Servo fiel

Sermão pelo Rev. Cristóvão R. Nobre

 

“Bom e fiel servo, sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei”.

 

 Mateus, 25:21

 

Sempre que lemos esta parábola, vem-nos à mente a questão da fidelidade sobre as pequenas coisas. As coisas aparentemente insignificantes e desprezadas de nossos deveres.
Lemos na parábola que um certo homem, indo para fora da terra, chamou os seus servos e confiou-lhes os seus bens; a um deu certa quantia do dinheiro chamado talento, 5 talentos, a outro 2, a outro 1, mas a cada um segundo a sua capacidade.
Duas lições principais se nos apresentam logo de início nesta parábola. A primeira, é que tudo o que pertence ao homem é, na realidade, uma dádiva que lhe foi dada pelo Senhor, só, para que, por meio do melhor uso possível dessa dádiva, o homem adquira para si a vida eterna. A segunda lição é que, ao conceder esses dons, o Senhor deixa o homem no mundo livre para usar, empregar ou desperdiçar o que Deus lhe deu, em inteira liberdade espiritual, para que assim, ao escolher a vida que terá na eternidade, esta vida seja identificada como sua.
No entanto, como o Senhor tem inteira ciência de todas as coisas, das que foram, são e virão, Ele conhece de antemão todos os estados de toda criatura humana. Conhece o que homem será, o que o homem escolherá fazer e, por conseguinte, o que o homem fará. Em razão disso, o Senhor provê para cada um as condições adequadas para que os talentos dados possam ser utilizados em plenitude. E porque Ele previu, Ele provê dando a cada um a situação de vida natural mais adequada ao desenvolvimento da vida espiritual, ao mesmo que tempo, pela Sua infinita misericórdia, priva o homem de condições e recursos que poderiam ser empecilhos para aquela vida. Isto é o que está envolvido na expressão “a cada um segundo a sua capacidade”.
O servo que recebeu apenas dois talentos, recebeu muito menos que aquele que recebera cinco, evidente. Isto se formos levar em conta os valores absolutos dos dons recebidos. Mas, na realidade, a distribuição dos bens foi eqüitativa e perfeitamente justa, porque a cada um deles, tanto o que recebeu cinco, quanto o que recebeu dois e o que recebeu somente um, a cada um deles foi dada a mesmíssima oportunidade: se fizessem bom uso do valor recebido, teriam sua recompensa. Nesses termos, não fazia a mínima diferença para o que recebera dois nem para o que recebera um, se as condições e os esforços fossem desiguais, porque a possibilidade de usufruir da beneficência do patrão eram idênticas para os três.
E, de fato, verificamos isto pelo servo que recebeu dois. Mesmo tendo tido menos da metade de recursos que o outro, pôde, no final, ouvir da boca do patrão as mesmas palavras de elogio, recompensa e benefício que o que recebera cinco ouviu. “Bem está, servo bom e fiel. Sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor”. O servo bom e fiel foi feliz porque zelou bem pelo pouco que recebera, e assim, tanto quanto o anterior, se habilitou para administrar o muito.
A questão da fidelidade sobre o pouco leva nossa reflexão a várias outras lições de importância prática em nossas vidas. Uma delas é que não devemos nos lamentar de nossa sorte, se porventura achamos que recebemos menos do que todo mundo; ou que dispomos de insuficientes recursos para o que queremos fazer; ou que a vida (ou Deus) seria injusta conosco ao nos privar de certas condições que, ao nosso ver, deveríamos ter recebido.
A Palavra nos mostra, nesta história, que, na verdade, existe uma  perfeita justiça da distribuição Divina de bens: ninguém recebe mais nem menos do que precisa, mas o suficiente e o necessário para que dali obtenha sua vida espiritual. E o que a Divina Providência concede parece pouco somente quando se faz comparação e se julga pelo valor relativo. O que importa é que, se a esse pouco a criatura humana souber dar o devido valor, e daí fizer o melhor uso, tornar-se-á muito, não importa o quanto seja.
Ao falarmos de “pouco”, “muito”, “suficiente” e “necessidades”, não estamos nos referindo somente às condições materiais, como as provisões necessárias para a vida do corpo. De fato, quanto aos recursos materiais, pode realmente haver desigualdade e injusta distribuição, mas isto não vem do Senhor, e sim das próprias condições de vida material que o gênero humano provê para si. A Deus não cabe a culpa se os governos seguem leis injustas, se juizes fazem julgamentos torcidos, se comerciantes exorbitam no lucro, se legisladores legislam para seu próprio interesse, enfim, se os depositários da riqueza material são roubadores e desonestos no seu dever. Por conta disso, existe a falta de acesso aos bens públicos, à educação e às condições dignas de vida para a maioria. Realmente, enquanto existir injustiça na criatura humana, estas situações são inevitáveis, razão porque o Senhor disse, certa vez: “Os pobres sempre os tendes convosco”.
Não se trata de uma aceitação passiva das distorções e injustiças. Ao contrário, o cristão, ao ter ciência disso deve, na sua esfera de influência como indivíduo, esforçar-se para, na medida de sua capacidade, reparar o que estiver ao seu alcance. Mas esta é a área da vida moral e civil. À  Igreja, como instituição, não cabe tomar a frente deste concerto, porque são da alçada e da competência de legisladores, governantes e juizes justos, escolhidos e apoiados por cada um conforme sua consciência.
À Igreja cabe, sim, prover a instrução espiritual e promover os bens eternos, que se referem ao Reino de Deus. Conquanto estes bens só podem ser promovidos e exercitados dentro da esfera dos bens morais e civis, não cabe à instrução espiritual da Igreja descer ao detalhe de dizer como cada bem espiritual há de ser realizado e materializado no bem moral e civil, porque isto é da área da livre consciência de cada um, do modo segundo o qual cada um pratica o amor espiritual na sua vida terrena.
Quando porém entramos na aplicação espiritual desta parábola, tomamos conhecimento de os talentos são aqui representados pelos princípios da fé que adquirimos pela instrução, e, também, pelas condições espirituais em que nossa regeneração deve se processar. No sentido espiritual, os números não representam quantidade, mas qualidade. Assim, aqui estão representadas as diversas concepções da fé, recebidas de diferentes graus de instrução nas coisas espirituais. Cada um recebe de Deus os princípios de fé que serão necessários e suficientes para sua regeneração, seu novo nascimento espiritual.
Nesse nível de compreensão, a distribuição que Deus faz é perfeitamente justa e equilibrada, porque cada ser humano recebeu e recebe toda instrução de que necessita seu espírito a fim de se tornar cidadão dos céus. Não importa se foi nasceu numa civilização primitiva, habitante de uma ilha desconhecida aonde nunca chegou a mensagem da Palavra judaico-cristã, ou se um profundo conhecedor da Bíblia e das doutrinas de todas as religiões. Cada um deles recebeu o montante de que sua alma precisaria a fim de florescer para a vida de usos nos céus.
Segundo esta concepção, não podemos rejeitar o que recebemos, pelo mau emprego ou pela lamentação de ter sido pouco. Porque, se formos fiéis aos princípios de fé que recebemos, aplicando-os a todas as áreas de nossas vidas, o Senhor nos agraciará com o bem celeste ao qual Ele nos preparou, que pode ser o mesmo grau de bem que Ele também preparou para uma pessoa de crença inteiramente distinta da nossa. Tanto faz, portanto, termos recebido cinco, dois ou um: nossas oportunidades de salvação e bem na eternidade serão as mesmas que Ele destinou a todo ser humano.
Esta consideração nos leva, então, a um outro ponto: não podemos almejar coisas maiores enquanto, insatisfeitos com nossa sorte atual, desprezarmos as coisas pequenas que o Senhor nos confiou para dela zelarmos.  Às vezes nossos deveres parecem insignificantes e de pouco efeito, mas, se nos os recusarmos por esse motivo, jamais alcançaremos a promessa. Nunca desempenharemos bem as coisas grandes se não dermos a importância devida às coisas pequenas.
Servir a Deus, para algumas pessoas, é sair e ir fazer coisas grandiosas, diferentes. Mas se esquecem que o serviço de Deus começa em sermos fiéis e zelosos naquelas que estão diante de nós. Muitas vezes, nossos olhos estão tão elevados para as coisas ao longe, que tropeçamos naquilo que está debaixo de nosso nariz.
Perdemos boa parte de nosso tempo nos queixando de nossas limitações em vários níveis, por não podermos realizar muitas coisas que desejávamos. Mas se não formos fiéis nas pequenas coisas que temos a fazer, como podemos esperar que seremos fiéis nas grandes? Porquanto todas as grandes coisas são edificadas a partir das menores e mais insignificantes. Se o Senhor não nos deu certas condições, e se Ele não vier a nos dar, certamente é porque realmente não teríamos sabido fazer bom uso delas. O que o Senhor nos deu, e o que Ele vier a nos dar, será o suficiente para nosso bem na eternidade. Se fizermos bom uso desse pouco que temos, estaremos habilitados a alcançar o bem maior.  Ouviremos do Senhor: “Bom e fiel servo, sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei”. Amém.