Da morte para a vida

Sermão pelo Rev. Cristóvão R. Nobre

“Depois se levantou Abraão de diante de sua morta, e falou aos filhos de Hete, dizendo:  Estrangeiro e peregrino sou entre vós; dai-me possessão de sepultura convosco, para que eu sepulte a minha morta de diante da minha face. (Gên. 23:3)

A experiência da morte e do sepultamento de um pessoa íntima querido é talvez a experiência mais impressionante aos nossos sentidos naturais. Nossa impotência diante da grande mudança, a imagem fria do corpo já estranho à pessoa com quem tínhamos convivido abala nossos corações e mentes.
Mas aprendemos que estas fortes impressões que a morte nos causa estão ligadas à idéia que recebemos, a saber, de que a vida está no corpo. “O homem natural imagina que o corpo, só, é o possuidor da vida”. (AC 5078).
Para os nossos sentidos naturais, tão importante é essa impressão de que a vida está no corpo, que a própria Revelação Divina, bem como as doutrinas de diversas religiões, ensinaram-nos sobre a ressurreição em conformidade com essa impressão. Falando a essa aparência que adotamos, a Revelação Divina cultivou em nós a expectativa  de uma espécie de continuidade, dizendo-nos que o corpo não devia desaparecer definitivamente, mas ressurgir um dia para a vida. Só assim, com a esperança de uma possível ressurreição de seu corpo, onde supostamente residia a vida, a criatura humana pôde aprender suportar a idéia da morte. Lemos nos Arcanos Celestes que:  “Se não lhe fosse permitido acreditar que esse  corpo vai receber vida de novo, o homem se recusaria inteiramente a crer em qualquer ressurreição” (Ibid.).
Segundo a ilusão de que a vida é do corpo, e que o corpo é imprescindível para continuarmos a ser, é que foi geralmente adotada e ensinada nas religiões a doutrina de uma ressurreição do corpo num dia qualquer no futuro, ainda que seja para o juízo final.
A verdade genuína, muito mais lógica, racional e confortadora é que a vida não está no corpo, mas no espírito. E o ser da pessoa não depende de uma restauração do corpo para ressurgir, mas “ressurge imediatamente após a morte, a tal ponto que ela imagina estar em  seu corpo, da mesma maneira como quando estava no mundo, tendo uma face e membros, braços, mãos, pés, peito, ventre e lombos como os que tinha antes. De fato, quando ela se observa e se toca, diz que é exatamente como era no mundo” (Ibid.)
Pensar na morte segundo esse ensinamento deve nos trazer concepções e sentimentos diferentes. Porque faz muita diferença quando se acredita que a vida não está no corpo e muito menos tem origem no corpo; faz muita diferença saber que a vida reside no espírito e retira-se com o espírito quando o corpo não pode mais se prestar aos usos adequados à vida natural.
Como os demais crentes de qualquer religião, acreditamos que a morte e o desaparecimento completo do corpo não é vida. Mas, além disso – e aí está a diferença fundamental de uma crença fundada nas Doutrinas Celestes do sentido interno da Palavra – acreditamos que a ressurreição se efetua não quanto ao corpo, mas quanto ao espírito, pois o corpo de nada nos serve mais. Diferentemente das demais crenças, não dependemos da volta ao corpo natural para continuarmos a viver nossa vida, exercer nossas potencialidades e prestar nossa serventia. Não precisaremos esperar milhares de anos por uma hipotética ressurreição do corpo.
Segundo nossa crença na Nova Igreja, a morte, do ponto de vista do pensamento natural, é quando as substâncias naturais que formam o corpo ficam incapacitadas de servir como habitáculo do espírito e por isso este se transfere para uma vida mais plena. Os que creram no Senhor e viveram no bem, saem de um estado obscuro para um estado luminoso e feliz. Um homem ou uma mulher, logo que ressuscitados no mundo dos espíritos, querem se examinar, observar seu corpo feito de substância espiritual e se vêem, a princípio, exatamente tal como tinham sido aqui. As deformidades e impedimentos físicos desapareceram e isto, por si só, já constitui motivo de um imenso regozijo para os que faleceram enfermos ou atrofiados. A pessoa pode sentir pelo tato a textura de sua pele e cabelos, pode perceber pelo olfato odores variadíssimos e com muito mais distinção, seus olhos percebem cores novas e enxergam muito mais distante ou, de perto, detalhes muito menores. Percebe seu coração bater, sente o ar entrar nos seus pulmões e assim por diante. Tem as mesmas sensações de frio e calor, fome e sede. Em suma, está num corpo idêntico, mas íntegro fisicamente. É um dom renovado de Deus para ela. A única diferença é que esse seu corpo não é mais composto de matérias orgânicas naturais, tiradas dos cento e poucos elementos químicos que estão na natureza, mas composto de elementos espirituais, invulneráveis e imortais. São para a vida eterna.
A este respeito, lemos nos Escritos que isto “que a pessoa vê e toca não o seu externo Lemos que ele levava no mundo, mas o interno que constitui a pessoa real. Esse interno é o que tem a vida em seu seio, tendo porém um revestimento externo ou por fora de toda a sua parte individual, dando-lhe a possibilidade de existir num mundo onde pode agir da maneira adequada e desempenhar suas funções” (AC 5078).
“Ele vê o corpo com seus próprios olhos – não os olhos que ele tinha no mundo, mas com aqueles que agora tem no outro mundo. São os olhos de seu homem interno, os que ele tinha usado para ver através dos olhos de seu corpo e contemplar os objetos terrenos e do mundo. Ele também toca e sente esse corpo – mas com as mãos ou os sentidos do tato que ele tinha no mundo e que jaziam por trás de seu sentido de tato no mundo. Ademais, cada um dos sentidos no outro mundo é mais aguçado e mais perfeito, porque pertence ao homem interno liberto dos externos. Os internos habitam num estado superior de perfeição, pois são eles que suprem a consciência sensorial aos externos, embora esse poder seja embotado e reduzido quando age por meio de externos, como acontece no mundo. E o que é mais, a percepção sensorial do interno é uma percepção do que é interno, e a do externo é a  percepção do externo. Sendo assim, uma pessoa pode ver outra após a morte e eles vivem juntos em comunidades com base no que eles são interiormente...” (Ibid.)
Por conseqüência, quando desperta no mundo dos espíritos, em geral no terceiro dia após a morte, a pessoa não tem a mínima noção de algum pavor que aqui ela tinha talvez associado à idéia da morte. Elas sentem como se acabassem de despertar de um sono; as que sabem que morreram e estão agora no mundo espiritual, sabem que agora vão ser preparadas por bons espíritos e anjos para a sua vida eterna; outras que, enquanto viveram aqui,  não acreditaram na vida eterna, continuam ainda se recusando a crê-lo, e acham que estão ainda no mundo natural, pois, embora tenham passado pela mesma experiência de morrer quanto ao corpo, vêem-se vivas e tangíveis e por isso julgam estar ainda no mesmo corpo.
Por causa dessa real de continuação da vida é que não existe para os anjos a idéia de morte tal como a que temos, isto é, associada ao luto, ao medo, ao pranto, ou à deformidade e à deterioração cadaverosas. Por causa disso também, na Palavra, quando se fala em “morte”, não se entende por isto a morte que conhecemos, mas uma outra espécie de morte, a morte real, aquela que devemos temer: a morte do espírito, que advém da aceitação do pecado, da permissividade e da indulgência de nossos maus amores.
Quando se diz que o pecado causa a morte espiritual, não se entenda que um espírito tenha seu corpo destruído, mas sim que ele perde a capacidade de receber a vida do céu; não foi vivificado por meio da regeneração e por isso não é capaz de desfrutar o prazer celeste do uso, que é a vida eterna mesma para a criatura humana..
Os anjos não pensam no sepultamento, mas no que ele representa, ou seja, o fim da vida natural e, assim, a saída de uma vida obscura e do próprio e entrada na vida celeste, por meio da regeneração. Para nós, sepultar, pôr o corpo de um irmão na terra é uma experiência triste, mas para os anjos é uma experiência alegre de ressurreição, como se a mãe terra estivesse dando à luz um novo habitante do mundo espiritual.
Mas “sepultar” se aplica, também, no sentido espiritual, às coisas que devem, necessariamente, ser enterradas. E as coisas que são sepultadas no homem espiritual são suas cobiças e os enganos delas derivados. Por isso, o ato de “sepultar” adquire uma sentido positiva quando se trata da velha vontade, que deve ser morta, para a nova vontade, chamada consciência, ressurja; “sepultar” se aplica à nossa natureza pecaminosa, egoísta, propensa ao mal, a qual deve ser extinta dentro de cada um de nós, para que uma natureza nova seja erigida pelo Senhor por meio das verdades de Sua Palavra.
Quando se olha por este prisma, a morte não é pode ser tida como um processo medonho imposto pelo Criador ao homem indefeso. Nem o sepulcro deve se aplicar à morte do que é bom, pois isto vai viver, uma vez que tudo o que é realmente bom é eterno. “Morte” e “sepulcro” devem, para nós, ter o sentido de nossa mutação, nossa possibilidade de continuarmos a vida.
Considerando que aquilo que morre são em nós as coisas perecíveis, imperfeitas e corporais, tais como as orgânicas do corpo, e, no plano da mente, são as coisas realmente nociva referentes às cobiças do amor de si e as falsidades daí provenientes, por isso, é que, na letra da Palavra, sepulcro significa, realmente, a regeneração, a morte do velho homem e a vida eterna e o céu para o novo, como na história de Abrahão, quando ele comprou uma sepultura para sepultar sua esposa, Sarah. (AC 2916). “Depois se levantou Abraão de diante de sua morta, e falou aos filhos de Hete, dizendo: Estrangeiro e peregrino sou entre vós; dai-me possessão de sepultura convosco, para que eu sepulte a minha morta de diante da minha face”.
 “Dai-me possessão de sepultura convosco”. Que isto significa... ser regenerado, é evidente pela significação de um sepulcro, que, no sentido interno da Palavra, significa a vida ou o céu, e, no sentido oposto, a morte ou o inferno. Que signifique o céu, é porque os anjos, que estão no sentido interno da Palavra, não têm idéia alguma de sepulcro, porque não têm idéia da morte; e por isso, em vez de uma sepultura, eles percebem somente a continuação da vida e assim a ressurreição – porque o homem ressurge quanto ao seu espírito e é sepultado quanto ao seu corpo (ver n. 1854). E porque “sepultar” significa a ressurreição, também significa a regeneração, porque a regeneração é a primeira ressurreição do homem, visto que ele então morre quanto ao primeiro homem e ressurge quanto ao novo. Pela regeneração o homem de morto se torna vivo, donde vem a significação de um “sepulcro” no sentido interno. Que um sepulcro signifique ressurreição e também regeneração, é evidente em Ezequiel: 37:11-13).  “Então me disse: Filho do homem, estes ossos são toda a casa de Israel. Eis que dizem: Os nossos ossos se secaram, e pereceu a nossa esperança; nós mesmos estamos cortados. Portanto profetiza, e dize-lhes: Assim diz o Senhor DEUS: Eis que eu abrirei os vossos sepulcros, e vos farei subir das vossas sepulturas, ó povo meu, e vos trarei à terra de Israel. E sabereis que eu sou o SENHOR, quando eu abrir os vossos sepulcros, e vos fizer subir das vossas sepulturas, ó povo meu. E porei em vós o meu Espírito, e vivereis, e vos porei na vossa terra; e sabereis que eu, o SENHOR, disse isto, e o fiz, diz o SENHOR”. (AC 2916)
Consideradas assim, as coisas que para nós se referem à morte devem necessariamente ter uma outra concepção, muito diferente do que têm as pessoas à nossa volta, que ignoram esses ensinamentos sobre a vida eterna. É óbvio que a realidade e a presença da morte sempre poderá nos trazer os sentimentos de tristeza por causa da separação no tempo e no espaço. A saudade e a melancolia que ela provoca são conseqüências do tempo e do espaço, aos quais estamos presos enquanto estivermos no mundo natural. Portanto, é inevitável que sintamos a perda da presença da pessoa conosco e nos entristeçamos por isso, pelo desejo impossível de vê-la novamente conosco no mundo natural.
Entretanto, é somente quanto a isto que nossos sentimentos relativos à morte se assemelham com os que tínhamos antigamente ou que o que a maioria das pessoas tem. Quanto a tudo o mais, nossas idéias são outras, nossa concepção e percepção do fato deve ser também outra e nossa atitude, igualmente, outra. Encaramos a morte com tristeza e a ausência da pessoa com saudade, mas não com a incerteza, o medo e o terror do desconhecido. Nossa saudade tem por dentro a esperança certa do reencontro e daí vem nosso conforto. Nossa consolação está na promessa do Senhor, expressa em muitas passagens da Palavra, em que Ele nos assegura que: “Aquele que crê em Mim, ainda que esteja morto, viverá”. E: “Na verdade, na verdade vos digo que quem ouve a minha palavra, e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida (João 5:24). Amém.

Lições: Gênesis 23; João 15:17,30; AC 2916.