A desobediência de Saul

“Porém Samuel disse: Tem por ventura o Senhor tanto prazer em holocaustos e sacrifícios, como em que se obedeça à palavra do Senhor? Eis que o obedecer é melhor que o sacrificar; e o atender melhor é do que a gordura de carneiros. Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e o porfiar é como iniqüidade e idolatria”


(I Sam. 15:22,23).

Este capítulo de Samuel é uma das passagens que apresentam grande dificuldade à compreensão do leitor da Bíblia, porque aqui parece que, afinal de contas, o Senhor e Samuel são cruéis, e que Saul foi duramente castigado pelo fato de ter sido complacente e ter poupado a vida de um homem e animais inocentes.
Causa admiração ver que o Senhor tenha dado a Saul ordem de exterminar todo um povo e seu gado, sem exceção, homens, mulheres e crianças. Realmente, fica-se desapontado, para não dizer chocado, com essa ordem e, ainda mais, com o fato de, no final da história, o próprio Samuel, sacerdote tomar da espada e despedaçar o rei Agag diante do Senhor!
É mesmo lembrado que a destruição dos amalequitas e de seu rei foi castigo pelo que eles fizeram a Israel no passado. Com efeito, quando o povo de Israel fugia do Egito e andava em marcha pelo deserto, os amalequitas os atacaram por trás, sorrateiramente, ferindo os retardatários, velhos, mulheres e crianças, que tinham dificuldade em acompanhar a marcha.
Não obstante, tal fato se dera há mais de 300 anos, muitas gerações antes daquela época. Agag, o rei atual, pagava pelo mal de seus ancestrais de tempos remotos. E este é ainda outro ponto que nos confunde nessa história trágica.
Em suma: parece que o Senhor é muito duro, e que Saul foi bom e sofreu por ser bondoso.
De fato, é dito na obra VRC que a Palavra não é entendida sem a doutrina. E esta é a passagem que pode ser dada como exemplo. Sem doutrina sã, o que se pode concluir daqui é que o Senhor realmente faz às vezes o mal, que ele mata o ímpio e é vingativo. É essa a exata idéia que o mundo cristão tem de Deus. Por isso acham natural condenar alguém ao inferno e ser injusto em nome da fé.
A verdade é que o Senhor nunca ordenou a morte de alguém, pois Ele é o Bem mesmo, e do Bem nada pode proceder de mal. Mas, como sabemos, as ocorrências históricas da Bíblia foram relatadas de determinada maneira a fim de conterem um sentido interno que é correspondencial às coisas espirituais e celestes. Por causa desse sentido, o Senhor se reveste desse caráter imperfeito do homem; Ele Se deixa retratar segundo parâmetros que só cabem a indivíduos de índole má.
O sentimento que essa história nos transmite é exatamente aquele que o Senhor queria causar em nós, quando ditou a Palavra.
Que sentimento é esse? O sentimento de que o Senhor é muito rigoroso e de que nós somos mais complacentes. O Senhor é muito duro e podia ser mais tolerante.
E este é, pois, o exato sentimento que deve ser trazido à nossa consideração aqui. Sentimos assim várias vezes em relação a diversas coisas e valores de nossa vida. Gostamos de uma coisa, apreciamos uma qualidade numa pessoa que admiramos, e então ficamos surpresos quando a Palavra não mostra que essa coisa é má, ou que essa qualidade que tanto admiramos é nociva. Ou então tem o hábito de fazer algo que nos é tão bom, tão deleitável, o melhor dos prazeres... e a Palavra nos ensina que aquilo não deve ser feito, porque é pecado contra Deus.
E quando a Palavra nos mostra que aquilo que parece tão bom é, de fato, infernal, mostrando-nos também que devemos renunciar àquilo como pecado, sentimo-nos semelhantes a Saul. Queremos ser complacentes e nos recusarmos a aceitar que a coisa seja tão ruim. Queremos conservar o prazer, desfrutar afeições que parecem boas, o melhor das ovelhas e vacas. E se a Palavra insiste em nos mostrar o mal por trás de tais afeições, argüimos, porfiamos e nos rebelamos. “Ah, Senhor! Que mal há nisso? É tão bom!... O Senhor está sendo muito rigoroso!”
Os amalequitas, como outras nações inimigas de Israel, representam um determinado tipo de mal com suas falsidades. O rei dos amalequitas, Agag, significa a falsidade dominante, a justificativa principal para aquelas afeições más. O gado, ovelhas e vacas, são os prazeres dos sentidos, os apetites naturais, afeições do mundo e do corpo associados aqueles males. Por causa dessa representação, Saul não podia ser condescendente nem poupar nada dos amalequitas.
O gesto de Saul, sua indulgência para com o rei Agag e as ovelhas e vacas significa, por conseguinte, a complacência com o princípio falso e os prazeres naturais resultantes. Sem a remoção desse princípio e dos seus prazeres, o mal permanece e acabará destruindo a vida espiritual. As ovelhas e vacas pareciam as melhores, mas eram dos amalequitas. Passar Agag ao fio da espadas é julgar o princípio falso por meio da verdade. É dizer : errado é errado, mal é mal.
Assim, um exemplo prático que nos facilite compreender melhor a situação. Digamos que uma pessoa vive sem nenhuma restrição, permitindo-se todo tipo de prazer sexual. Ele vê todas as mulheres ou ela vê todos os homens com um possível par com o qual ou a qual poderiam desfrutar dos prazeres, sem nenhuma consideração ao casamento. Esse tipo de conduta é má, porque aniqüila na pessoa o amor verdadeiramente conjugal, o qual só é possível com uma única pessoa do sexo oposto.
A vida sexual sem restrições é, nessa história, o povo amalequita. Os pensamentos, os sentimentos próprios dessa vida libertina são os homens e mulheres amalequitas. Mas o rei, Agag, é o princípio que justifica uma tal vida. Nesse caso, é quando a pessoa diz: “Ah, mas não há mal em se aproveitar a vida. É só prazer do corpo; a religião não pode me restringir disso.” Este princípio falso é Agag, o rei que tem de ser eliminado, porque é esse princípio que dá justificativas à devassidão. Como esse princípio induz tão grande mal, por isso o senhor falou de Amaleque em Êxodo 17:16 “Porquanto jurou o senhor, haverá guerra do Senhor contra Amaleque de geração em geração”.
As ovelhas e vacas são as afeições de correntes. No caso, no exemplo que estamos considerando, da devassidão sexual, as ovelhas e vacas são as afeições corporais, como o olhar com desejo por outros e outras, fora do casamento, as obscenidades, as brincadeiras com segundas intenções. O prazer que essas coisas proporcionam à mente natural, Saul, parece tão bom, que esse nível mais baixo da mente não quer abrir mão de desfrutá-los, e os poupa, os conserva.
“Ah! Samuel é muito rigoroso!” O Senhor concedeu que Israel tivesse a bênção de toda riqueza. Ouro, prata, frutos, espigas cheias de grão, camelos, bois, ovelhas, vacas, em abundância. Não havia necessidade alguma em se cobiçar despojo dos amalequitas.
No amor verdadeiramente conjugal, no casamento de um homem e uma mulher diante do Senhor, há afeições celestes e há delícias que aumentam pela vida eterna, as quais o Senhor concede para que a conjunção se encha de encantos e propicie dar cada vez mais beleza, felicidade e eficácia nos usos. Mas esses prazeres só são edificantes e só aumentam a felicidade se estiverem na ordem, no casamento. Do contrário, são egoísticos e geram contínua frustração e estupidez, até à completa dissociação dos céus.
O ato de Saul representa, então, uma atitude da mente natural, quando é complacente com o que é falso, errado e mal. Mesmo que algo pareça bom e lícito, se a Palavra nos mostra que é nocivo e ilícito, devemos seguir a Palavra e remover o mal, e sua falsidade de que o desculpa, de nossa vontade e nossos pensamentos, de nossas ações e nossas palavras.
Não queiramos ser indulgentes com os infernos, porque assim afastamos de nós os céus. A Palavra, O Espírito de Verdade que está em nossa consciência nos mostrando o que é lícito e o que não é, para nos guiar aos caminhos do real contentamento. Mas, se resistimos a essa direção da Palavra, se somos rebeldes e porfiamos, argumentando que não é assim, perderemos a salvação, assim como Saul perdeu o reino. Por isso o Senhor disse: vers. ( I Sam. 15:22,23)

DP. 296: 10,12