De Beersheba para Haran

Um sermão pelo Rev. Cristóvão R. Nobre

"E saiu Jacó de Beersheba, e foi a Haran, E chegou a um lugar, e pernoitou ali, porque se pusera o sol; tomou das pedras do lugar, e pôs por travesseiro,
e deixou-se naquele lugar; e sonhou".

Gênesis. 28.

Na série do sentido interno, a jornada de Jacó, indo de Beersheba para Haran, e o seu pernoite ali, significam uma mudança de estado e nos instrui a respeito dessas sucessivas variações por que passa todo ser criado. Essas mudanças ou ciclos, ocorrendo variada e interminavelmente, são as vicissitudes tais como as que ocorrem na natureza, fazendo com que haja a manhã, o meio-dia, a tarde e a noite, e também a primavera, o verão, o outono e o inverno. O ser humano também, como toda criatura, está sujeito às mesmas alternâncias. De fato, elas ocorrem em sua mente quando ele passa por estados espirituais de frieza e de calor, de iluminação e de obscuridade quanto ao seu amor e à sua fé, e daí lhe vem, por conseqüência, estados ora de prazer, ora de descontentamento; ora de ânimo, ora de abatimento; entusiasmo e apatia; confiança e ansiedade; enfim, paz e desassossego em sua vida espiritual e conseqüentes reflexos na vida natural.
A história de Jacó e Esaú que nestes dias estamos seguindo, é, como sabemos, um relato sobre o bem e a verdade e sobre como estas coisas se relacionam no homem que está sendo regenerado. Esaú é o bem, mas nesta série ele é também a verdade que procede deste bem, ao passo que Jacó é a verdade e, aqui, o bem que procede dessa verdade. Estas duas coisas, a verdade do bem e o bem da verdade são coisas distintas que devem ser bem conhecidas por nós; elas só se conjuntarão num adiantado estágio da regeneração. Mas no caso presente, como se trata apenas de Jacó, assim se trata particularmente do bem da verdade.
É dito no texto de Gênesis: "E saiu Jacó de Beersheba, e foi a Haran", Beersheba significa a Doutrina Divina (AC 2723, 2858), uma coisa que é bem interior, enquanto Haran representa um estado exterior da vida (AC 369l). Isto é o que nos ensinam as Doutrinas e é também o que podemos confirmar pelas correspondências das terra de Canaã. Com efeito a terra de Canaã era em tudo representativa das coisas celestes e da Igreja. Beersheba ficava aí bem no centro desta terra, ao sul de onde seria mais tarde Jerusalém, enquanto Haran estava muito ao norte, além da Síria. Por aí se vê que Beersheba é o interior e Haran o exterior, ou um superior e o outro o inferior. Portanto, Jacob saindo de Beersheba e indo para Haran se refere a uma mudança, uma retirada do bem da verdade nos internos, de mais próximo do Divino, para o bem da verdade nos externos. Ou seja, quando se deixa de agir segundo as verdades interiores e genuínas e passa-se agir segundo as aparências de verdade da mente natural, onde aí estão mescladas com as falsidades próprias desse estado. É afastar-se do interior e ter-se uma vida externa, mais remota das coisas Divinas e mais ligada às coisas terrenas e humanas. Por conseqüência, vive-se distante do calor, da luz, da sabedoria, e prende-se às afeições e concepções naturais. É uma descida, enfim, do espiritual para o natural; mas se o homem está sendo regenerado, há depois a subida de volta, e assim o ciclo se completa, operando-se uma transformação benéfica em sua vida espiritual. Todavia se o homem se deixa levar pelas suas coisas meramente naturais, o retorno nele não será para um estado mais alto, mas para baixo; e há um retrocesso com ele que ocorre como uma espiral, sempre tendendo para cada vez mais o inferior e o corpóreo, e daí, ai invés de regeneração, há, pelo contrário, sua degeneração.
Para que tenhamos uma idéia mais precisa sobre como é este afastamento de Beersheba para Haran, isto é, do bem da verdade interior para o bem da verdade nos exteriores, convém saber que há graus de bem e há graus de verdade, e que esses graus os distinguem, fazendo-os bem diferentes entre si. Nos Arcanos Celestes (nº 369l) lemos o seguinte: "os bens e os veros foram discriminados interiormente entre si segundo os graus; os bens e os veros interiores estão em um grau superior, e os bens e os veros exteriores estão em um grau inferior. No grau superior estão os bens e os veros pertencentes ao racional, e no grau inferior estão os bens e veros do natural; (e) no grau mais baixo estão os bens e veros dos sentidos, que pertencem ao corpo"... "...Os bens e veros interiores foram inteiramente separados dos bens veros exteriores. "Esta distinção é a mesma que há entre os graus da mente do homem e também os graus dos céus angélico, espiritual e natural. Mas tomemos ainda um exemplo que ilustrará bem a distinção de que falamos: "o homem que está sendo regenerado não sabe ainda, no princípio, o que vem a ser as obras de caridade, por que não sabe ainda o que é caridade, nem o que é o próximo" (e por isso ele as faz segundo o que sabe e daí as faz indiscriminadamente, acabando por fazer o que pensa ser um bem mas de fato é um mal. "Esses bens são os bens da verdade externos, pelos quais ele começa (a ser regenerado). Quando é mais ilustrado passa a fazer uma discriminação em seus benefícios de caridade, fazendo-os "somente aos que são pobres e bons, sabendo que dar auxílio aos maus é fazer mal a um grande número de pessoas". Mas depois, passa a agir no bem da verdade interiores e faz o bem porque tem afeição, não para com o homem (como um todo) mas para o bem que está no homem; e como o Senhor está presente nesse bem com o homem, assim ele atesta seu amor ao Senhor. No começo ele fazia o bem da verdade que conhecia, de um caráter bem externo, e por isso estava no bem da verdade do grau mais baixo, o que era de fato um mal. Mas sendo depois elevado ao grau superior do bem da verdade, ele faz o bem que é realmente o bem. Assim podemos ver a distinção que há entre os graus de bem e verdade, distinção esta que é tão grande como a diferença da noite para o dia.
Aqui nós tomamos para exemplo o ato de dar aos necessitados e a escala dos distintos bens e verdades que existe neste ato. E a medida em que o homem aprende e age assim, ele é modificado quanto a este específico aspecto, uma vez que sua caridade natural, obscura e cega é deixada e ele é elevado e introduzido na genuína caridade, que procede de verdades espirituais. Mas este é só um aspecto; há ainda uma grande variedade e uma infinidade de aspectos ou áreas da vida em que o homem precisa ser também esclarecido quanto ao entendimento para então mudar o comportamento, saindo de uma crença externa e obscura, muito presa ao seu próprio, para uma nova vida recebida pelo homem espiritual. Visto que há no homem tantas imperfeições para serem emendadas, com efeito, males para serem abandonados, por isso, quando o homem cai nestas coisas, que estão no externo , ou no homem natural, quando cai nelas, ele então se vê com certeza nos graus baixos, caindo do calor na frieza, da sabedoria na obscuridade. Se contudo ele está sendo regenerado, não permanece nesses estados remotos do espiritual e nem se deixa vencer pelos males daí, mas volta par o alto, para a vida próxima do Senhor. Quando cremos e agimos segundo nós mesmos, estamos na obscuridade de nossa fé, porque o entendimento meramente humano não é outra coisa senão uma visão pervertida ou invertida da verdade, ou falsidade. Agindo por nós mesmos estamos agindo segundo nossos amores e cobiças naturais, e é por isso que nos vemos em frieza quanto ao espiritual. Este estado de obscuridade e frieza se representa no texto de Gênesis quando se diz de Jacó: "E chegou a um lugar, e pernoitou ali, porque (se) pusera o sol".
A percepção do homem varia conforme seu estado. Se ele estiver segundo a verdade genuína ou interior, percebe a luz e o calor que lhe são influídos da presença próxima do Senhor. Mas, se se afasta para uma vida segundo suas concepções naturais ou externas, então o que ele percebe é espiritualmente escuridão, ainda que, iludido pelos sentidos, creia o afirme que o que vê é luz. E por causa desse afastamento, também se lhe falta afeição pelo bem que é realmente o bem, e se muda para as afeições naturais, para o bem dos amores de si e do mundo. Então, é como se estivesse na noite e por isso é que o sol se põe para ele. Ao cair na escuridão espiritual, a verdade genuína se lhe aparece distante, distorcida e impraticável. E ao voltar-se para seu homem natural, perde a afeição pelo que se refere ao Senhor e ao próximo, ou então, a conserva mas só tanto quanto não sejam empecilho ao seu próprio.
Os estados do homem natural separado do espiritual são representados pela noite e pelo inverno, pois nada há de amor e verdade. O homem cai aí ao se furtar de uma vida de uso para com o Senhor e o próximo, e se entregar tão somente à satisfação dos amores terrenos e naturais. É quando põe em primeiro lugar a sua própria pessoa em detrimento do próximo e, assim, do Senhor. Por uma tal vida podemos facilmente nos afastar da confiança no Senhor e nos estribar em nossa própria prudência humana e é daí que nos vem a ansiedade, o abatimento, a incerteza e a apatia em nossa vida espiritual. Lemos nos Arcanos: "Quando o homem está sendo regenerado, ele recebe vida do Senhor; e porque ele não tinha vida antes, há uma alternância de nenhuma e vida real, isto é, de nada de fé e caridade, e de alguma fé e caridade. Sempre que o homem está em suas coisas corpóreas e mundanas, conseqüentemente, as que são do seu próprio estão a operar, e, na medida em que o homem estiver nestas coisas, ele está ausente ou removido da fé e da caridade, de modo que ele nem mesmo pensa a respeito das coisas espirituais e celestes. A razão disto é que as coisas corpóreas e as coisas celestes não podem jamais estar juntas em um homem... Mas quando as coisas do corpo e da vontade do homem não operam e se aquietam, então o Senhor opera através do seu homem interno, e então o homem está na fé e na caridade, que são (aqui) chamadas "calor". Quando ele volta outra vez ao corpo, está outra vez na frieza; e quando o corpo, ou o que é do corpo, repousa... então ele está no calor; e assim vai, alternadamente." (AC 933:3).
Estas vicissitudes existem no homem e ele é regenerado por não se deixar vencer pelos estados do seu próprio; tão logo sente os efeitos da noite e do inverno, repele para longe de si os amores que lhe estiverem servindo de obstáculo à recepção da luz e do calor que são o bem e a verdade do senhor. Assim ele recebe vida e se mantém próximo do Senhor. Mas se ele é por aí regenerado, dá-se de modo diferente, pois, como lemos nos Escritos (AC 980l), "na medida em que o homem externo tem sido aberto para o mundo, na mesma medida o homem pensa o que é falso, e quer o que é mal, e assim é insano; porque a luz do mundo extingue nele a vida do céu". "Os que estão no amor de si e na persuasão da inteligência e sabedoria derivadas de si mesmos, estão em tal frieza e trevas espessas"
No homem que está sendo regenerado, a aproximação dos estados de diminuição do amor e fé, isto é, a sua tarde ou outono espirituais, acarreta-lhe inquietação, porque é uma volta ao seu próprio e aos amores infernais. Tais amores são atiçados pelos espíritos malignos que estão apegados ali, e são eles que influem a inquietação, a ansiedade, enfim, toda a sorte de sentimentos negativos que o afligem e marcham para destruir toda a sua afeição pela vida celeste.
Mas se sabe que daí ele pode ser reconduzido à vida de paz pelo Senhor; ele não deve recear a passagem desses estados, seja nos particulares, seja nos gerais, isto é, desde as pequenas mudanças de humor até a grande mudança que nos advém no fim da vida terrena, nosso último inverno e última noite. São estados que devem ser tolerados pois é por eles que o homem é aperfeiçoado. Lendo outra vez os Escritos (AC 933:3): "Isto é o que acontece com cada um que deve ser regenerado, e continua enquanto estiver no estado de regeneração; porquanto de nenhuma outra forma o homem pode ser regenerado, isto é, de um sendo morto ser feito vivo, pela razão de que sua vontade foi interinamente arruinada, e é por isso completamente separada de uma nova vontade, que ele recebe do Senhor".
Tanto são necessárias essas mudanças que elas continuarão na outra vida, mas com esta diferença de que no céu os anjos não têm o que se poderia dizer "noite" ou "inverno", como o homem ou como os que estão no inferno (CI l55), pois no céu as alternâncias são entre estados de amor e fé imensos ou amor e fé não tão imensos, mas sempre no amor e na fé. Sem esta alternância a vida celeste logo tornar-se-ia tediosa e insípida e o amor e a sabedoria não poderiam ser percebidos em sua delícia e intensidade.
Mas nem com os anjos e nem com os homens, não é o Senhor que produz estas mudanças, assim como não é o sol que faz a noite e o dia, o inverno e o verão, mas, sim, os próprios movimentos da terra. O Senhor, como o sol dos céus, em todos influi igualmente com Sua verdade e bem, mas cada um os recebe diferentemente segundo sua vontade e seu entendimento.
O Senhor não produz as mudanças mas o próprio do homem faz com que existam; e o Senhor as permite, pois, de outro modo vida alguma não seria possível ao homem. O Senhor as permite, mas também provê para que delas sejam produzidos bens. Com os anjos há variedade de percepção do prazer celeste e há também aperfeiçoamento. Com os homens, por aí ele se afasta do seu próprio e se volta para o Senhor e assim é regenerado e "mantido no amor ao Senhor e desviado do amor de si". (CI l58).
A duração desses estados não pode ser regularmente medida pelo tempo, pois como se trata de vicissitudes espirituais, sua freqüência e duração variam segundo os estados de fé e caridade, e não, assim, pelos números do tempo natural. Por conseguinte, os estados de obscuridade ou frieza duram tanto quanto o próprio humano bloqueia a recepção do influxo Divino. O ódio, a vaidade, o orgulho, a intemperança, a avareza, enfim, as cobiças do nosso próprio humano são as coisas que se rebelam, se levantam, interpondo-se entre nós e a luminosidade e o calor do influxo Divino, e lançam assim a sombra e o frio na nossa percepção, escurecendo nosso entendimento, gelando nossa afeição e nosso ânimo pelo que é espiritual. Perdemos de vista os ideais interiores de Beersheba e nos voltamos para os valores próprios e terrenos de Haran. As coisas que em nosso próprio bloqueiam a vida interior e provocam a noite e o inverno são significadas pelas feras, como neste Salmo: (104:19, 20): "Designam a lua para as estações; o sol conhece o seu ocaso; ordenas a escuridão e faz-se a noite, na qual saem todos os animais da selva".
Deve ser dito, entretanto, que os amores corpóreos e terrestres e mesmo o amor de si e do mundo que estão no homem natural, aqui chamados animais, não são proibidos ou nocivos ao homem, contanto que estejam dentro da Ordem, isto é, tanto quanto sejam postos em obediência e sujeitos aos preceitos de amor ao próximo e amor ao Senhor. Quando porém se tornam o principal, o homem que está sendo regenerado sente os efeitos, toda a sorte de aflições que trazem. Os combates de tentações consistem exatamente em subjugar o que é do homem natural e fazê-lo obediente ao homem interno e espiritual.
Mas, voltando a história de Jacó, lemos: é tomou (uma) das pedras do lugar e pôs por seu travesseiro. "Esta parte do texto nos ensina a respeito da saída do homem desse estado externo e como isto é possível. "As pedras" aqui "são as verdades inferiores, como as são do homem natural"; e que por travesseiro significa a comunicação com o Divino, pois que, como nos instrui os AC 3695, a "nunca ou pescoço, sob o que fica o travesseiro - é a comunicação dos interiores (ou superiores, representados pela cabeça) e dos exteriores (ou inferiores, representado pelo corpo)". Assim, "o que está debaixo da nuca significa aqui a comunicação dos interiores ou Divinos com os exteriores". Com efeito, quando o homem se encontra nesse estado da noite ou inverno, como se em uma prisão, a saída, é pelas verdades naturais da Palavra que o Senhor lhe comunica alívio, força e livramento espiritual.
As verdades da letra são as quais por onde o Senhor opera na plenitude, influindo luz e calor; por meio delas o caminho é de novo aberto para o homem, porque daí ele quebra as cadeias e se vê outra vez livre. A tranqüilidade e a paz que lhe são conferidas para sua luta são representadas pelo que foi dito de Jacó: "e deitou-se naquele lugar', pois "deitar" significa o estado de tranqüilidade, porque, então, o homem é agradecido com a confiança de que terá sucesso.
Quando o Divino Bem e a Divina Verdade que estão no interior, agindo por meio dos bens e verdades dos externos, comunicam ao homem a luz e a energia necessárias, ele então supera os empecilhos e se torna um vencedor. O que vem do próprio é adormecido e não o inquieta mais. No livro de Levítico 26:3 e 6, nós temos esta promessa: "Se andardes nos meus estatutos, e guardardes os meus mandamentos, e os fizerdes... darei paz na terra, e dormireis seguros, e não haverá quem vos espante; e farei cessar os animais nocivos da terra, e pela vossa terra não passará espada". A confiança que, quando atravessamos esses estados, devemos ter no Senhor também se encontra no Salmo (139:1, 11, 12): "Senhor, tu me sondaste e me conheces ... Se disser: De certo que as trevas me encobrirão, então a noite será luz à roda de mim, nem ainda as trevas me escondem de ti, mas a noite resplandece como dia..."
E Jacob sonhou: aqui e no que segue se fala da previdência do que é comunicado ao homem pela verdade. No sonho de Jacob esta comunicação foi representada pelos anjos subindo e descendo a escada; e a visão do Senhor e Sua promessa são a revelação dos estados de bem-aventurança que dali haveriam de vir.
As mudanças de estado por que passamos, especificamente, a obscuridade na fé e o esfriamento do amor, às vezes se nos parecem eternos e são de fato difíceis de se atravessar. O interesse e a atração que temos pelo que é corpóreo e mundano parece-nos fortes e difíceis demais de se superar. E, no entanto, são fases passageiras e que se tornam benéficas para a nossa regeneração, se soubermos ter perseverança e nos firmarmos na força do Senhor. Por causa dessa firmeza um Salmo nos diz: "Não temerás espanto noturno, nem peste que ande na escuridão". Há um meio de comunicação entre os externos e os internos, entre Haran e Beersheba. Esse meio nos dá o retorno aos estados felizes da primavera e manhã, onde há novo ânimo, nova vida, conforto e alegria. Outra vez, ouçamos o que nos fala o Senhor no Salmo (30:5). "O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem ao amanhecer". AMÉM.
Lições: Gênesis 28; Salmo 77


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