Lavar os pés uns aos outros

Sermão pelo Rev. Cristóvão R.Nobre


“O que Eu faço não o sabes tu agora, mas tu o saberás depois”

João. 13:7.

Na última noite antes da crucificação, Jesus “levantou-Se da ceia, tirou os vestidos, e, tomando uma toalha, cingiu-se. Depois deitou água numa bacia, e começou a lavar os pés aos discípulos, e a enxugar-lhos com a toalha com que estava cingido”. Que ensinamentos o Senhor queria nos dar com esse gesto? O que Ele quis dizer quando, dirigindo-Se a Pedro, disse-lhe: “O que Eu faço não o sabes tu agora, mas tu o saberás depois”?         
Aparentemente, Ele mostrava que, se Ele, que é Senhor e Mestre, praticou um ato de humildade que é o de lavar os pés aos discípulos, nós também devemos ser humildes uns aos outros. De fato, a humildade é importante e necessário. Foi baseada na interpretação literal dessas palavras que a Igreja Cristã precedente adotou o ritual semelhante do lava-pés como parte de sua liturgia, ainda que compreendendo que esse rito é apenas simbólico, um sinal de que é necessário sermos humildes e prestativos uns para com os outros. Não há mal em se observar tal prática na igreja. É um símbolo forte que fala diretamente ao nosso espírito.
Mas não podemos ficar apenas no entendimento literal das palavras Divinas. Há uma instrução espiritual bem mais importante do que nos levar a ser humildes nos externos. Nesse gesto do Senhor do que um simples exemplo de humildade ou prestabilidade, pois sabemos que todas as palavras e todos os atos do Senhor tinham uma correspondência, um significado espiritual para instrução da Nova Igreja e também dos anjos e espíritos no mundo espiritual.
O ato em si da lavação dos pés dos discípulos era apenas externo, nada fazia quanto à pureza e a sanidade da alma deles. Por isso, não era exatamente para aquele gesto externo, que Jesus queria chamar a atenção da Igreja.  Realmente, com esse ato o Senhor estava representando a regeneração, o novo nascimento espiritual do homem. Por isso foi que Ele disse: “O que eu faço, não o sabes tu agora, mas tu o saberás depois”. E, como nos explicam os Escritos,  “o assunto de que se trata aqui é a purificação de males e falsidades” (AC 10243).
Em toda a Palavra são mencionadas as abluções ou os atos ritualísticos de se lavar partes do corpo e objetos, porque essas abluções ou purificações da lei correspondem à purificação dos males do coração. Esta representação fica bem evidente em Isaías, por exemplo, onde o Senhor nos ordena: “Lavai-vos, purificai-vos; tirai a maldade de vossos atos de diante dos Meus olhos; cessai de fazer o mal...”; e depois, pelo evangelho de João, o Senhor repete o mandamento, implícito nas palavras “vós deveis também lavar os pés uns aos outros”.
Os “pés”, na Palavra, representam o plano natural da vida. Por exemplo, a Igreja, por ser o reino do Senhor na terra, está para os céus como os pés estão para o corpo. Os céus, o reino do Senhor, se sustentam e se firmam nos homens e mulheres estão na Igreja, e a Igreja recebe vida através do influxo dos anjos dos céus.  No plano da mante, os pés representam o último nível da vontade e do entendimento, mente natural, e é nesse nível que o espírito se baseia e se fundamenta.  Os “pés” são, portanto, as intenções da mente natural, são os pensamentos daí proveniente, a fala procedente desse pensamento e os gestos e ações do corpo, pois estes é que sustentam os níveis superiores da mente ou espírito e aí é onde a experiência humana se fundamenta.
“Lavar os pés”, por conseguinte, quer dizer purificar esse nível da mente natural; quer dizer purificar as intenções, o pensamento, as palavras e os atos, por meio das verdades da Palavra, representadas pela água.
Parece óbvio dizer que a purificação da mente se deve fazer com as verdades da Palavra, mas não é tão óbvio, porque é muito comum se encontrar pessoas que fazem questão de depurar suas ações, seu comportamento, sua linguagem, e mesmo seu pensamento, mas por motivos que não são da religião, não vêm da Palavra de Deus.  Há pessoas que querem aparentar pureza nos externos por outras razões, como, por exemplo, a civilidade, a cortesia e a bondade. Mas, nesse caso, o falar polido e cuidadoso, as ações corretas, a conduta moral são apenas externas e naturais, por conseguinte, em nada contribuem para a regeneração da pessoa.
A única atitude saneadora que realmente contribui para a salvação é aquela que a pessoa faz a partir da religião, ou seja, por causa de Deus e de uma Lei Divina. Isto é lavar os pés com a água da verdade.
Lavamos os nossos pés quando nos esforçamos pela nossa regeneração. Quando de fato banimos do pensamento toda insinuação infernal de mentir e pecar; quando removemos da vontade a intenção de fazer algo por egoísmo, por vaidade, por ressentimento; quando somos zelosos para afastar da boca as palavras torpes, arrogantes e fúteis, e excluir dos atos todo comportamento malévolo, prejudicial a nós mesmos e ao nossos semelhantes. Em suma, tirar da intenção e pensamento naturais, por conseguinte do ato e da fala, o mal e a falsidade. Isto é o que significa lavar os pés.
É bem verdade que nós não podemos fazer isso por nós mesmos, mas fazemo-lo “como por nós mesmos”, sabendo, entretanto, que essa é uma operação do espírito de Deus em nós, pois o espírito de Deus é a Divina verdade atuando em nossas consciências.
Essa limpeza que a Divina verdade faz em nossa mente natural acontece a partir de um plano um pouco mais elevado da mente, da região a que chamamos consciência.  A consciência é a parte elevada da mente de onde subimos para ver as tendências e as inclinações da mente natural, inferior.  O que consciência nos dita é sempre uma orientação para corrigirmos aquilo que está contra os padrões da verdade e da justiça, para lavar o que está contaminado pelo mal e pecado.  Quando atendemos a voz da consciência, a ação da Divina verdade é como um fluxo de água, uma corrente de água viva que banha a alma e leva para longe a impureza que a contamina e corrompe. Como resultado, há a inocência, há a tranqüilidade e a paz, e há a iluminação do entendimento, uma maior clareza que nos possibilita discernir nitidamente entre o bem e o mal, o vero e o falso.
No processo de purificação como está relatado no Evangelho, a ação limpadora da Divina verdade foi representada também pela toalha com que Jesus Se cingiu e com a qual enxugou os pés dos discípulos. A água, que Ele deitou numa bacia, representa, como se disse, as verdades da letra da Palavra, isto é, os ensinos do Antigo e do Novo Testamentos. Quando aprendemos os mandamentos literais da Bíblia e os cumprimos também literalmente por uma obediência simples, dá-se como que uma primeira etapa da nossa purificação.
Quando, porém, essa verdade é assimilada na vida e mais tarde sublimada em forma de consciência do que é bom e justo, ela passa a nos guiar, do alto, por uma luz clara mas de uma forma tácita, quase imperceptível. É como uma intuição geral que temos de algo é bom e correto, ainda que não nos lembremos exatamente dos textos literais das Escrituras que mostram aquele ensinamento. É uma direção interior, não tanto por palavras, para uma direção segura ao que é verdadeiro e bom. Esta direção tácita da verdade como uma segunda etapa da purificação, que podemos comparar ao ato de se enxugar com a tolha os pés já lavados com a água.
Assim, é essencial que cada um de nós proceda com sinceridade e determinação no sentido de limpar o próprio pensamento, os próprios atos, intenções e palavras; ou antes, é essencial que permitamos que a Divina verdade guie nossa consciência, pois é nisto que consiste a penitência, sem a qual a regeneração se torna impossível. Por isso é que o Senhor disse a Pedro: “Se eu te não lavar, não tens parte comigo”. Pedro, ouvindo isso, quis então ter lavadas as mãos e a cabeça, mas o Senhor lhe disse: “Aquele que está lavado não necessita lavar senão os pés...”, ou seja, para aquele que está sendo regenerado basta que se preocupe em cuidar da purificação da mente natural, desde as intenções até os atos do corpo, pois, enquanto a pessoa fizer, o Senhor cuidará da purificação dos seus níveis internos. É conforme o que as Doutrinas Celestes nos dizem, a saber, que o homem interno é regenerado primeiro e depois, por este, o externo.
Mas fica ainda uma questão:  se esse ato de lavar os pés representa a penitência interior da mente, como podemos entender que Jesus nos tenha mandado lavar os pés uns aos outros? Pois sabe-se que não é possível limpar o mal do pensamento e da vontade outrem. Não podemos, absolutamente, efetuar pelos outros os atos de penitência.  Por que, então, a ordem Divina de “lavar os pés uns aos outros”?
Realmente, o ato de lavar os pés, representando a purificação interior da vontade e do entendimento, é obra que ninguém pode fazer pelo outro, mas cada um faz em si mesmo e diante de Deus. Não podemos nem devemos corrigir os outros, adultos e de razão sã, sem ferir sua liberdade, quando nem o Senhor faz isso, ainda que possamos instruir a quem queira ser instruído e dar exemplos a fim de exercer neles boa influência.
De fato, não podemos tirar o mal e o pecado de outrem. Todavia, podemos, pelo menos, não lhe imputar o mal.  E é nesse sentido que podemos compreender e obedecer as palavras de nosso Senhor e Mestre e lavar os pés aos outros.
Quando lidamos com os males dos outros, quase sempre somos levados pela tendência natural de tomar toda ofensa que se nos fazem como se fosse deliberada ou proposital.  E se atribuímos o propósito numa ação má, estamos imputando o mal ao que a praticou.  É certo que, algumas vezes, a intenção do mal é tão manifesta no ato que não deixa dúvida, mas na maioria das vezes não é assim.  É por isso que se faz muito necessário dar às pessoas o benefício da dúvida, de que talvez elas tenham feito o mal sem intenção. E mais, mesmo quando as pessoas cometem erros de propósito deliberado, muitas vezes elas depois se arrependem sinceramente, e por isso não são mais condenáveis.
Então, temos de considerar que a pessoa, quando fez o mal, pode ter sido de um gesto impensado, ou talvez apenas foi infeliz na escolha de palavras e que o seu objetivo real não era, de fato, ofender ou causar mal ao próximo.  Inocentar o próximo e não lhe imputar o mal – pelo menos quando o mal seja aberto e manifesto – este é o dever do cristão.
Temos de nos lembrar que a pessoa que comete um mal está sendo, na realidade, uma vítima dos infernos. Mais que agressora, ela está se agredindo pela sua associação com os infernos, e por isso é digna de pena mais do que de condenação. 
Precisamos ter cuidado de não ir logo imputando o mal a alguém. Fazendo isso, estamos de fato lavando os pés de nossos irmãos. Estamos tirando deles, pelo menos de diante de nossos olhos, a maldade de seus atos. Não quer dizer que devamos fazer vista grossa para o mal que praticam, absolutamente. Não quer dizer que devamos chamar o mal bem e o bem mal. Mas quer dizer, sim, que não iremos deduzir que, por trás de um ato mal, há, necessariamente, a intenção do mal, porque isso é o que condena o homem. Se as pessoas, por seus atos, são ou não merecedoras de condenação, isso não nos cabe julgar.
É isto, portanto, o que o Senhor nos manda fazer quando diz: “vós deveis também lavar os pés uns aos outros”. E isto não é fácil. Ao contrário, é dificílimo, pois faz parte de nossa natureza humana irregenerada apontar o dedo, abrir a ferida, realçar o defeito, descobrir o mal nos outros para depois, ainda pior, desprezá-los e condená-los. Lutar contra essa tendência é dever nosso, é parte de nossa regeneração.
Todos nós que aqui estamos viemos sempre aqui com o propósito de aprender a viver a vida verdadeiramente cristã. Aprendamos pois com o exemplo do Senhor. Ele, que é Onisciente, a Divina verdade, que tudo vê e tudo sabe, a ninguém condena e a ninguém imputa o mal, mas a todos perdoa e quer salvar, cabendo apenas ao homem aceitar o Seu perdão e a Sua salvação. “Ora, se eu, Senhor e Mestre, vos lavei os pés, vós também deveis lavar os pés uns aos outros”. Amém. 
Lições: João 13:1-20; VRC 409