Mateus 5;25). O adversário nosso é a verdade da Palavra relativa à natureza do eu e o Senhor ordena que nos conciliemos com a verdade e que voltemos para a vida de participação ativa na prática dos usos.
Somente por meio de uma vida de usos pode o homem livrar-se da escravidão do amor de si. Podemos, agora, compreender a razão por que José, quando foi solto da prisão e se tornou governante do Egito, deu a seu primogênito o nome de Manassés. Ele disse: "Deus me fez esquecer de todo o meu trabalho e de toda a casa de meu pai" (texto).
O nome Manassés é derivado da palavra hebraica que significa "causar esquecimento". Em nenhuma parte da Bíblia são as delícias do uso tão belamente explicadas. Essas delícias estão ligadas à percepção da paz que se segue ao esquecimento do eu. É por isso que os antigos empregavam o nome Manassés para representar o estado da vontade regenerada. Como nenhuma outra palavra, este nome sugere a bênção da paz que liberta das insistentes exigências do eu sobre o espírito. Aquele que é livre do pensamento do eu (exceto naquilo que é basico para os usos) é efetivamente livre. Não somente se livra daqueles mórbidos estados de insatisfação resultantes da habitual concentração no eu, mas também é poupado das desagradáveis suspeitas que o egocentrismo provoca nos outros.
Não foi sem razão, portanto, que José chamou o seu primogênito de Manassés. Assim procedendo, ele teve em mente evidenciar o poder do bem e do perdão, isto é, o misericordioso poder do Senhor que libera o homem da vida do eu. Isto é conseguido por meio da verdade ou, em outras palavras, por meio da Palavra no sentido espiritual, que é dado a fim de que o homem possa vir a conhecer a natureza, a significação e os objetivos do eu.

Amém.

Lições: Gênesis 41; 17 a 31 e 38 a 52
              A.C. 5353
Adaptação de J. Lopes Figueredo

 

ESQUECIMENTO DO EU
Arcanos Celestes 5353

 

                        José disse: "Deus me fez esquecer de toda a casa de meu pai". Que isto significa a remoção dos males hereditários é evidente pela significação da "casa paterna" como sendo os males hereditários, pois por "casa" no sentido interno é significado o homem, isto é, sua mente racional e natural, especificamente a vontade nela existente e, consequentemente, o bem ou o mal (o mal no caso do irregenerado e o bem no caso do regenerado). A qualidade significada por "Manassés" (filho primogênito de José) está contida nas palavras lidas no princípio. Na língua original (que é hebraico), "Manassés" significa esquecimento, o que no sentido interno, é a remoção dos males, tanto atuais como hereditários. Quando os males são removidos, nasce uma vontade nova formada pelo influxo do bem que vem do Senhor. Esse influxo é contínuo no homem, mas nele ainda existem males escondidos que obstruem a recepção do influxo do Senhor. Pelas tentações que se seguem, constituídas por sofrimentos e desesperos interiores, os males são removidos e, após sua remoção, os bens celestiais fluem do Senhor e, por eles, a vontade nova é formada no natural e essa vontade nova é representada por "Manassés".

 

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