Os Sete Dias da Criação

O Primeiro Dia

 

Primeiro de uma série de sermões pelo Rev.C.R.Nobre

No Princípio criou Deus o céu e a terra.
E a terra era um vácuo e vazia, e [havia] escuridão sobre as faces do abismo; e o Espírito de Deus movia-se sobre as faces das águas.
E disse Deus: Haja luz; e a luz foi feita.
E viu Deus a luz, que [era] boa; e distinguiu Deus entre a luz e entre as trevas. E chamou Deus à luz, dia; e às trevas chamou noite.
E houve tarde e houve manhã, o dia primeiro" ( Gênesis 1:1-5)

"A natureza universal é um teatro representativo do reino do Senhor" (AC 3618).

 

Esta é uma verdade que havia sido do conhecimento dos sábios da antiguidade, depois se perdeu, mas agora se acha restaurada nas Doutrinas Celestes da Nova Igreja. Aprendemos pelos Escritos que o universo natural à nossa volta espelha uma imagem "do reino do Senhor nos céus, daí de Seu reino na terra, isto é, na Igreja, e daí de Seu reino em cada indivíduo regenerado" (AC 3618). Aprendemos ainda que não só a criatura humana herdou imagem de seu Criador, como também os seres inanimados, pois estes têm dentro de si uma imagem do infinito e do eterno (ver AC 3648).
Como representativo do Senhor e Seu reino, contendo de alguma forma imagem Sua, cada objeto, cada ser criado conservou em si um aspecto da forma Divina, qual forma é a Forma Humana, que é a Forma mesma e primeira. Cada qual conforme a qualidade de sua correspondência, todas as coisas do universo, em geral e em particular, são portanto efígies do Senhor, conseqüentemente efígies do céu, da Igreja e do homem regenerado. E se não são tanto imagens quanto ao aspecto ou à aparência, o são pelo menos quanto ao uso ou função a que se destinam.
Se estas verdades antiqüíssimas foram agora redescobertas nos Escritos da Nova Igreja, evidentemente é porque elas agora têm um uso especial de esclarecer as mentes das pessoas ali, de elevar-lhes o entendimento e abrir-lhes os olhos para a realidade do mundo espiritual e da vida eterna, de sua ordem e perfeita organização, e de sua marcha sob os auspícios do Deus Uno Criador.
Esses conhecimentos foram trazidos ao nosso alcance em termos simples, em claras idéias naturais-espirituais perfeitamente acessíveis e compreensíveis ao homem de hoje. Não devemos, portanto, negligenciar essas revelações, mas procurar tirar delas usos benéficos para nós e para a Igreja, o reino do Senhor na terra. Estudá-las com atenção e afeição. Pois se pudermos conhecer como e em que a natureza universal espelha o Senhor, Seu reino e o espírito humano no caminho da regeneração, certamente poderemos compreender melhor as etapas por que temos de passar no novo nascimento espiritual; poderemos ver a sua ordem e aceitar melhor suas vicissitudes. Assim estaremos nos preparando melhor para a vida que o futuro nos reserva na eternidade.
Mas, para falar mais objetivamente, como é que podemos penetrar nesses conhecimentos? Como interpretar na natureza à nossa volta essa mensagem espiritual? Positivamente, não se trata de pretender alcançar a condição dos antiqüíssimos: eles, ao olharem para as coisas à sua volta, pensavam não nelas, mas nas suas significações espirituais. Com efeito, pensavam não nas correspondências, mas pelas correspondências. Já a sua posteridade, os povos da chamada Igreja Antiga, detinham o pensamento nos objetos em si, embora pudessem dali dirigir a reflexão às correspondências que conheciam. Esses pensavam nas correspondências. Depois desse tempo, bem como hoje, os homens se prenderam tanto às coisas corporais e terrenas, que sequer sabem que existe alguma correspondência. E mesmo alguns dos que sabem, inclusive dentro da Igreja, sequer pensam em alguma correspondência. Não podemos nos assemelhar a estes últimos, mas devemos, como os antigos, procurar, pela reflexão, enriquecer nosso entendimento ao elevá-lo às matérias espirituais a partir das correspondências que conhecemos.
A natureza é um teatro simbólico que, por meio de seus símbolos, nos transmite uma mensagem, uma imagem. Mas quando a raça humana perdeu a faculdade de decifrar essa mensagem simbólica da natureza, o Senhor deu a Palavra. A Palavra vem nos dizer a mesma mensagem, transmitir a mesma imagem, e o faz, em parte por símbolos, em parte por idéias e palavras diretas. Porque a letra da Palavra fala uma linguagem simples para os simples, e fala uma linguagem rica e profunda do sentido interno para o homem da Nova Igreja. O sentido espiritual foi encerrado no sentido da letra assim como pedras preciosas e jóias são encerradas num cofre ou estojo. É preciso, pois, um código ou chave para abrir a letra e desvendar aquela linguagem espiritual, linguagem pela qual a natureza se expressa.
A revelação que o Senhor fez em Seu Segundo Advento foi como a concessão dessa chave, que é a ciência das correspondências. Essa ciência nos mostra que entre o mundo físico e o espiritual existe uma perfeita interação, e que estão relacionados entre si como causa e efeito. Com isso, o campo de pesquisa para o entendimento humano se amplia e se alarga ao infinito.
Tendo a letra da Palavra como roteiro e o sentido espiritual ou das correspondências como lâmpada, e inspirado pela afeição do uso, o membro da Nova Igreja pode interpretar essa antiqüíssima linguagem da criação e daí tirar a instrução de que o seu entendimento necessita para guiar a sua vontade. É imprescindível, portanto, que a instrução venha da letra da Palavra e com a explanação dos Escritos, pois esta é a única maneira pela qual a raça humana poderá voltar a realmente ver todas as coisas do universo natural como imagens do plano espiritual.
Foi pensando nesta necessidade que temos de nos instruir mais nesse campo, que nos propusemos, aqui, e com este trabalho, iniciar uma série de estudos doutrinais que seriam uma leitura comentada dos "Arcanos Celestes", pelo menos no capítulo que trata da criação. Esta foi a primeira revelação publicada, a abertura das correspondências para o mundo moderno, e isto se deu exatamente através deste tema: a natureza como imagem do reino do Senhor nos céus, na terra e no homem, mostrando que os sete dias da criação do universo são, na verdade, os sete estados da nova criação do homem.
Conquanto se sabe que o relato literal da criação é apenas figurado, não devendo servir de base estrita para estudos da ciência natural, ele é, no entanto, uma descrição precisa e exata que, por meios dos tipos representativos existentes na natureza, descreve como o homem é criado ou nasce de novo. Como lemos nos Arcanos (6): "Os seis dias ou tempos... são... estados sucessivos da regeneração do homem".
Assim dizem o primeiro e o segundo versículos do livro de Gênesis: "No princípio criou Deus o céu e a terra. E a terra era um vácuo e vazia, e [havia] escuridão sobre as faces do abismo; e o Espírito de Deus movia-se sobre as faces das águas".
Iniciando nosso estudo da explicação que nos dão os Arcanos Celestes, ficamos sabendo que o termo "Princípio" é o primeiro tempo, quando se inicia a nova criação do homem. O "céu" significa o homem interno e a "terra" o homem externo antes da regeneração. A "terra", nesse período anterior à regeneração, é chamada "um vácuo" e "vazia". O período que antecede a regeneração vai desde a época da infância até à idade adulta, quando -e se- o homem se volta para Deus e deseja a salvação.
Nesse período anterior à regeneração, sua mente externa ou natural é chamada "terra vácua" porque nada tem de bem genuíno, e de "terra vazia" porque nada tem de verdade real. O que existe, de fato, é "escuridão e demência", além de "ignorância quanto a todas coisas que são da fé no Senhor, como nos informam os Arcanos.
É dito que, então, havia "escuridão sobre as faces do abismo; e o Espírito de Deus movia-se sobre as faces das águas". Nessa "terra vácua e vazia" que é então a mente do homem, há ausência de bem e vero genuínos, e, em seu lugar, cobiças e falsidades do próprio humano. Antes de fazer penitência dos males, a mente do homem é assim comparada a um abismo, um profundo poço de escuridão de falsidades e uma massa confusa de cobiças. Aliás, os Arcanos acrescentam que, quando examinado do céu, é assim mesmo que o homem irregenerado aparece: uma massa negra que nada tem de vida (nº 8).
Mas, acima está a Misericórdia de Deus. Ela é chamada aqui "Espírito", o Espírito que se movia sobre as faces das águas. E, segundo a explicação dos Escritos, o verbo usado aqui para expressar esta ação Divina, de "mover-se", é, na língua original, "chocar", "como de ordinário a galinha o faz sobre os ovos". Porque, a despeito dessa massa informe de cobiças que é o coração humano irregenerado e da escuridão densa de falsidades de quem se compõe seu intelecto, a Misericórdia Divina está acima, agindo, insinuando algo de vivo e salvífico. Note-se que não é dito que o Espírito de Deus estava sobre as "faces do abismo", mas sim, que "chocava sobre as faces das águas"; porque a Misericórdia Divina influi não nos males e falsidades do homem, mas em algum bem e verdade que ele tenha, por pouco que seja. Esse bem e verdade em que o Senhor influi, e os quais aquece como se chocasse para lhes inspirar vida,  são as afeições boas e os conhecimentos da verdade que o homem adquiriu em inocência, especialmente na infância. Eles ficam encerrados como tesouros, para que não se percam no abismo de cobiças e falsidades, e guardados por Deus para serem usados no tempo propício. Por isso as Doutrinas os chamaram de "relíquias". Essas relíquias são representadas, aqui, pelas "faces das águas".
Conforme a explicação do sentido interno correspondencial, o primeiro e o segundo versículos poderiam, então, ser entendidos assim: "No período que antecede a regeneração, isto é, da infância até à idade de se regenerar, Deus cria o homem interno e o homem externo. E o homem externo é desprovido de bens e verdades genuínos. Nada há senão a escuridão de falsidades sobre uma massa de cobiças. Mas a Misericórdia de Deus está acima, operando nas relíquias de afeições e verdades".
Dizem o terceiro e o quarto versículos: "E disse Deus: Haja luz; e a luz foi feita. E viu Deus a luz, que [era] boa; e distinguiu Deus entre a luz e entre as trevas".
As Doutrinas Celestes nos afirmam que o homem meramente natural ou externo nem ao menos sabe o que é o bem e a verdade. Chama de bem tudo aquilo que lhe parece agradável e é bom, isto é, favorável aos amores de seu próprio, que são os amores de si e do mundo. Ou então, como a experiência nos mostra, se é mais instruído, diz que o bem e a verdade são coisas relativas, que não existem bem e mal,  nem verdade ou falsidade absolutos. Logo, para que ele seja reformado e regenerado, a primeira coisa deve ser, necessáriamente, saber e crer que existe, sim, um bem real que independentemente de seus conceitos do que seja o bem; que existe uma Verdade absoluta e única, idependentemente do que ele acredita ser a verdade ou da interpretação que possa ter dela; e que, assim, o bem e a verdade genuínos são coisas fora dele, além do alcance de sua vontade e entendimento próprios, e que bem e mal são distintos entre si como o são o vero e a falsidade. E que, enfim, só o Senhor é o Bem Mesmo e a Verdade Mesma.
Quando a pessoa admite essa verdade e adquirre essa crença, nasce para ela a luz. "E disse Deus: Haja luz; e foi feita a luz". É a ilustração que vem quando a pessoa começa a "saber que o bem e a verdade são alguma coisa superior, e começa a ver que os seus bens não são realmente bens". Este é, pois, o primeiro estágio da nova criação do homem. Começa a existir o primeiro dia.
"E viu Deus a luz, que era boa; e distinguiu Deus entre a luz e as trevas. E o chamou Deus à luz dia; e às chamou noite. E houve tarde e houve manhã, o dia primeiro."
É dito que a luz era boa pelo fato de ela proceder do Senhor. Começa a existir, agora, para o homem, a distinção entre "luz" e "trevas"; entre a Divina Verdade da revelação e as incertezas da ignorância e da falsidade em que se acha imerso o entendimento não reformado pela Palavra.
Na Palavra, ao Senhor são atribuídos a "luz", o "dia" e a "manhã", e ao homem as "trevas", a "noite" e a "tarde". "As trevas", ensinam-nos os Arcanos, "são coisas que existem antes que o homem seja concebido e nasça de novo. Elas pareciam luz porque então o mal parecia o bem e a falsidade parecia verdade"(AC 21)."Tarde" e "noite", na Palavra, são o afastamento e a ausência da luz, e por isso significam, no espírito do homem, os estados em que ele está distante da verdade da fé. Ao contrário, "manhã" e "dia", na Palavra,  são a aproximação e a presença da luz, significando, portanto, o Advento do Senhor, quando então há para o homem instrução e fé.
Para que exista a primeira luz da reforma, quando o homem confessa o Senhor como única fonte de Vida, Bem e Verdade, é necessário que tenha havido antes um estado de sincera humildade diante de Deus. Como sabemos, o estado de humildade, ou, melhor dizendo, o estado de humilhação do homem, por causa de seu estado falível, é coisa necessária na confissão, não por algum capricho de Deus, nem porque Ele exija rendição do homem diante de Sua glória, mas, sim, porque é só na sincera humilhação que o indivíduo se esvazia de seu próprio, das cobiças e falsidades, e se põe assim em condição de receber as dádivas celestes de um próprio novo, isto é, uma vontade nova para o bem e um entendimento reformado pelas  verdades.
"E houve tarde, e houve manhã, o dia primeiro". Aqui, o termo "tarde' precede a "manhã". Seria, talvez, de se esperar que fosse dito: "e houve manhã e houve tarde", mas não: a ordem é esta mesma; pois nada na letra da Palavra é em vão e sem um significado. Se a "tarde" precede é porque "é um tempo de sombra, ou um estado de falsidade e de ausência de fé. "Na regeneração, a sombra da dúvida, quando há afeição de saber, gera a instrução e a luz, a "manhã". Porque "manhã" é "todo estado seguinte, pois é um tempo de luz, ou um estado da verdade e de conhecimento da fé". Por isso é que é dito: "E houve tarde, e houve manhã, o dia primeiro".
E assim se completa o primeiro estágio da criação do novo homem. O Senhor, pela ação de Sua misericórdia, o fez progredir, de massa confusa e escura de cobiças para um estado de luz, compreensão e fé. É apenas o início do processo, o primeiro dos sete dias da criação, mas é, já o primeiro estado; a sua regeneração se iniciou. Como lemos em nossa lição, a maioria das pessoas hoje vêm somente a este primeiro estado. Mas se a regeneração foi iniciada nesta vida, ela poderá prosseguir e se desenvolver nos céus. Parece pouco e insuficiente este primeiro estágio. Parece que a fé ainda é pouco. Se, todavia, ela tiver sido bastante para abrir a visão da pessoa e fazê-la mudar o rumo de sua vontade, voltando-a para uma vida de acordo com os Mandamentos Divinos, ela será uma fé salvífica, por pequena que seja a luz do primeiro dia. Ela crescerá como a semente de mostarda da Parábola, que, de uma pequena semente, cresce até se tornar uma árvore "e os passáros do céus vêm abrigar-se em seus galhos".
Eis aqui, pois, um ligeiro sumário desta primeira parte do capítulo 1 dos "Arcanos Celestes". Por aí podemos ver como a abertura do sentido espiritual nos fez a letra da Palavra ser uma carta aberta, uma mensagem que pode ser lida e perfeitamente compreendida, dizendo e mostrando como o universo criado de fato espelha o plano espiritual, o reino do Senhor nos céus e no íntimo de cada pessoa de Sua Igreja.
Explicando esta linguagem, as doutrinas Celestes nos Escritos da Nova Igreja prosseguirão desvendando as séries dos outros seis dias da criação, como também dos outros capítulos do livro do Gênesis, do Êxodo e, em geral de toda a Palavra.
Esta instrução está dada, ao nosso alcance, nos Escritos. Vamos, portanto, estudá-los para que, por esse meio, o Senhor nos conceda uma visão clara das coisas reveladas concernentes ao Seu reino nos céus e na terra. Amém.

Lições:  Gênesis 1; Salmo 8; João 1 (parte) - A.C. 1 a 13.

         Pregado em 29/04/90.