"De que se queixa o homem vivente?"

Sermão pelo Rev. Cristóvão R. Nobre

"E disse: Quem te deu a saber que tu estás nu? Ou não comeste da árvore de que te ordenei que não comesses dela? E disse o homem: A mulher, que deste [para estar] comigo, ela me deu da árvore, e comi. E disse JEHOVAH Deus à mulher: Por que fizeste isso? E disse a mulher: A serpente me enganou, e comi."

Gênesis. 3:

O fato descrito nestes versículos, bem conhecido por todos nós, expõe uma tendência muito comum de toda criatura humana: a de transferir sua culpa para os outros. É um mal a que constantemente estamos sujeitos; em vez de admitirmos nossos erros, buscamos alguém a quem condenar. É, sem dúvida alguma, mais conveniente, mais agradável ao nosso ego.
Na história do Jardim de Éden, o homem - Adão - tinha sido informado claramente por Deus sobre as conseqüências letais de comer da árvore da ciência. Igualmente, Eva o sabia. Mas ele errou ao se deixar levar ao erro por ela e ela, por sua vez, se deixou enganar pela serpente. Tanto um quanto a outra tinham culpa. Mas, diante de Deus, cada um procurou justificar-se. Adão culpou a mulher "que Deus lhe deu" transferindo a culpa para ela e, indiretamente, também para o próprio Deus, pois foi Deus quem a dera. E Eva, da mesma forma, lançou a culpa na serpente.
Inúmeras vezes nos vemos fazendo a mesma coisa. E devo começar por nós, homens e maridos. Assim como Adão, nós, maridos, somos naturalmente inclinados a culpar a esposa por nossos próprios erros, seja porque ela fez algo, seja porque deixou de fazer. Infelizmente, sempre há para o marido um motivo para se ver coberto de razão e transformar sua ajudadora em ré. É hábito muito nocivo e muito comum o marido despejar no lar, no fim do dia, sua indignação e sua frustração com problemas não resolvidos no ambiente de trabalho. Por qualquer motivo ou, como se dizia: "por dá cá aquela palha", esposa e filhos acabam sofrendo culpa por coisas de que jamais terão conhecimento.
Mas todos nós, tanto homens como mulheres, jovens, moços e velhos, incorremos no mesmo vício. Somos atingidos por algum mal e queremos condenar alguém. Somos lesados e queremos descobrir um culpado de quem podemos nos queixar. Em toda aflição, em toda dificuldade por que passamos, nosso pensamento sempre nos aponta a pessoa ou pessoas que, segundo acreditamos, criou aquele problema. Por nossa negligência ou incapacidade, às vezes fracassamos, mas queremos ter alguém de quem reclamar. E nossos réus não têm escapatória: se fizeram alguma coisa, serão culpados pelo erro; se não o fizeram, serão culpados pela omissão. Sempre acharemos alguém a quem culpar e de quem nos queixarmos por nossos infortúnios.
Muitas vezes, quando a pessoa não acha ninguém a quem culpar, então culpa a Deus. E se queixa da sorte,  indignada: Por quê Deus permite isso? Por quê Deus me fez aquilo? Crendo de fato que Deus criou esse ou aquele problema.
Uma conseqüência muito grave desse vício que temos de transferir a culpa a outrem é que, assim, a verdadeira causa ou origem do mal não é identificada. Por conseqüência, sem conhecer sua origem, o mal não pode ser racionalmente sanado. Por exemplo, mandamos um carro, um aparelho ou um eletrodoméstico com defeito para um profissional consertar; ele faz o serviço mal feito; o defeito retorna ou então vem com um defeito novo. Naturalmente, reclamamos e atribuímos toda a culpa ao autor do serviço. Mas raramente paramos para pensar que também tivemos culpa no caso e, às vezes, culpa dobrada: em primeiro lugar, porque ou provocamos o defeito ou contribuímos ou permitimos que acontecesse; e, em segundo lugar, porque não soubemos escolher corretamente uma pessoa competente para fazer o tal reparo. Logo, ao invés de descarregarmos a culpa naquela pessoa, devíamos refletir sobre nossa parcela de culpa a fim de, na próxima vez, não repetirmos o erro.
Às vezes um amigo nos cria situações realmente problemáticas. Mas não seria o caso de termos selecionado melhor as amizades ou deixarmos limites claros nos nossos relacionamentos?
Muitas vezes nos queixamos dos filhos e até os chamamos de "malcriados". Mas não fomos nós que os criamos?
Portanto, em vez de nos queixarmos dessa ou daquela pessoa, dessa ou daquela situação, e nos entregarmos à indignação e condená-los, uma atitude mais racional e mais benéfica seria examinarmos nosso papel e nossa própria contribuição para que o problema viesse a existir.
Mas um ponto muito interessante para o qual gostaríamos de chamar a atenção dos irmãos é que o próprio texto de Gênesis, quando entendido espiritualmente, não fala, na realidade, de transferência de culpa. Muito pelo contrário, o que se tem aqui é uma confissão e um reconhecimento do indivíduo de seu próprio erro. Porque, na verdade, Adão, Eva e a serpente não são personalidades distintas, mas três aspectos de um mesmo indivíduo. "Adão" ou "homem" é o racional ou o entendimento em nós. "Eva" ou "Vida" é a nossa vontade própria ou, como dizemos, nosso proprium; e a "serpente" é o raciocínio. A história da tentação e queda do homem nada mais é, portanto, que o relato de como a pessoa se apropria do mal e se faz, ela mesma, culpada desse mal. A referência ao homem,  sua esposa e a serpente e a constação de seu erro diante de JEHOVAH no jardim é, por conseguinte, a confissão da pessoa de seu próprio erro diante de Deus.
Vejamos como nos explicam essa passagem os Arcanos Celestes: "E disse: Quem te deu a saber que tu estás nu? Ou não comeste da árvore de que te ordenei que não comesses dela? E disse o homem: A mulher, que deste [para estar] comigo, ela me deu da árvore, e comi. E disse JEHOVAH Deus à mulher: Por que fizeste isso? E disse a mulher: A serpente me enganou, e comi."  Pelo que foi explicado anteriormente se vê o que estas expressões significam, a saber, que o racional do homem deixou-se enganar pelo proprium que lhe era caro, ou pelo amor de si, ao ponto de em nada crer a não ser no que visse e sentisse. Qualquer um pode ver que JEHOVAH Deus não teria Se dirigido a uma serpente, e que não teria havido serpente alguma, nem que Ele Se dirigiu ao sensual que foi significado pela serpente, mas que essas expressões envolvem outra coisa, a saber, que eles perceberam que foram enganados pelos sentidos e, como tinham amado a si mesmos, tinham desejado saber se era verdadeiro o que tinham ouvido sobre o Senhor e sobre a fé n`Ele, e assim é que quiseram crer pela primeira vez".
A vontade do homem é a sua vida, porque "o amor é a vida do homem" (SA 1). "Eva", no hebraico quer dizer isso, "vida". É por isso que ela representa o proprium ou a vontade do homem. Essa vontade, irregenerada, consiste unicamente em amar a si mesmo acima de tudo o mais. É, toda ela, o amor de si. O amor de si busca sua própria satisfação, sua própria vantagem, sua própria exaltação, em detrimento e em prejuízo dos outros. O amor de si só permite o benefício a outrem quando é também beneficiado; quando não é, nega o benefício ou arde em ciúme e inveja. O amor de si quer o bem de outrem somente em relação a si próprio ou quando é recompensado;  se esse benefício ou retribuição cessa, transforma-se em igual medida em ódio. É essa vontade egoística que se deixa facilmente seduzir pelos raciocínios dos sentidos.
Uma criança, desde muito pequena, gosta de exigir da mãe, do pai e dos parentes toda a atenção possível. Ela se crê única merecedora de todos os benefícios e única possuidora de todos os bens. Se essa atitude não é moderada e até certo ponto subjugada pela disciplina e pela educação, tende a agravar-se cada vez mais, ainda que venha a ser oculta pelo verniz das conveniências sociais. Pelo amor de si preponderante é que a criança recusa-se a compartilhar brinquedos com outras crianças ou então somente com crianças amigas de quem ela recebe alguma forma de retribuição. Em seu raciocínio, que concorda com esse amor, imagina ser a maior, a primeira, a mais importante e almeja atingir melhores condições que as dos amigos. É isto o amor de si ardendo em suas cobiças. E os seus raciocínios serão favoráveis a seus desejos, pois ela ainda não dispõe de razão ou consciência. Mesmo quando é subjugado e moderado pela educação e pela obediência, esse amor se comporta adequadamente apenas para receber os benefícios decorrentes da obediência.
Todavia, cumpre saber que as ações provenientes desse amor de si, nessa fase inicial, não são em si mesmas condenáveis, pelo justo fato de a criança e o jovem  não desfrutar ainda do racional. O amor de si está no que se chama de mal hereditário, que por si só não condena. Esta fase é representada pelo momento em que a serpente seduz a mulher: os raciocínios dos sentidos conduzindo a vontade própria a desejar ser tudo por si mesma, guiar-se por si mesma e tudo saber por si mesma. E viu a mulher que a árvore era boa para comer, e que era apetecível aos olhos, e desejável era a árvore para dar inteligência; e tomou de seu fruto e comeu.
As coisas se agravam, porém, quando, ao atingir à idade da razão, o racional passa a dar seu consentimento a uma vontade dessa natureza, irregenerada e egoística. "Adão", o nível racional em nós, é esse entendimento racional. Quando o entendimento dá livre curso às cobiças da vontade e as desculpa, aí, então, a ação da pessoa passa a ser condenável. Pois é pelo entendimento que a pessoa sabe o que é o mal que não deve ser feito e o bem que deve ser feito. Pelo assentimento da razão faz-se pois um casamento infernal com o mal da vontade. Enquanto há ignorância, não há condenação, mas quando há entendimento, aí o mal se faz condenável. É como o Senhor disse aos fariseus: "Se fôsseis cegos, não teríeis pecado. Mas como agora dizeis: Vemos, por isso o vosso pecado permanece" (João 9:40).
A  lição desta passagem de Gênesis para nós é que o mal que realmente condena é aquele que recebe o consentimento da razão. É por isso mesmo que as crianças e jovens não são incrimináveis perante a lei Divina para fins da vida eterna, pois não gozavam ainda do racional ou real entendimento. É como se vê na história do povo de Israel, quando todos os judeus de vinte anos para baixo foram isentos de culpa e entraram na terra de Canaã, ao contrário dos seus pais que, pela sua rebeldia, não chegaram a vê-la.
Agora, como se isto se aplica àquela tendência humana nossa a que estávamos nos referindo, de transferir aos outros nossas culpas? Aplica-se da seguinte maneira: não devemos imputar o mal a ninguém.
Segundo as leis da misericórdia Divina, Deus não imputa o mal a pessoa alguma, não condena ninguém nem o declara culpado por nenhum erro. A pessoa mesma é que, aderindo-se ao mal, faz-se condenável e culpada por aquele mal e sofre as conseqüências disso. Segundo essas leis, ninguém será jamais castigado na outra vida por qualquer mal que tiver feito aqui. No entanto, o mal que a pessoa aqui praticar, gozando do uso da razão, esse mal estará irremediavelmente ligado ao seu ser pela eternidade, e esse mal trará consigo infelicidade e sofrimento para a pessoa.
Portanto, se nem Deus imputa o mal, muito menos nós temos esse "direito", por assim dizer. Precisamos então aprender a não lançar culpa nas pessoas, não condená-las, mesmo quando somos diretamente atingidos por seus erros. Porque, pode bem ser que a pessoa não agiu por propósito; acabou nos causando prejuízo por ignorância, sem intenção, e isto não a faz condenável. Aprendemos nos Escritos que os anjos não culpam ninguém por qualquer erro; ao contrário, eles procuram realçar o que houver de bom e justo nas pessoas. É certo que não somos anjos e estamos às vezes muito longe disso. Mas um dia precisamos começar a agir assim, caso contrário nunca atingiremos a vida do céu.
Isto não quer dizer, porém, que devamos fechar os olhos para os erros dos outros. Absolutamente. O que é errado, é errado, quem quer que seja a pessoa que o tenha praticado. Mas uma coisa é condenar a ação e declará-la má e nociva, e outra coisa bem diferente é condenar a pessoa que a praticou. É realmente muito difícil, mas devemos aprender a condenar o pecado e amar o pecador.
Ao invés, pois, de lançar a culpa nos outros, deveríamos, antes, examinar nossa parcela de erro e procurar corrigir esse erro no futuro. Lançar a culpa nos outros só serve para, às vezes, ocultar de nosso entendimento a fonte real do problema, que pode bem estar em nós mesmos. Assim já ensinava o apóstolo Tiago em sua epístola aos primeiros cristãos: "Irmãos, não vos queixeis uns contra os outros, para que não sejais condenados. Eis que o Juiz está à porta" (Tiago 5:9).
E se isto é verdade em relação às pessoas, ainda mais é verdadeiro em relação a Deus. Especialmente em relação a Ele, precisamos afastar para longe de nós toda rebelião, toda queixa e toda murmuração por alguma coisa que julgamos que Deus fez ou que permitiu. Pois de Deus não procede e não pode jamais proceder nenhum mal. Ele quer somente o nosso bem. Ele não nos põe em perigo algum e jamais nos põe à prova, como se acredita geralmente nas igrejas cristãs tradicionais. É dito em VRC que Ele, sendo o Amor mesmo, não pode sequer olhar para o homem com um rosto severo, pois até uma expressão severa na face seria contra o amor que Ele tem por nós. Que dirá, então, causar-nos o mal ou nos submeter à prova ou nos induzir tentações?
É certo que, quando estamos em tentação, existe a aparência muito forte de que é Deus que nos tenta, pois sentimos a forte influência do mal e a aparente inoperância de Deus. Mas isto é assim por causa de nossa liberdade. Os males só podem ser removidos mediante as tentações, pois a tentação é o momento da decisão, em que temos de nos desligar de um mal que está interiormente ligado a nós, e isso é doloroso. Deus parece estar ausente justamente para que estejamos em plena liberdade de escolher de que lado queremos ficar: do lado dEle ou do lado do mal. Assim, as tentações não vêm dEle, absolutamente, mas dos próprios males de que nos apropriamos e dos quais precisamos nos desvencilhar. Novamente lemos em Tiago: "Ninguém, sendo tentado, diga: de Deus sou tentado; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e a ninguém tenta. Mas cada um é tentado quando atraído e engodado pela sua própria concupiscência. Depois havendo a concupiscência concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte" (1:13, 14).
Há ocasiões em que as pessoas erram de propósito e nos causam anos. Mas a Palavra nos ensina sobre o dever de perdoar os erros uns aos outros e nunca desejar vingança, qualquer que tenha sido o mal que se nos tenham feito.
Há ocasiões em que elas erram, mas por ignorância, e mesmo assim somos prejudicados. Mas elas não serão culpadas perante Deus, pois não houve intenção do mal. Por isso, precisamos ter cuidado para não condená-las em nosso julgamento.
Há ocasiões em que nós mesmos provocamos o erro e vemos isso claramente diante de nossa face. Mas, se nos arrependemos sinceramente do mal praticado, não temos nos lançar em culpa nem alimentar sentimentos de remorso por aquilo que não mais faremos. Quando cessamos de fazer o mal e aprendemos a fazer o bem, os nossos pecados são perdoados por Deus e nenhuma condenação haverá mais para nós por causa deles.
E há ocasiões em que as tentações e infortúnios parecem difíceis, mas nunca devemos culpar a Deus ou nos queixarmos dEle, murmurando contra Sua direção, pois Ele nos ama e, ao contrário de nos expor ao mal, está sempre nos livrando e desviando do mal.
Em suma, a queixa contra outrem, a intolerância para com os erros alheios, a murmuração contra Deus e o mundo, são vícios que são contrários à vida verdadeiramente cristã. Aprendamos a nos livrar desse mal, exercitando a paciência e a caridade. É de acordo com o que lemos também em Lamentações 3:39: "De que se queixa pois o homem vivente? queixe-se cada um dos seus pecados". Amém.

Lições:  Gên.3; AC 232
[2]      Como ilustração, seja apenas este exemplo: O homem não pode de si mesmo fazer outras coisas senão o mal e o falso e se desviar do Senhor. Porém não é o homem que o faz, mas os maus espíritos que estão com ele; e nem os maus espíritos, mas o mal mesmo de que se apropriaram; e, sempre, é o homem que faz o mal e se desvia, e é sua culpa; e todavia não vive a não ser pelo Senhor. Por outro lado, o homem nunca pode de si mesmo praticar o bem e se converter ao Senhor, mas o faz pelos anjos; nem os anjos o podem, mas fazem-no somente pelo Senhor; e, sempre, o homem pode como de si mesmo fazer o bem e se converter ao Senhor. Que a coisa se passe assim, nunca os sentidos, os conhecimentos e a filosofia poderão compreender; se são consultados, eles as negam absolutamente, quando todavia são em si mesmas verdadeiras. Semelhantemente ocorre em todas as outras coisas.

 

 

 

 

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