O milagre em Caná

Sermão pelo Rev. Cristóvão R.Nobre

“Tu guardaste o bom vinho até agora...”

João 2:1-11

 

Este relato do evangelho de João nos fala do primeiro milagre público feito pelo Senhor, transformando água em vinho num casamento em Caná, região da Galiléia. Espiritualmente, no plano individual, vemos aqui uma descrição do amadurecimento da mente, que acontece na regeneração.
A Galiléia, a região ao norte na terra de Canaã onde o Senhor começou seu ministério terreno, era habitada por um povo que havia imigrado de outras terras. Em relação à Judéia, era uma terra de estrangeiros. Por isso, desde os tempos antigos, fora chamada “Galiléia dos gentios”. E assim como Canaã e Jerusalém representavam a Igreja, a Galiléia representava, pois, os que estavam fora, a saber, os gentios ou pagãos, que viriam a ser chamados para Igreja do Senhor. Do ponto de vista do indivíduo, o estado relativo à Galiléia é o estado do homem natural antes da regeneração, cuja mente ainda não foi instruída nas coisas espirituais.
O Senhor foi convidado para um casamento ali. Naqueles tempos, fazer uma grande festa nupcial era importantíssima tradição dos judeus, e o pai de família fazia  o melhor possível para que nada faltasse aos convidados, ainda que a festa se estendesse por vários dias. Imaginamos, portanto, a preocupação do responsável pelo serviço quando viu que o vinho acabou. Maria, que aparentemente era íntima dos donos da casa, querendo poupá-los do grande embaraço, veio ao Senhor e Lhe comunicou o caso, indo depois instruir aos empregados da casa para que fizessem tudo o que Jesus ordenasse.
Naquela casa, talvez para a ocasião, tinham sido colocados grandes potes de pedra para que os convidados, chegando, lavassem mãos e os pés antes de se aproximarem da mesa. O Senhor mandou que os servos enchessem aquelas talhas com água, e eles o fizeram. Depois mandou que servissem ao responsável pela cerimônia o excelente vinho em que a água se transformara.
Na Palavra, a igreja e o reino dos céus são muitas vezes comparados a um casamento. A união do marido e da esposa representa a união do que procede do Amor e da Sabedoria Divinos. E como essa união na pessoa faz que exista a igreja e o céu em sua mente, por isso a igreja e o reino dos céus são chamados casamento espiritual, essa união entre caridade e fé que se efetua progressivamente pela regeneração.
A água representa a verdade natural, esse nível de conhecimento acerca das coisas espirituais que começamos a receber desde a infância pelas histórias, parábolas, mandamentos e ensinos do sentido literal do Antigo e Novo Testamentos das Escrituras. Enquanto esse nível de conhecimento prevalece em nosso entendimento, constituímos o que se chama “igreja externa”, formada pelas verdades assim naturais.
Já o vinho, por ser um líquido elaborado de um processo trabalhoso de fermentação, representa uma verdade semelhantemente elaborada pelo entendimento racional e confirmada pelas lutas e tentações. Assim é a verdade espiritual, tal como recebemos quando nos deixamos conduzir pelo Senhor em nosso novo nascimento. Por isso, o ato de “o Senhor transformar água em vinho significa que das verdades da igreja externa Ele fará verdades da igreja interna pela abertura das coisas que nelas estão encerradas” (AE 376).
O milagre de Jesus em Caná era pois uma representação de uma obra maior, um milagre especial que Ele realiza em todos aqueles que crêem e que se deixam conduzir pelo Seu Espírito às noções interiores da Palavra. Os que não se contentam em permanecer na fé histórica simples, que crê porque outros assim disseram, mas quer buscar para si mesmo luz para um entendimento racional do propósito Divino em sua vida, estes são pelo Senhor levados a uma visão cada vez mais profunda, mais clara e mais superior a respeito de todas as coisas, porque sobe com o entendimento para a luz do céu.
As verdades naturais da letra da Palavra são como a luminosidade do sol quando está coberto por nuvens, mas as verdades espirituais, tais como nos foram mostradas nos Escritos do Segundo Advento, são como o sol quando brilha num céu limpo do meio-dia. Quando estamos somente nas verdades naturais, podemos às vezes ficar em dúvida a respeito de muitas coisas da vida natural e espiritual; tomamos aparências de verdades da Palavra como se fossem verdades genuínas e ficamos confusos a respeito do que exatamente crer.
Mas quando abrimos nossa mente para a instrução do sentido interno, as respostas para nossas indagações se manifestas nítidas. Nosso entendimento pode então discernir com clareza sobre a natureza do bem e do mal em cada situação, sem sombra de dúvida. Aprendemos a localizar exatamente a fonte de nossas aflições, a origem dos males e sabemos como enfrentá-los e superá-los. Não somos mais surpreendidos nem enganados pelos inimigos que estão nas trevas, porque o entendimento esclarecido pelas verdades espirituais nos dá a necessária luz.
Esse processo de transformar verdades naturais em verdades espirituais é feito pelo Senhor, só, mas tem o concurso do próprio indivíduo. Nós não teremos as verdades espirituais só porque nascemos numa igreja, nem apenas porque lemos a Bíblia todos os dias. É necessário o esforço individual em cooperação com o Senhor para aplicar a mente aos estudos das verdades interiores da Palavra. É necessário o hábito de ler as doutrinas e adquirir dali a visão das coisas a partir de uma perspectiva eterna. É essencial que haja um trabalho mental de buscar a compreensão através de leitura e meditação. Sem isso, permanecemos num estado gentio, num entendimento simples e infantil sobre Deus, sobre nosso espírito, sobre a vida eterna e sobre a vida aqui mesmo neste plano.
Mas, sobretudo, as verdades naturais não se tornam em espirituais só pela leitura e pela meditação. Por isso o relato dessa transformação miraculosa diz que isto se passou num casamento. Ora, como o casamento representa um estado espiritual de união de bem e verdade, daí vemos que, em cada um de nós, o entendimento natural só se eleva ao nível espiritual quando houver, correspondentemente, um casamento genuíno entre o bem e vero em nós. Em outras palavras, só alcançamos essa elevação do entendimento quando nossa fé estiver baseada nos atos de nosso viver; quando os princípios que cremos verdadeiros estiverem sendo seguidos com zelo em todas as coisas que fizermos.
Porque, se não nos esforçamos, às vezes com grande sofrimento, para substituir nossa inutilidade e negligência pela dedicação em servir a Deus, nunca nos tornaremos espirituais. Permaneceremos gentios. Permaneceremos no nível natural de aceitação das verdades. E esse esforço em direção ao desenvolvimento espiritual é um esforço que provoca lutas e tentações, porque sempre temos, antes, de abrir mão de algum sentimento, algum desejo ou algum princípio que é em si mesmo egoístico e morto. Se não renunciarmos a nós mesmos, nunca poderemos aceitar a vida nova que o Senhor concede.
Dizendo de outro modo, para que o casamento espiritual exista em cada um de nós, é preciso que vençamos o domínio da carne e do mundo, rejeitemos o demônio e suas obras, afastemo-nos do mal como pecado contra Deus. É absolutamente necessário que vençamos as tentações espirituais que inevitavelmente acontecem aos que querem se regenerar. Se enfrentarmos as lutas pela remoção da vontade má e do entendimento falso, então poderemos entrar com íntimo contentamento nesse estado santo de união entre o que acreditamos e o que fazemos, a verdade e o bem. O casamento dos céus se torna realidade em nós naquele momento, naquele determinado aspecto de nossa mente. Mas outras áreas surgirão em nosso ser necessitando  semelhante renovação espiritual; outras lutas terão de ser travadas e outros inimigos infernais vencidos.
Quando o homem persiste nesse combate e vence, aos poucos vai-se tornando uma igreja militante, tendo o reino dos céus dentro de si, sendo uma expressão  menor do casamento Divino de Amor e Sabedoria.
É então, e somente então, que o homem tem a conjunção com o Senhor. O Senhor está presente nesse casamento interior do indivíduo como o convidado mais importante. E assim, se a pessoa se dedicar ao exame da palavra em seu sentido espiritual, adquirirá as noções ou conhecimentos interiores. O homem estará como que enchendo os grandes potes de pedra de sua memória e meditando nele. E como então o Senhor estará presente, Ele mesmo, por Seu influxo, transformará aqueles conhecimentos doutrinais em verdades espirituais, propiciando novas aberturas para continuada progressão do indivíduo no caminho que vai pela eternidade.
Aí, sim, é que a Palavra é vista em sua profundidade, como um livro Divino de alcance incomparável, que ilumina todos os estados de nossa existência. Essa visão interior da Palavra e, conseqüentemente, acerca de todas as coisas, é a visão da verdade espiritual representada pelo excelente vinho. Antes não havia tal visão, mas então há, pelo que, na festa, o mestre de cerimônia disse ao noivo: “todo homem serve primeiro o bom vinho, e quando todos já estão saciados, o inferior; tu, porém, guardaste o bom vinho até agora”.
O Senhor tem conduzido Sua igreja representada aqui por esta congregação a um processo semelhante de elevação de entendimento espiritual. Somos testemunhas de que, à medida que nos aplicamos ao aprendizado das verdades interiores das Doutrinas Celestes, muitos de nós têm hoje alcançado uma visão muito mais clara a respeito de muitas coisas da vida natural e celeste. E sabemos que esse progresso espiritual, essa transformação de água em vinho por que passa a Igreja não se deve apenas a essa metódica dedicação ao estudo doutrinal, mas principalmente porque muitos dos irmãos têm feito esforço sincero de modificar seu viver para que esteja em conformidade com os mandamentos de Deus. Daí é que vem realmente todo desenvolvimento espiritual do cristão.
Embora haja lutas e sofrimentos, não podemos desanimar em nossa visão e em nossa caminhada em direção ao alvo maior de nossa existência. Temos um uso, cada um de nós, a cumprir nos céus, para onde o Senhor nos destinou. Permaneçamos neste caminho. Tenhamos, quer como igreja coletiva quer como uma igreja individual, todos nós, um casamento interior de bem e verdade, caridade e fé, mandamento e obediência, para que alcancemos cada vez mais efetivamente esse estado de conjunção com o Senhor. Ele estará presente conosco e estará, continuamente, repetindo o milagre de transformar nosso obscuro entendimento natural em perfeita visão espiritual, para uso nosso e de todos aqueles a quem pudermos influenciar. Amém.