Inimizade
Sermão pelo Rev.C.R.Nobre

"Se andardes nos Meus estatutos e guardardes os Meus mandamentos, e os fizerdes... perseguireis os vossos inimigos, e cairão à espada diante de vós"

Levítico 26:3,7

Desde a antigüidade prevaleceu na Igreja a crença de que aqueles que adoram a Deus têm privilégios especiais; que Deus os prefere acima dos outros, põe-Se ao lado deles e contra os seus inimigos. Em troca da fidelidade a Deus, a criatura humana teria à sua disposição o poder do Altíssimo, com o qual persegue e destrui todos os que considera inimigos.
Em todo o Velho Testamento, os inimigos são tratados com vara de ferro; pelos males que eles fazem aos fiéis, um Deus vingativo e rancoroso lhes retribui com males ainda piores. Lemos nas histórias, nos profetas e nos Salmos que, quando os adversários não são completamente arrasados pela pesada mão Divina, são envilecidos e tratados com desprezo, como foi o caso com os gibeonitas, feitos perpétuos rachadores de lenha e buscadores de água para o povo de Israel, porque não puderam ser mortos à espada. A condição inferior em que o inimigo era visto fica evidente pelas palavras do Salmo 110: "Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à Minha mão direita, até que ponha os teus inimigos por escabelo dos teus pés". Um povo de temperamento por cruel e vingativo, julgando-se melhor do que todos os outros, não podia ter idéia diferente a respeito de Deus.
Quando o Senhor veio ao mundo, porém, e instaurou uma nova dispensação religiosa, uma Igreja nova, abriu as mentes para uma nova compreensão de Sua Palavra e, conseqüentemente, de Si mesmo. Ficou claro então o que Ele já dissera desde o tempo do Velho Testamento, a saber, que Ele não tinha prazer na morte do ímpio; e mais, que a Sua misericórdia não se restringia só a uns poucos eleitos, mas se estendia a todas as criaturas, até os ingratos e maus. As crenças antigas, pervertidas pela ambição e pela ignorância humanas, tinham de ser reformuladas por essa nova revelação: "Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e aborrecerás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus; porque faz que Seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos" (Mat. 5:43-45). A lei que ia vigorar para a Igreja Cristã não podia ser a da retaliação, a letra fria e inclemente da antigüidade, mas a da caridade para com o próximo, lei que previa o perdão, a misericórdia e o esquecimento do mal ao invés da vingança.
O Senhor aprofundou a aplicação da lei judaica. Mostrou que os Dez Mandamentos deviam ser cumpridos não apenas nos atos, na conduta, mas também na intenção ou na mente. Por exemplo: se ao judeu não era lícito cometer adultério, para o cristão não seria lícito sequer olhar para uma mulher com a intenção do adultério. Se ao judeu não era lícito matar, ao cristão não seria lícito sequer ter tal intenção, e, ainda mais, não seria lícito sequer encolerizar-se contra o próximo: "Ouvistes que foi dito: Não matarás e quem matar estará sujeito ao julgamento. Eu, porém, vos digo que quem quer que se encolerizar contra seu irmão temerariamente, estará sujeito à gehena de fogo" (Mat. 5:21,22). "A causa disso é que tudo o que pertence à intenção pertence também à vontade e, portanto, em si, ao ato" (VRC 309). Em outras palavras, odiar é a mesma coisa que matar, espiritualmente considerando, já que quem odeia tem dentro de seu ódio o crime de assassinato em potencial, pois seria capaz de matar se o pudesse, isto é, se não tivesse receio das conseqüências negativas para sua vida social.
A advertência feita para os cristãos é pois muito séria: perante Deus, guardar rancor, alimentar sentimentos de vingança e mesmo de desprezo em relação a um inimigo ou a qualquer pessoa é o mesmo que matar. Aquele que odeia o próximo e o tem como inimigo é pois réu de juízo e está sujeito a "gehena de fogo", segundo a Lei Divina.
No entanto, devido à própria condição humana no mundo, é impossível que não tenhamos inimizades. Esta é uma realidade que, infelizmente, temos de assumir. Pela vida afora, adquirimos muitos amigos sinceros e verdadeiros, alguns mais  fiéis do que irmãos. Mas também adquirimos inimigos e muitos deles são nossos reais perseguidores.
À primeira vista, a idéia de termos de assumir que temos inimigos parece errado, coisa não cristã. Isto é porque o conceito tradicional de "cristão" no mundo evoca-nos a imagem piegas de um ser imaculado, todo bondade, um indivíduo ingênuo que se deixa espoliar pelos outros, o mártir que era devorado pelos leões. A compreensão meramente literal de versículos como o que diz: "ao que te ferir numa face, oferece também a outra" contribuiu para gerar essa imagem.
Nós, cristãos, para prestarmos nossos usos, precisamos viver no mundo entre as mais diversas espécies de pessoas e muitas vezes não temos escolha; encontramos algumas que realmente transpiram malícia, egoísmo, orgulho e, às vezes, os deveres de nossa obrigação nos impõe a convivência com elas, como o Senhor disse: "Eis que vos envio como ovelhas no meio de lobos". E o modo como fazemos ou deixamos de fazer determinadas coisas afeta diferentemente cada uma dessas pessoas. Conforme a reação que elas têm à nossa atividade, à nossa influência, um mesmo ato nosso pode em umas gerar amizade e em outras inimizade. Porque é realmente impossível agradar a todos, por mais bem intencionados que sejamos. Na realidade, é mesmo impossível agradar a alguém o tempo todo; e por esperar isso de nós e se frustrar, às vezes um amigo se torna inimigo. Por isso é que o próprio Senhor Jesus Cristo, que aqui veio para salvar toda a raça humana, teve uma multidão de inimigos e por eles foi perseguido. O Salmo 110 que citamos acima fala desses inimigos que se levantaram não só dentre os sacerdotes, fariseus e escribas, que se sentiram ameaçados por Ele e O quiseram matar, mas também inimigos que se levantaram dentre o povo, dentre aqueles tantos que Ele havia curado, porque o Senhor não lhes satisfez a expectativa de dominação e vingança sobre os romanos.
Mas em verdade o Salmo 110 não trata de inimigos naturais. No sentido interno, os "inimigos" que o Senhor subjugou são as falsidades e males, os inimigos reais de nossas almas. São essas falsidades e males que foram e aniqüilados pelo Humano do Senhor, após ser glorificado, ou seja, estar à mão direita ou no poder de JEHOVAH.
Sendo os reais inimigos as falsidades e males, não há como evitar tê-los. E tanto quanto alguém de nosso relacionamento aja pelo mal e pela falsidade, estará inevitavelmente como nosso opositor, se permanecemos na verdade. Assim, é impossível não se ter inimigos.
É claro que as inimizades podem evidentemente ter tido origem em nós: podem ter sido provocadas por nossa atitude proposital de ódio, vingança, desprezo ou desdém para com determinada pessoa. Se for este o caso, estaremos sendo inimigos para aquela pessoa. Neste caso, a Palavra não nos deixa dúvida quanto ao perigo espiritual que corremos: "réu de juízo" e "gehena de fogo".
Mas as inimizades também se fazem gratuitamente, sem que tenhamos contribuído para isso, seja porque nossa conduta, mesmo sendo correta, não agrada a alguém, seja porque uma verdade que dizemos sem a intenção de condenar o atinja ou seja por uma simples antipatia, às vezes gerada pelo que se chama transferência, isto é, quando uma pessoa transfere a nós o ódio ou desprezo que nutria por alguém que calhou de se parecer conosco. Nesses casos, as pessoas são de fato inimigas para conosco. Mas se nós não contribuímos para a inimizade, não seremos, de nossa parte, inimigos para elas. Assim foi o caso dos inimigos do Senhor: todos eram inimigos dEle, pois lhe devotavam o mal, mas Ele nunca foi inimigo de ninguém.
O que faz alguém ser inimigo é a presença do ódio ou do desprezo no coração. Por isso é possível que se tenha inimigos, mas por isso também é que não podemos deixar que as pessoas nos tenham como tal. Não nos é lícito nutrir ódio, vingança e desprezo por pessoa alguma, ainda que a pessoa nutra esses sentimentos em relação a nós. Pelos nossos atos, devemos demonstrar a ela não lhe desejamos aquilo de ruim que ela nos deseja; e isso não para sermos bonzinhos e assim superiores à pessoa, tida como má, pois também somos maus interiormente; mas fazemos isso porque um dia adotamos em nossa consciência a lei espiritual da caridade, cuja primeira coisa é não fazer o mal, e estamos procurando agir em conformidade com essa lei para sermos salvos, pela misericórdia Divina.
Como Mandamento para o cristão, o Senhor nos diz que devemos amar nossos inimigos. E amar, nesta situação, não quer dizer que devamos abraçá-los, beijá-los fraternalmente e forçar convivência com eles, pois isso seria, quando muito, instituir a hipocrisia. Amar os inimigos é essencialmente, querer o bem deles. Num caso, por exemplo, de um criminoso, querer-lhe o bem é querer que ele seja julgado e cumpra a pena, para sua correção e disciplina. No caso de uma pessoa que se tornou nossa inimiga pelo fato de lhe termos dito a verdade, querer-lhe o bem não é voltarmos atrás e nos retratarmos da verdade dita, absolutamente, mas, fazê-la compreender que a verdade não é para condenar, mas para livrar da condenação do mal. É preciso que a pessoa sinta que quando reprovamos os atos e as palavras dela, não a estamos reprovando como pessoa nem lhe desejando o mal.
A nossa atitude correta quanto às inimizades é, então, orar a Deus e banir do coração o ódio e a vingança, isto é, deixar de fazer o mal; em seguida, se houver ocasião, prestar bons usos à pessoa em questão, se isto depender de nós. Essa atitude vai fazer uma diferença tremenda na outra vida, porque na eternidade não só os amigos, mas também os inimigos se encontram e os sentimentos que nutriam se manifestam francamente. O que tivermos cultivado aqui, em nosso coração, em relação a quem quer que seja, lá aparecerá patentemente nos nossos atos.
Lemos no Diário Espiritual (4385): "Todos os maus estados que têm relação com os inimigos retornam na outra vida e são apresentados diante de tais inimigos, mesmo os estados dos justos e bons, pois não há nada que não retorne... Quando alguém nutre ódio, seu ódio retorna com  propensão de destruir, o que é uma característica do ódio, como é também o caso dos justos nas inimizades às quais se ajuntou o desprezo. Multidões têm nutrido esses estados; têm desprezado os outros, considerando-os seus inimigos... Mas nos justos nem o ódio, nem a vingança, nem a fraude permanecem fixos; conseqüentemente, eles são facilmente pacificados e reconciliados. Quando a qualidade da outra parte é percebida, e quando foi visto que a pessoa foi movida pelo ódio, então eles são separados, visto que não concordam. [Mas] se ao desprezo e à inimizade não foram associados o ódio e a vingança, eles são levadas pelo Senhor a não serem inimigos um do outro, ou, de alguma maneira, que o justo não seja um inimigo para a outra pessoa, mas que queira o seu bem e isto seja seu desejo, ainda que o outro seja um inimigo para ele. Isto eu aprendi por inúmeras experiências".
Devemos deixar sempre ao inimigo a porta aberta, para que, sendo sua vontade, ele possa se reconciliar conosco. Mas nosso dever cristão nos manda ir além e tomar a iniciativa da reconciliação, como lemos no Evangelho: "Se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão, e depois vem e apresenta a tua oferta" (Mat. 5:23-24). Como é de se presumir, é bem possível que a pessoa, quando procurada, nos ignore e simplesmente não queira reconciliação conosco. Isto não nos cabe mudar. Quanto a nós, devemos deixar claro que não queremos nutrir-lhe ódio, desprezo ou vingança.
Enquanto estivermos neste mundo, estamos em tempo de remover de nossos corações todos os sentimentos maldosos em relação ao nosso próximo. Se esses sentimentos são alimentados ou se nós levianamente não prestamos atenção a eles, podem ficar tão enraizados que só muito dificilmente poderão ser extirpados na outra vida. Isto é que entendemos nestas palavras do Senhor: "Concilia-te depressa com o teu inimigo, enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o inimigo te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e te encerrem na prisão. Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil" (Mat. 5:26). Amém.

Lições: Salmo 110; Mateus 5; DV 67-73.