Intercessão

Sermão pelo Rev.Cristóvão R.Nobre

"...Orai pelos que vos maltratam e vos perseguem"

 Mateus 5:44

Faz parte da caridade verdadeiramente cristã orar pelo semelhante, mesmo que seja um inimigo e perseguidor. Este é o dever a que chamamos intercessão.
Se "orar" é falar com Deus, e o Senhor nos manda orar pelos nossos adversários, então, o que o Evangelho está nos ensinando aqui é que devemos falar com Deus em favor de nossos semelhantes, ainda que nos maltratem e nos persigam, pois isto certamente há de ter um valor espiritual. Para quem? Para o nosso opositor? Para nós?
O termo "interceder" quer dizer "interpor-se", "colocar-se entre" duas pessoas ou duas coisas. Então, de acordo com o entendimento literal das palavras Divinas neste versículo, temos de exercer uma espécie de mediação entre Deus e alguém que, a nosso juízo, esteja necessitando do favor Divino.
Mas, será uma dedução correta do ensinamento da Palavra? Porque, em outra ocasião, o Senhor nos disse que não existe mediador, propriamente falando, entre Ele e os homens a não ser Ele mesmo ("Ninguém vem ao Pai a não ser por Mim"); e esta foi a compreensão dos apóstolos, conforme um deles escreveu: "Porque há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo Homem" (I Timóteo 2:5). É conforme esta mesma compreensão sã da doutrina da Palavra que lemos nos Escritos: "Quando o Senhor estava no mundo, e antes de ser plenamente glorificado, Ele era a Divina Verdade, pelo que, naquela época, havia a mediação, e ele intercedia junto ao Pai, isto é, junto ao Divino Bem mesmo (...). Mas após ter sido glorificado quanto ao Humano, Ele Se chama "Mediador e Intercessor" por esta razão, que ninguém pode pensar no Divino mesmo a não ser (...) pela idéia de um Homem Divino; ainda menos pode alguém ser conjunto com o Divino mesmo através do amor a não ser por meio de tal idéia... Por esta razão, o Senhor quanto ao Divino Humano Se chama "Mediador" e "Intercessor", mas Ele media e intercede junto a si mesmo" (AC 8705).
Se é o Senhor mesmo nosso Intercessor e Mediador, não haveria impropriedade em Ele nos mandar interceder por alguém? Acaso podemos nós nos colocar entre Deus e outro ser humano. Certamente, não. De fato, a Igreja Católica errou quando instituiu Maria como Medianeira, aquela que advoga junto a Deus a causa dos pecadores. E não somente Maria foi pelos homens interposta como Medianeira e Auxiliadora, mas toda uma legião de homens tidos como santos e mártires. No ritual litúrgico daquela Igreja, no cântico "Ora pro nobis" se invocam muitos desses supostos santos da antigüidade para que advoguem junto a Deus pelo ser humano desamparado. A fé errônea em que se baseou esta prática é que nós, pecadores que somos, seríamos por demais impuros e indignos de nos aproximarmos do Deus Altíssimo que está, excelso, muito acima do alcance das nossas preces. Em parte, isto é verdade. Mas não podemos ignorar o fato de que o Senhor veio ao mundo e assumiu um Humano Natural exatamente para Se tornar acessível a nós, ouvir nossa súplica e nos salvar.
Conquanto a Igreja Evangélica ou reformada rejeite e abomine a doutrina católica da mediação de Maria e dos santos, eles todavia praticam a intercessão em outro erro extremo, pois que se colocam a si mesmos como mediadores entre Deus e o resto da raça humana. Baseados na interpretação literal de ensinamentos bíblicos, eles atribuem às suas orações o poder de mudar os desígnios de Deus; pretendem que a salvação da humanidade depende de sua intercessão e seu esforço junto ao Salvador. Por assim pensarem e agirem, acabaram transferindo o poder Divino para a oração mesma que fazem a Ele, crendo piamente que uma oração fervorosa é capaz até de fazer Deus mudar de idéia a respeito disto ou daquilo.
Se Deus fosse esperar nossa intercessão para só então agir e operar a graça e a salvação de alguém, Ele seria mais desumano do que qualquer homem. Pois então Ele, tendo o poder de salvar, só salvaria o que está em perigo a não ser que um terceiro o levasse a isto? Se Ele mantivesse Suas mãos encolhidas para só estendê-las e socorrer mediante a súplica de alguém, não seria mesquinho e sem compaixão? Porque seria qual um pai que, vendo seu filho em perigo, não corresse para salvá-lo, a menos que um estranho o forçasse a isto.
Vemos, assim, o erro de uma compreensão falsa acerca da intercessão. Mas, como conciliar esses pontos? Afinal, podemos ou não ser intercessores? Não é a intercessão parte da caridade cristã, como vimos no início? Que valor tem as súplicas que fazemos a Deus em favor dos outros? Tem elas algum efeito ou Deus não precisa que alguém interceda? E como seremos intercessores sem sermos mediadores e sem usurpar esta função Divina?
Parece que a resposta a estas perguntas está na atitude que temos em nossas mentes quando estamos orando por nosso semelhante. A atitude correta determina a eficácia de nosso papel e o valor de nossas orações.
A primeira coisa temos de reconhecer que a oração do homem não pode jamais mudar o propósito Divino, pelo simples fato de que, em Sua Onisciência e Infinita Misericórdia, o propósito que Deus tem para com todo homem é sempre o melhor possível. A oração não pode melhorá-lo, porque já é o melhor. Deus, sendo puro Amor, não se nega a dar o melhor bem possível a qualquer um, se isto depender unicamente de Sua vontade. Não há, pois, porque orar para se extrair da vontade Divina um pouquinho mais de bondade do que aquela que Ele já tem. O que o Senhor reserva para o homem é a melhor sorte possível que o homem possa receber, nem mais nem menos do que isto. Ao prover o nosso futuro, Deus não tem, em hipótese alguma, um caminho alternativo que Ele pudesse usar e que fosse melhor para nós, que Ele não tenha previsto e provido.
Quando nos vemos atingidos pelo mal, é compreensível que passemos por dúvidas quanto à nossa sorte. Mas devemos sempre nos lembrar de que aquele determinado mal, se aconteceu, é porque foi inevitável dentro do plano Divino, e o Senhor saberá fazer surgir dele um bem eterno que o supere incomparavelmente. Em outras palavras, tudo o que nos acontece é resultante da Misericórdia Divina, seja pela Providência, seja pela permissão, até nas menores coisas. Isto se aplica tanto aos eventos passados quanto aos presentes e futuros. O que vier nos suceder futuramente terá sempre sido o melhor que Deus pôde prover ou permitir, dadas as nossas limitações, as nossas imperfeições e a nossa capacidade de receber e/ou rejeitar os bens que Ele concede sempre a todos e a cada um.
Não será que uma tal idéia nos leve à fatalidade? Se o futuro já está assim previsto e provido, que mais nos resta fazer, senão esperá-lo passivamente, já que Deus nos dará o que for melhor?
A resposta é não. Não há aí a idéia da fatalidade ou da predestinação. O Senhor coordena os eventos futuros. Ele vê de antemão o que seremos e provê para as coisas sucedam conforme Ele previu. Mas nós é que determinamos o que queremos ser e, conseqüentemente, que espécie de futuro almejamos para nós. Como sabemos, nosso futuro está agora germinando no solo das afeições, pensamentos palavras e obras do presente. Depende unicamente de nós, se quisermos, mudar o nosso futuro, alterando sua raízes no presente. O Senhor nos dotou de liberdade para fazermos isto. Ele, em Sua Onisciência e Infinita Bondade, sabe hoje o que queremos ser e o que seremos amanhã; Ele vê as sendas que hoje estamos traçando inconscientemente e pelas quais iremos amanhã caminhar, e então, em Sua compaixão, procura pôr nessas sendas atalhos que nos conduzam a caminhos mais suaves e mais seguros, na medida do possível, e fazê-las voltarem-se sempre que possível para mais perto d`Ele, onde podemos contar com Sua proteção.
Se quisermos, portanto, mudar as coisas no futuro, procuremos mudá-las hoje, no presente, por um esforço mais sincero de modificar nossos hábitos e palavras, pensamentos e sentimentos. Deus, então, operará dentro desse nosso esforço, e tornará nossa caminhada futura mais suave e mais fácil em direção aos propósitos eternos.
Tomando estes ensinos como um pano de fundo, voltemos agora à questão da intercessão? Por que intercedemos por alguém junto a Deus? Para que a sorte desse alguém se modifique para melhor. Mas, isto depende só de Deus? Devemos procurar sempre nos lembrar de que, tanto quanto depende de Deus, isto Ele já está provendo antes que Lho peçamos. Cada indivíduo deve se voltar para Deus e receber d'Ele a vida espiritual, e isto só depende de cada um que goze de razão e livre arbítrio. Se quisermos colher o bem amanhã, temos de semeá-lo hoje. Não há como colher no futuro o que hoje não semeamos. Eis aí um milagre que Deus não pode fazer, pois é de nossa liberdade escolher nossa sorte, e Ele, que nos deu essa liberdade, é o primeiro que a respeita, pois sem ela não seríamos humanos. Na obra Apocalipse Explicado lemos: "Erram aqueles que crêem que podem receber o influxo por meio de orações, adorações e externos do culto. Essas coisas nada fazem a não ser que o homem se abstenha de pensar e fazer os males; e, através das verdades da Palavra, ele, como de si mesmo, se dispõe [ao influxo]; e então as orações, adorações e externos do culto têm valor diante do Senhor" (248). Se isto é verdade quanto as orações que fazemos em nosso próprio favor, com ainda mais razão será verdade em relação as orações que fazemos pelo nosso semelhante.
Dentro de todo este contexto é que devemos situar nossa compreensão da intercessão e ter uma atitude correta quando orarmos pelos outros. Assim, a primeira coisa que devemos ter em mente é que jamais podemos nos colocar como mediadores, pois só Deus é o Mediador. Ele não necessita de intermediários espirituais para operar a misericórdia e a salvação. Ele está sempre para salvar e perdoar, e por isso não há nenhuma argumentação ou oração humanas que possam levá-Lo a fazer melhor o que Ele já faz pelo homem. Lemos nos Arcanos Celestes a seguinte passagem: "Um certo espírito (...) pediu-me veementemente que intercedesse por ele, para que pudesse entrar no céu. Ele dizia que não estava ciente de ter feito o mal, a não ser pelo fato de ter repreendido habitantes daquela terra, acrescentando que, após tê-los repreendido, ele os instruía. (...) Mas eu só pude responder-lhe que não poderia ajudá-lo, e que aquilo cabia ao Senhor somente; e que eu não podia interceder, porque eu não sabia se isto lhe seria útil ou não, mas, se fosse (...), ele poderia ter esperanças" (8847).
Uma segunda coisa de que devemos ter consciência é que, na intercessão, nunca devemos exigir algo ou insistir com Deus quanto ao objeto de nossa oração, pois nada sabemos quanto ao que é de fato bom e útil espiritualmente para nós, mas Ele sabe. É possível que uma coisa que nos pareça excelente e absolutamente essencial hoje amanhã se revele nociva. Por isso o Senhor disse: "E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios, que pensam que por muito falarem serão ouvidos" (Mat.6:7).
Uma outra coisa a lembrar é que Deus, ao Se fazer Homem Divino e tornar-Se Deus até quanto ao natural, está presente como todos e cada um dos homens, embora só esteja conjunto com os que O recebem. Mas, por estar presente, Ele mesmo ouve as súplicas de cada criatura humana, e as atende ou não, conforme Seu Divino Amor e Sabedoria. Portanto, não há nenhum de nós que tenha mais acesso a Deus do que os outros; nenhum privilegiado que pode orar e ser ouvido mais do que os outros; nenhum com dom especial de fazer sua oração ser mais ouvida do que as dos demais homens. Cada um de nós pode da mesma maneira voltar-se para Deus e falar com Ele, sem necessidade que outros o façam por nós. E quando intercedermos  diante de Deus por alguém, afastemos de nós a idéia de que estamos numa posição superior à daquele por quem estamos orando, pois todos nós pecamos e carecemos igualmente da graça de Deus.
Entretanto, é perfeitamente aceitável que, nas horas mais difícil, recorramos a um irmão e peçamos que ore conosco ou por nós, pois, às vezes, até nossa capacidade de falar com Deus parece estar perdida. Mas esta é uma prática de auxílio mútuo, um bom exercício de fraternidade, uma exceção e não a regra dentro dos planos Divinos.
Não nos esqueçamos de que não são nossas súplicas, por mais fervorosas que sejam, que irão mudar a sorte espiritual de alguém. Na verdade, a intercessão real que exercemos é um tanto limitada pela própria liberdade do indivíduo de determinar seu próprio destino, assim como essa mesma liberdade, se for mal exercida, limita a ação Divina de o salvar.
O que nos resta, então? O que estamos fazendo na intercessão? Será que não podemos fazer quase nada? Podemos, e muito. Quando nos ajoelhamos para falar com Deus a respeito de alguém estamos praticando um ato nobre e sublime. Em primeiro lugar, pelo fato de nos ajoelharmos para orar por alguém, já estamos vencendo a negatividade de nosso próprio, pois acreditamos que a salvação de cada um é possível a Deus e todos nós dependemos igualmente dele. E quando a pessoa por quem nos ajoelhamos para orar for alguém que nos maltrata e persegue, estamos vencendo em nossos corações o mal da inimizade, do ódio e da vingança em relação àquela pessoa, perdoando-lhe as faltas. Na verdade, estaremos criando uma esfera celeste de grande poder ao nosso redor, que nos dispõe a olhar para aquela determinada pessoa com um olhar humano, compassivo e de perdão. Ao invés de lhe causar mal, poderemos, mediante essa esfera celeste, vir a ser-lhe útil, quando a ocasião se nos apresentar. Mas enquanto aquela pessoa não reage positivamente aos sentimentos cristãos que adquirirmos por ela em oração, a intercessão de nada lhe adiantará.
Assim, o que a intercessão faz é especialmente abrir nossos próprios corações para uma esfera de uso, preparando-nos para sermos instrumentos de bênção  nas mãos de Deus em favor desta ou daquela pessoa, quando o coração dela também se abrir para a mesma esfera de comunhão espiritual. Até lá, o Senhor, que é o verdadeiro Mediador e Intercessor, estará à espera, aguardando que o homem reaja positivamente ao Seu Divino influxo de salvação. "Eis, estou à porta e bato; se alguém ouvir a Minha voz e abrir a porta... ...". Amém.

Lições: Mateus 6:1-15
AC 8705