Indignos que se aproximam dignamente

Sermão pelo Rev. Cristóvão R. Nobre

"Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador"

 (Lucas 18:13)

Em nossa liturgia, todas as vezes que celebramos Santa Ceia, ouvimos a instrução das Doutrinas Celestes: "O Senhor está presente naqueles que se aproximam dignamente da Santa Ceia, e lhes abre o céu...  Da Santa Ceia se aproximam dignamente os que estão na Fé do Senhor e na Caridade em relação ao próximo; assim, os que são regenerados" (VRC 698, 702). E temos aprendido que a Santa Ceia é o ato mais santo do culto. Por esse motivo, tomamos com muita seriedade e reverência essa exortação das Doutrinas: devemos participar dignamente desse santo sacramento.
Somos então levados ao dever de fazer um auto-exame sobre a natureza de nossos atos, palavras, e também de nossas intenções e pensamentos, a fim de reconhecer os males e afastá-los como pecados contra Deus.
Mas quando fazemos esse auto-exame, quando analisamos honestamente os motivos por trás de muitos de nossos atos, os sentimentos por trás de nossas palavras, descobrimos que temos cometido faltas. Nossa consciência nos aponta os enganos, as fraquezas e as tendências ruins ainda presentes em nossa vontade. Compreendemos que, se formos esquadrinhar todas as nossas ações e atitudes, sempre veremos algo condenável. E dizemos à nossa consciência como o salmista disse a Deus: “Não entres em juízo com teu servo, porque à Tua vista não se achará justo nenhum vivente” (143:2).
Por causa dessa inevitável conclusão do auto-exame, nós nos deparamos com uma questão que é séria: Será que somos dignos de nos aproximar e tomar a Santa Ceia? Quem será que, examinando-se honestamente, pode dizer que se aproxima dignamente? Como devemos fazer? Pois é dito também que a Santa Ceia é condenação para os que dela se aproximam indignamente.
Há pessoas que crêem que não devemos nos examinar, porque, acreditam, nossos pecados já foram perdoados por Jesus e já estamos limpos. E por isso nunca se examinam. Mas essas fazem como doentes de uma moléstia grave e que fingem não ter doença alguma, como se a atitude de ignorar a sua doença fosse curá-la.
Há outras que julgam que temos, sim, de nos examinar e nos achar limpos, porque, segundo acreditam, só pode tomar a Santa Ceia aquele que estiver sem culpa, portanto limpo e puro diante de Deus. Este é outro engano. Se assim fosse, a ninguém seria possível receber os benefícios da Santa Ceia, porque, diante do Senhor, não há nenhum justo, nem sequer um.
Mas, prestemos atenção ao que é dito na lição das Doutrinas: “Os que se aproximam dignamente”. Não se diz: “Os dignos que se aproximam”. Parece não fazer diferença, mas é a chave de nossa compreensão. A dignidade não é qualidade da pessoa, não está nela. A dignidade está na maneira como a pessoa se aproxima da Santa Ceia. Então, como veremos adiante, é possível que a pessoa se examine, se considere indigna, mas em seguida se aproxime dignamente e receba o sacramento. É assim que nós, pecadores, falhos, passíveis de errar, podemos nos chegar ao Senhor e receber dele a vida.
Aproximar-se dignamente é, portanto, tendo visto os males, tomar uma atitude correta em relação a eles e cumprir isso, com esforço e honestidade. Assim nos aproximarmos dignamente.
Em toda a parte na Palavra aprendemos que a dignidade, a pureza e a inocência não são jamais qualidades de uma pessoa, pois pertencem ao Senhor.
A Palavra diz que não é nenhum justo, mas, freqüentemente, chama de “justo” o homem que segue a Deus. Quem está sendo regenerado, quando olha para si mesmo, não se vê “justo”, de modo algum, pois tem consciência de suas injustiças. Mas é chamado justo por causa dos atributos de Deus que estão nele, por causa dos atos de justiça que o Senhor o conduz a praticar. Da mesma forma quando se diz que o homem é bom. Bom, mesmo, só há um, Deus. Mas o afastamento do mal faz que a bondade Divina entra na vida, pela qual o homem é chamado bom, por pura misericórdia do Senhor, que quer atribuir o bem ao homem, ainda que o homem não o mereça. A bondade e a justiça que Deus imputa ao homem é como um manto riquíssimo que um rei dá ao seu súdito, miserável e nu, para que ele se cubra de sua nudez e se aqueça. Seria louco esse súdito se achasse que aquele manto o faz igual ao rei.
Aqueles que se consideram a si próprios sem pecados, que se acham santos, justos e puros, são como crianças nas questões da fé. São retardados espirituais e não sabem o que realmente são nos seus interiores. E mais ainda se se comparam com os outros e se vêem a si mesmos mais dignos e mais merecedores das graças de Deus do que os outros. Estes estão enganados e são comparados, no Apocalipse, aos da Igreja de Laodicéia, aos o Senhor dirigiu a seguinte mensagem: (3:17-19): “Como dizes: Rico sou, e estou enriquecido, e de nada tenho falta; e não sabes que és um desgraçado, e miserável, e pobre, e cego, e nu; aconselho-te que de mim compres ouro provado no fogo, para que te enriqueças; e roupas brancas, para que te vistas, e não apareça a vergonha da tua nudez; e que unjas os teus olhos com colírio, para que vejas. Eu repreendo e castigo a todos quantos amo; sê pois zeloso, e arrepende-te”.
Lemos em VRC, no capítulo sobre a Santa Ceia, que há três coisas, então, que fazem com que nos aproximemos dignamente da santa Ceia: 1 - o reconhecimento do Senhor; 2 - a caridade, que é fugir dos males e, depois, fazer os bens; 3 - a fé. A caridade e a fé conjuntam o homem ao Senhor. Por meio do reconhecimento de Deus, rejeição dos males e a fé, o homem é regenerado. Por isso, quem está interiormente nesses três essenciais, estes são os que se aproximam dignamente da Santa Ceia (VRC 703).
Então, estas são as virtudes do Senhor, que Ele implanta em nós como um entendimento novo e uma vontade nova, chamados nossa  consciência. São as únicas coisas realmente dignas em nós. Lemos naquela obra: “O amor mesmo em relação ao próximo e a fé mesma vêm do Senhor, só, e são dadas, um e outra, ao homem, quando este, por seu livre-arbítrio, faz naturalmente bem ao próximo, crê racionalmente nas verdades e eleva seus olhos para o Senhor, e fez estas três coisas porque foram ordenadas na Palavra..." (VRC 706).
É certo que, quando nos examinamos, sempre temos presente diante de nós a convicção de nossa própria indignidade. Mas o Senhor nos ama. Como diz a Palavra, Ele conhece a nossa estrutura e sabe que somos pó. Então, o fato de nos examinarmos e nos vermos impuros, não é porque o Senhor Se compraz com nossa humilhação. Antes, é como o exame que um médico pede ao paciente. O exame não é para outra coisa senão para que se conheça com clareza a enfermidade que põe em risco a vida do doente. E quanto mais bem feito for o exame, melhor o diagnóstico. Assim, o auto-exame e a consciência da própria indignidade não são fins em si mesmos, mas os meios pelos quais nos colocamos em condição própria para receber os benefícios da vida espiritual.
Reconhecemos nossos pecados assim como o doente que precisa admitir que tem uma doença, para que o médico lhe dê o remédio certo que, se for tomado segundo a prescrição, lhe trará a cura.
Ao invés de nos abater, o Senhor nos levanta do pó. Não é Ele que nos humilha, mas o pecado que há em nós. Ao invés de nos humilhar, Ele nos exalta.
O Senhor "disse também esta parábola a uns que confiavam em si mesmos, crendo que eram justos, e desprezavam os outros: Dois homens subiram ao templo a orar; um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, estando em pé, orava consigo desta maneira: Ó Deus, graças te dou, porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano. Jejuo duas vezes na semana e dou os dízimos de tudo quanto possuo. O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia  no peito, dizendo: Ó deus, tem misericórdia de mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque qualquer que a si mesmo se exalta será humilhado, e qualquer que a si mesmo se humilha será exalto" . (Lucas 18:9-14).
Aproximar-se dele com dignidade é, portanto, reconhecer as próprias faltas, mas desejar sinceramente não mais cometê-las. É saber que se pode errar, mas nunca se conformar com o erro e aceitá-lo com naturalidade.
Nós nos aproximamos dignamente da Santa Ceia não quando nos vemos sem pecados, mas quando estamos empenhados firmemente na luta constante para não praticá-los mais e melhorar as nossas vidas. E essa luta vai continuar enquanto aqui vivermos. E mesmo nos céus, nunca nos veremos como bons e justos, ou que já melhoramos o suficientes.
Ter a honestidade de admitir os próprios erros e ter a coragem de repará-los; isto é o que nos faz dignos.
Por isso, que cada um se examine diante do Senhor. Que veja os males em si, reconheça-os como pecados contra Deus. Confesse-os. Em seguida, suplique ao Senhor o poder e a determinação para não cometê-los nunca mais. E tome cada um a resolução de começar vida nova, sem a qual estaremos perdidos pela eternidade.
Sempre que fazemos isso, com consciência de nossas falhas e buscando a correção, tomamos a resolução de deixar um mal, somos confrontados pelos maus espíritos, que querem nos desanimar. Em nossa mente, percebemos as sugestões infernais que parecem vir de nós, mas vêm realmente dos infernos.
Muitas vezes, ouvimos a acusação: - Você é fraco. De fato, somos. Não adianta fingir força. É melhor admitir e dizer: Sou fraco, sim. Mas é exatamente por isso que estou aqui, buscando a força espiritual do meu Senhor, que é Deus onipotente.
Ou, às vezes, ouvimos: “Você não vai conseguir!”  Não adianta se enganar, dizendo, “eu consigo, sim”. É melhor dizer: “Eu, mesmo não conseguiria, mas vou experimentar fazê-lo pelo Senhor. Ele conseguirá por mim”.
Ou então: “Essa luta é árdua, você não vai ter condições de vencer”. Realmente, por mim mesmo, não, mas estou confiando na vitória que vem do Senhor vence.
E, com muita freqüência, ouvimos também: “Não adianta você tentar mudar agora, porque daqui a pouco voltará ao pecado. Você já tentou tantas vezes e falhou. Você não vai permanecer na vida do bem. Amanha você voltará ao mal”.
De fato, isto é verdade. Quantas vezes tentamos abandonar o mal hábito e falhamos. Conseguimos resistir por uns dias, mas retornamos. E, o pior, cada vez ficamos mais desanimados para continuar. Mas a resposta, neste caso é: Pode ser. É possível, sim que amanhã eu volte ao mal. Mas amanha é amanha, hoje é hoje. Vou deixar o amanhã para amanhã e vou cuidar apenas do hoje. E o que é importa mais agora é que hoje, neste momento, neste instante, estou tomando a decisão vital de deixar o mal, escolher a vida, o bem. Nesta hora, quero permanecer fiel ao Senhor. Na próxima hora será outra decisão. Quando chegar lá, farei de novo esta escolha. Hoje, sirvo ao Senhor. Amanhã será um outro dia. Como diz a Palavra, “Basta a cada dia o seu mal”.
Quando temos esta condição bem clara em nossas mentes, então estamos, pela primeira vez, nos aproximando da santa ceia dignamente.
Então, não somos dignos de nos aproximar da santa mesa que o Senhor nos preparou. Não somos dignos de receber os benefícios da sabedoria e do amor celestes, que nos realizarão como seres humanos, como anjos, daqui mais uns poucos anos no futuro. Mas se aceitarmos com franqueza a nossa dependência da misericórdia do Senhor;  se tomarmos a decisão firme de lutar, sem nos conformamos com a miséria dessa condição, nossa disposição, então estaremos numa condição digna, propícia para entrarmos em conjunção com o Senhor e recebermos dele a salvação.
Aproximemo-nos, pois, dignamente do Senhor, de Sua mesa, comamos do Pão e do Vinho, Seu Divino Corpo e Sangue, isto é, Seu Bem e Verdade, em forma de caridade e a fé, porque aqui está o único e vital sustento de nossa vida espiritual. Amém.

 

Lucas 18
Salmo 143
VRC 699