Os sete dias da criação

O dia terceiro

 

Sermão pelo Rev.Cristóvão R.Nobre

"E disse Deus: Ajuntem-se as águas abaixo do céu em um único lugar, apareça o seco. E foi feito assim. E chamou Deus ao seco, terra; e ao ajuntamento das águas chamou mares; e viu Deus que era bom. E disse Deus: Faça germinar a terra a erva tenra; a erva dando semente; a árvore de fruto dando fruto, segundo a sua espécie, na qual esteja sua semente, sobre a terra. E foi feito assim. E produziu a terra erva tenra, a erva dando semente, segundo a sua espécie, e a árvore dando fruto, no qual estava a sua semente, segundo a sua espécie. E viu Deus que era bom. E houve tarde, e houve manhã, o dia terceiro." (Gên.1:9-12)

 

Na série de estudos dos Arcanos Celetes, já vimos que os sete dias da criação em Gênesis representam os sete estados da criação espiritual do homem ou sua regeneração.
Como foi visto, a expressão "no princípio" significa o primeiro período da nova criação do homem, que vai da infância até à idade adulta, pouco antes da regeneração. Nesta fase, a criatura humana se acha numa condição de completa carência; seu caráter espiritual ainda é uma massa caótica, sem forma e vazia. Em sua vontade predominam afeições e sentimentos mundanos e corpóreos, chamados cobiças. Como não possui o bem genuíno, que é espiritual, o homem é comparado a uma "terra vácua". Em seu entendimento predominam idéias e conceitos derivados de suas cobiças. Como não passam de enganos dos sentidos e ignorância acerca da verdade, são, por isso, chamadas trevas, que estavam sobre as faces do abismo de sua natureza irregenerada.
Mas o homem não está desamparado. A misericórdia Divina está sobre ele, conduzindo-o a que adquira verdades em que o Senhor possa influir para assim transmitir-lhe a verdadeira vida. Essas verdades, que o homem apreende sobretudo na infância, são chamadas relíquias, porque são encerradas de um modo especial em sua mente e ali guardadas para o uso futuro da regeneração. Sobre as relíquias o Espírito de Deus agirá como se fosse uma galinha chocando os seus ovos, transmitindo-lhe o calor vital, até que, na época propícia, as verdades venham à luz da consciência do homem.
Quando isto acontece, diz-se que Deus cria a luz. Ela, de fato, já existia, pois que Deus é a Luz mesma. Todavia, do ponto de vista do homem, a luz espiritual é criada no dia em que ele enfim compreende que existem um bem e uma verdade reais e absolutos e que estão fora e acima dele. Até ali, ele chamava de bem tudo o que agradasse o seus amores, e verdadeiro tudo o que os justificasse e favorece. Mas agora vê a luz, que é boa, porque vem do Senhor; sabe que o Senhor é o Bem mesmo e a Verdade mesma e que fóra dEle não há salvação. Esta concepção é a primeira parte do novo nascimento, por isso chamada: "o dia primeiro".
No segundo estado faz-se uma reorganização do intelecto do homem, uma reforma em seu entendimento. Ele passa a ter noção de que existe o homem interno e o externo, que são muito distintos entre si. Distingue entre as coisas que são do Senhor e as são suas próprias. Acima, agora, são vistas as cognições da fé, as verdades espirituais apreendidas, e abaixo os conhecimentos e fatos da experiência dos sentidos. Isto é representado pelas águas que o Criador mandou distinguir: umas ficaram em cima, outras embaixo e, no meio, a expansão então criada, chamada "céu", que é o homem interno. Há a tarde e a manhã, o dia segundo.
A respeito do homem interno e externo, lemos na obra VERDADEIRA RELIGIÃO CRISTÃ (VRC): "O homem foi criado de tal sorte, que está, ao mesmo tempo, no mundo espiritual e no mundo natural... e como foi criado assim, é por isso que lhe foi dado um Interno e um Externo; um interno pelo qual está no mundo espiritual; um externo pelo qual está no mundo natural. ...Em cada homem homem há um interno e um externo, mas de um modo nos bons e de outro modo, nos maus; o interno nos bons está no céu e na luz do céu, e o externo está no mundo e nas luz do mundo; e esta luz neles é iluminada pela luz do céu... Mas nos maus o interno está no inferno e na luz do inferno, luz que relativamente à luz do céu é uma obscuridade; e seu externo pode estar em uma luz semelhante àquela em que estão os bons... daí vem que os maus podem falar e ensinar sobre a fé, sobre a caridade e sobre Deus, mas não pela fé, nem pela caridade e nem por Deus, como os bons" (401).
"E disse Deus: Ajuntem-se as águas abaixo do céu em um único lugar, e apareça o seco. E foi feito assim. E chamou Deus ao seco, terra; e ao ajuntamento das águas chamou mares; e viu Deus que era bom".
Entramos agora no terceiro dia ou estado sucessivo da nova criação. É o estado de penitência, da luta entre o homem externo e o homem interno, com vista à regeneração. O ajuntamento de águas em um só lugar é quando começa a existir a consciência do homem. As águas assim reunidas são os princípios da fé agora classificados na memória; na fase de instrução acerca da nova vida, ele acumula conhecimentos e formula seus doutrinais, os princípios de sua crença ou seu credo. Esse acúmulo de conhecimentos é chamado "mares", na Palavra. A partir deles o homem procurará agora se guiar. Ele aprende que é preciso começar a renunciar os males e começar uma nova vida, se quiser ter a salvação; e se propõe, então, a mudar a vida de seu homem externo, aqui chamado "o seco" ou "terra" que aparece quando as águas se ajuntam em um só lugar.
A respeito do uso desses conhecimentos na regeneração, leiamos o que está na obra NOVA JERUSALÉM E SUA DOUTRINA CELESTE (NJDC): "Ninguém pode ser regenerado se não souber as coisas que pertencem à vida nova, isto é, à vida espiritual: ...são os veros que é preciso crer, e os bens que é preciso fazer; aqueles pertencem à fé estes à caridade. Ninguém os pode saber por si mesmo, pois o homem não apreende senão o que vem ao encontro dos seus sentidos; é por aí que ele adquire a luz... natural; por esta luz ele vê unicamente as coisas que pertencem ao mundo e as que lhe pertencem, mas não as que pertencem ao céu, nem as que pertencem a Deus; estas, ele deve aprendê-las pela revelação. Portanto deve aprender que o Senhor, que de toda eternidade é Deus, veio ao mundo para salvar o gênero humano; que a ele pertence todo poder no céu e sobre a terra; que tudo o que é da fé e tudo o que é da caridade, por consequência, todo vero e todo bem, vêm dEle; que há um céu e que há um inferno; que o homem deve viver eternamente: no céu, se agiu bem; no inferno, se agiu mal" (177).
"E disse Deus: Faça germinar a terra a erva tenra; a erva dando semente; a árvore de fruto dando fruto, segundo a sua espécie, na qual esteja sua semente, sobre a terra. E foi feito assim."
Aqui, a terra começa a produzir algo. Ora, se a "terra" é o homem externo, vê-se claramente que essas produções são as primeiras obras que o cristão começa a praticar quando está sendo regenerado.
Com efeito, inspirado pelos conhecimentos religiosos (os "mares" ou "águas ajuntadas em um único lugar"), o homem natural começa a vida de caridade, como a terra começa a produzir o verde, a semente, a árvore e o fruto.
Alguém poderia supor que o homem, nessa fase da regeneração, começa a fazer os bens, e que essas produções da terra são os bens da caridade espiritual que ele então pratica. Mas não é assim. Essas obras que a terra ou homem externo produz não são ainda a caridade.
Se quisermos compreender bem o que está envolvido na representação da terra produzindo a erva tenra, a erva dando semente e a árvore frutífera, precisamos rever o que as Doutrinas Celestes nos ensinam sobre a caridade. Na obra VRC, lemos: "A caridade e as boas obras são duas coisas distintas. (...) A primeira coisa da caridade é afastar os males; e a segunda é fazer os bens que são úteis ao próximo. ...Sabe-se que o mal tem sua sede na vontade de cada homem desde o nascimento... quanto mais (o mal) não é afastado, tanto mais o bem que ele faz é impregnado desse mal, pois então o mal está interiormente no bem, como a noz na casca e como a medula no osso; assim, embora o bem que é feito por um tal homem se apresente como um bem, contudo, acontece que interiormente não é um bem, pois é como uma casca brilhante que encerra uma noz roída pelos vermes... O homem então é uma árvore cuja raiz está gasta pela velhice e que, entrentanto, produz frutos, os quais no exterior parecem saborosos e de bom uso, mas estão no interior estragados e não têm utilidade alguma." (420,422,435).
O que se passa com o homem nesse terceiro estado, é o seguinte: as obras que ele então começa a praticar -a erva tenra, a erva dando semente e a árvore de fruto- são feitas sob a inspiração das verdades, os "mares", mas os motivos segundo os quais ele as pratica são todos oriundos das cobiças do amor irregenerado de si e do mundo. Ele pensa que faz tais bens e fala tais verdades por si mesmo. Pensa, por conseguinte, que é bom, que já está regenerado e santificado. Por assim pensarem, alguns, até, põem-se numa posição altiva em relação aos outros; chamam-se a si mesmos "salvos" e aos outros "pecadores" e "perdidos", e se vangloriam dos conhecimentos da fé que possuem e da vida de santidade que aparentam viver. Quando, todavia, a verdade é que sua regeneração mesma ainda nem se iniciou.
O fato é que, nesta fase, o homem visa ao mérito próprio nas obras que pratica; acha que, como agora está vivendo na bondade prescrita pela religião, merece obrigatoriamente receber o céu e todas as bem-aventuranças. Na realidade, o que ele quer, se bem que inconscientemente, é comprar a salvação com suas boas obras. E, dizem os ARCANOS CELESTES neste ponto, "quem pensa que o bem e a verdade vêm de si mesmo, não tem ainda a vida da verdadeira fé, a qual pode vir a receber, porém, mais tarde." (29).
Visto que tais obras ainda não têm a vida verdadeira, são chamadas "inanimadas", e a vida elas que têm é comparada à vida dos vegetais: não é, ainda, realmente vida, mas também não é completamente a morte. Porque, neste estado, o homem "está no estado de preparação para receber a vida da fé.. . que ele pode vir a receber mais tarde" (29). Em outras palavras, a despeito dos motivos próprios do homem, como o mérito, o orgulho e a vaidade, estarem no seio de seus atos, o Senhor, não obstante, o está conduzindo para a vida verdadeira da fé, como veremos pelo é dito do quarto, quinto e sexto dias da criação. Neste terceiro dia, o homem ainda é espiritualmente morto, ou, quando muito, tem uma vida semelhante à do embrião ou do feto no útero.
"E disse Deus: Faça germinar a terra a erva tenra; a erva dando semente; a árvore de fruto dando fruto... E foi feito assim". Agora, ao lermos novamente este versículo, podemos ver mais coisas e tirar algumas conclusões.
Primeira: Se, por um lado, as obras do homem são impregnadas com o mal de seus amores a ponto de não terem ainda vida, vemos, por outro lado, que, mesmo essas obras, o homem as produz sob determinação Divina, que lhe disse: "Faça a terra germinar". Concluímos daí que, mesmo quando nossos motivos são imperfeitos e inadequados aos objetivos reais da vida celeste, ainda assim o Senhor pode nos conduzir no caminho da regeneração, contanto que estejamos dispostos a ser guiados por Ele. Pois o Senhor muda gradualmente os nossos motivos, os nossos amores, os nossos interesses. Ele tira o vazio de nossas vidas, tira os enganos e as vãs ambições, e nos dá um alvo, um sentido à nossa existência, que é a vida de usos. Ele não pode, de uma vez, arrancar nossos maus amores nem de uma só vez modificar nossos rumos, pois seria aniquilar todo o nosso ser. É como disse certa vez pelo profeta Isaías: "A cana esmagada (Ele) não quebrará, nem apagará o pavio que fumega; com verdade produzirá o juízo".
Mas isto deve ser bem compreendido. Deve haver sinceridade no homem para que o Senhor use a disposição que o homem então tem. Porque um indivíduo não pode se acomodar com as maldades de seu coração, com o orgulho, o desprezo pelos outros, e pensar que Deus irá ser condescendente com tais coisas, pois não é. Quando se diz que Deus não quebra o caniço esmagado e nem apaga o pavio que fumega, quer dizer que "Ele não quebra as ilusões nem apaga as cobiças, mas as direciona para a verdade e para o bem" (AC 25). Porque, às vezes, cegos por nossa ignorância e mancos por nossos males, pensamos estar fazendo um bem quando, na realidade, fazemos um mal, pois nesse bem estávamos visando nossa própria grandeza ou satisfação, ainda que inconscientemente. Podemos às vezes estar cegos pelos enganos e falsidades, sim, mas um dia tomamos a resolução de permitir que o Senhor guiasse as nossas vidas; já antes lutamos contra os males para afastá-los de nossa vontade por serem pecados contra Deus. É neste caso que a misericórdia de Deus, contemplando a decisão que fizemos livre e sinceramente de segui-Lo, "conhece a nossa estrutura, e lembra-se que somos pó"; e, com mão branda, mas poderosa, pouco a pouco nos volta para o Oriente, nosso rumo verdadeiro na vida espiritual. E à medida que para lá nos voltamos, mais enxergamos a luz, a luz que alumia nossas almas, que dissipa as trevas da ignorância e nos faz enxergar a real natureza de nosso ser.
A segunda coisa a destacar neste versículos é a progressão daquilo que a terra produz: primeiro, a erva tenra; depois, a erva dando semente; enfim, a árvore frutífera dando fruto. Isto vem de que, mesmo nessa fase de obras inanimadas que o homem faz, como o Senhor o está guiando, os atos que ele pratica vão se tornando cada vez mais vivos e úteis, e isso na mesma proporção que combate as concupiscências no seu externo irregenerado.
Nessa progressão, a "erva tenra" são as primeiras concepções da fé que ele adquire em seu externo, os primeiros doutrinais em que acredita porque viu que são verdades do Senhor. A "erva dando semente" são essas verdades, mas agora referindo-se a um uso (AC 57), as quais ele toma como preceitos de sua vida. E a "árvore dando fruto, no qual está a sua semente" é, finalmente, um bem útil, algum uso que então passa a desempenhar em favor do próximo e do Senhor, mesmo que não seja, ainda, movido pelo amor e fé genuínos.
A terceira e última coisa que é útil observar é que essa progressão, desde a erva até o fruto da árvore, só acontece mediante lutas e combates contra uma força oposta, infernal, que não quer que tal progressão aconteça. Para se seguir a orientação Divina, afastar os males e fazer os bens do uso -mesmo esses bens inanimados- o homem tem de se constranger, resistir à apatia ou letargia espirituais que são em si a morte. Só a contragosto ele poderá fazer o que as verdades ensinam, porque sua vontade mesma é de não fazê-las, mas deixar tudo como está. Logo, a pessoa nunca deve esperar ter vontade de fazer a penitência, nunca esperar ter vontade para se instruir na Palavra e nas Doutrinas, nunca esperar ter o amor genuíno, pois, no começo, essa vontade e esse amor não existem. Eles são adquiridos somente no quarto estágio da regeneração, quando são criados o sol e a lua em seu espírito. E o quarto estágio só existe quando é passado o terceiro. E o terceiro é o de penitência, de luta contra o mal, de luta contra si mesmo, como o Senhor disse: "Quem quiser vir após mim, tome a cada dia a sua cruz, e siga-Me".
"E produziu a terra erva tenra, a erva dando semente, segundo a sua espécie, e a árvore dando fruto, no qual estava a sua semente, segundo a sua espécie. E viu Deus que era bom. E houve tarde, e houve manhã, o dia terceiro." Amém.

 

Lições: Gênesis 1:9-11; Lucas 6:32-35
NJDC 150-157