"O Culto Doméstico"

Sermão pelo Rev. Cristovão R. Nobre

"Ó, vinde, adoremos e prostremo-nos;
ajoelhemo-nos diante do Senhor que nos criou"

Salmo 95:6

   As práticas externas do culto, chamadas sinais da caridade, são uma parte essencial na vida cristã, pelos benefícios que propiciam à formação do homem espiritual. Mas, para terem esses usos, precisam ser estendidas à vida individual e familiar, não se limitando à reunião semanal na congregação.
O culto é prescrito pelo Senhor, na Palavra, por causa de sua imensa importância para o homem. Não que o Senhor necessite ser cultuado; Ele não precisa de louvores nem de celebrações, mas porque nós necessitamos dos bens que o culto nos traz. Assim lemos nos Escritos: "Quem não sabe como é o caso com o culto do Senhor, pode crer que Senhor gosta de ser adorado, e deseja a glória dada pelo homem, assim como o homem dá aos que lhe pedem a fim de ser louvado. Quem crê assim não tem conhecimento do que é o amor, e ainda menos do que é o amor Divino. O amor Divino consiste em desejar culto e glória, não por causa de si, mas por  causa do homem e sua salvação; porque quem cultua o Senhor e lhe dá glória está na humilhação o próprio é afastado, enquanto o Divino é recebido; pois é só o próprio do homem, por ser mal e falso, que obstrui o Divino. Esta é a glória do Senhor; e o culto a Ele é por causa desse fim" (AC l0646).
Sabe-se que o culto deve ser dúplice, interno e externo, fazendo, porém, um. O externo faz o corpo e o interno a alma do culto. E isto é porque o homem é também interno e externo. Lê-se nos Arcanos: "Antes de se tornar uma igreja, isto é, antes de ter sido regenerado, o homem está nos externos; e quando está sendo regenerado, é levado dos externos, ou antes, por meio dos externos para os internos... e depois, quando foi regenerado, todas as coisas do homem interno são findas nos externos. Assim, toda igreja deve necessariamente ser interna e externa".
As práticas externas do culto, ou os sinais da caridade, são, portanto, indispensáveis nessas três fases da vida: antes da regeneração, quando o homem só pode estar nas coisas externas; se não houver essas práticas, não haverá, por conseguinte, nenhum culto com o homem. Este é o caso das crianças. Depois, durante a regeneração, essas práticas servem de meio para conduzi-lo às coisas internas; por essas práticas o seu homem interno -e seu culto interno- é cultivado, e sem elas ele perece. Por fim, quando regenerado, as tais práticas externas tornam-se  bases ou vasos correspondentes, em inteira harmonia com o culto interior que o homem então presta.
Uma outra passagem dos Arcanos nos mostra o valor e o uso do culto externo, dizendo: "Enquanto o homem estiver no mundo, não deve estar senão no culto externo (bem como no interno); porque pelo culto externo são excitadas as coisas internas, e por meio  do culto externo as coisas estão na santidade, a fim de que os internos possam influir. E, além, disso, o homem é assim imbuído de conhecimentos e é preparado para receber as coisas celestes, e é também agraciado com estados de santidade, ainda que disso não seja ciente, estados de santidade esses que são nele preservados, pelo Senhor, para uso na vida eterna"(l6ll8).
A Igreja está em nós; cada um de nós é a Igreja na menor forma; é por isso que estes dois aspectos do culto devem estar presentes em cada um de nós. Já a Igreja em geral é constituída pela união dessas Igrejas individuais, consistindo, assim, numa coleção de igrejas variadas, pessoas de diferentes idades e estados espirituais, que se congregam para um mesmo fim, para desfrutar, juntas, dos benefícios de fortalecimento, encorajamento e instrução mútuos, num exercício de fraternidade.
Se compreendemos assim a Igreja, concluiremos logicamente que a forma mais básica da Igreja em geral é a família. Na família há, também, diversos níveis ou estágios de vida natural e vida espiritual, em diferentes indivíduos que, no entanto, compartilham muitas outras coisas em comum. De fato, ainda que haja uma variedade de indivíduos, há, todavia grande similitude de gênios, índoles, afeções e tendências. A família é, por conseqüência, uma transição entra a Igreja individual e a Igreja geral, sendo uma e outra ao mesmo tempo. Ela deveria ser, pois um primeiro núcleo da Igreja coletiva, um embrião da Igreja universal. Na verdade, há razões para crer que o vigor da Igreja em geral vem dessa primeiro núcleo, ou seja, das famílias, porque é aí que se realizam as uniões de pessoas que dividem esforços em prol da realização do amor  verdadeiramente conjugial; é aí que são implantados as verdades fundamentais que constituirão o indivíduo; e é aí que se aprende a exercitar o amor espiritual, a caridade para com o próximo, seja através do amor dos pais pelos filhos, seja dos filhos entre si.
São muitos os ensinamentos, e ainda em maior número os benefícios que podem se tirados desse conceito de família como Igreja  coletiva na menor forma. Na verdade, do ponto de vista das coisas ternas, a família nada mais é que uma associação terrena de criaturas que o Senhor ajuntou porque poderiam ser, de algum modo, mais imediatamente úteis umas ás outras, com respeito à vida eterna de cada uma delas. E se é correto este conceito, devemos então pensar na família como um verdadeiro elo que precisa existir entre a Igreja individual e a geral. Se não  existir esse vínculo, sempre haverá uma sensação de falta, de ausência; e sempre haverá um esforço latente a que existe; e se é um esforço real, haverá, potencialmente, o elo, substituído por pessoas que tomam o luar dos familiares ausentes, e ajudam, assim, a formar a Igreja.
Ora, sendo assim, devem ser aplicadas à família todos os ensinamentos concernentes à Igreja; aqui, especialmente, os que dizem respeito ao verdadeiro culto ao Senhor. Na família deve existir, portanto o culto interno - o essencial - e o externo - o básico- para que ela seja de fato a Igreja.
Vimos há pouco que o culto externo é constituído pelas práticas visíveis, os ritos e atitude de adoração. Estas práticas, chamadas "sinais da caridade", são assim descritas na obra "Doutrina da Caridade", como  lemos: "Os externos do corpo que pertencem ao culto são: l. Freqüentar lugares de culto; 2. Ouvir pregações; 3. Cantar com devoção e orar e orar de joelhos; 4. Participar do sacramento da Santa Ceia; também em casa: l.. Orar pela manhã e à noite, e também nas refeições e ceias; 2. Conversar com os outros sobre caridade e fé, e sobre Deus, o céu, a vida eterna e a salvação. 3. Com os sacerdotes, pregar e também ensinar individualmente; 4. Com todos, instruir as crianças e os servos essas coisas; 5. Ler a Palavra e os livros de instrução e de piedade" (l74).
São chamados "sinais" porque são índices ou manifestações do culto interior. Se há o culto interno, ele haverá de se manifestar por meio desses sinais visíveis; de outro modo os internos não podem subsistir.
São práticas desempenhadas com atos e palavras. Mas, destaquemos aqui especialmente as foram prescritas para a vida  da casa: l. Oração diária, pela manhã, à noite e nas refeições; 2. Conversas sobre assuntos da religião; 4. Instrução de crianças e de empregados; e 5. Leitura da Palavra e livros adequados. Ora, não há a menor dúvida de que, para exercermos estas práticas, necessitamos  incluir a nossa vida em família, tanto quanto nos for possível. Do mesmo modo que os afins se reúnem regularmente  com alegria, à mesa, para tomar o alimento natural, assim também, e com mais forte razão, deveriam se reunir, regularmente, em torna da Palavra, a fim de receberem juntos a nutrição espiritual. Há bens, há sentimentos e afeições que só se manifestam na esfera de comunhão do amor mútuo,  traduzindo-se em compreensão, consideração e harmonia, criando condições de empatia, quando todos  e cada um percebem as necessidades que têm entre si e de todos diante de um mesmo Pai Eterno. Numa reunião de culto familiar, a discussão amistosa dos ensinamentos e a troca de impressões enriquecem as lições e geram instrução e saber.
No livro bíblico do Eclesiastes há um versículo que diz: "Melhor é serem dois do que um ... porque se um cair, o outro levanta o seu companheiro" (4:9,l0). Isto se aplica muito bem no caso do culto da família. A afeição e o desejo que um está sentindo de cultuar ao Senhor pode, muitas vezes, animar e erguer a vontade debilitada dos outros. O convite ao culto, partindo de outrem, às vezes desperta-nos a alma que está amortecida em seus próprios cuidados. A mente se nos desperta, com o apelo para que esqueça um pouco de si mesma, que pense no Criador, ponha nEle sua esperança e sua confiança, entregue a Ele os anseios e submeta-se humildemente aos Seus sábios desígnios. Nosso coração é avivado pelo chamado do salmista: "Ó, vinde, adoremos e prostremo-nos; ajoelhemo-nos diante do Senhor que nos criou'.
A importância das práticas do culto domésticos é evidente pelos próprios usos a que se destinam, quais são: de submissão, reconhecimento e gratificação ao Senhor, o que é manifestado pelas orações que se faz de joelhos; de instrução espiritual, pelas conversas com os outros e com o sacerdote, sobre matérias da religião e, principalmente, pela leitura da Palavra, e também de outros livros; e de responsabilidade para com a instrução de nossos dependentes, sejam as crianças, sejam os empregados ou pessoas simples que dependem de nossa orientação. São três coisas vitais, portanto: sujeição ao Divino, instrução e caridade para com os necessitados. Devem, necessariamente, fazer parte ativa da vida cristã doméstica, porquanto fornecem bases propícias à realização do culto interno. Se negligenciássemos esses dois primeiros usos, a sujeição do Criador pelas orações e de instrução pela Palavra, estaríamos, sem dúvida, trazendo prejuízo a nós próprios e, indiretamente, aos outros. E a negligências do último uso, que é o de instrução às crianças e aos símplices, seria um malefício diretamente danoso ao nosso próximo, prejudicial a quem é incapaz  e por isso depende de nosso auxílio; pois, por omissão, estaríamos privando-os  da luz da Palavra Divina. E o Senhor nos exortou: "Vós sois a luz do mundo; não ... se  acende a candeia e se coloca debaixo do alqueire, mas no velador, e dá luz a todos os que estão na casa. Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens..." (Mat. 5:l4-l6). Muitos erros graves, ou males que são cometidos contra o próximo e contra Deus, são por omissão, por falta de desempenho de um uso da caridade.
"Notemos que os sinais externos do culto são requeridos no lar" dos pais e dos filhos e de uns para com os outros. "O lar deve ser o centro do culto". "Um ponto importante é que o culto feito em família é diferente do culto que as crianças freqüentam na Igreja". Sobre este assunto, o Bispo Willard Pendleton certa vez escreveu um livro: "É um sério engano crer que devemos deixar a instrução espiritual de nossos filhos para a igreja ou a escola. As escolas públicas não ensinam sequer os Dez Mandamentos às crianças, e as escolas da Nova Igreja, importantes como são, não podem tomar o lugar dos pais na vida espiritual da criança. A influência maior ... na vida de qualquer criança é a esfera do lar de seus pais. A escola da Nova Igreja tem o papel de suplementar a instrução dada pelos pais, e não de tomar o lugar dela ... Cada criança deveria aprender sobre o Senhor por seu pai e sua mãe, pois é da ordem que seu primeiro conhecimento do Senhor seja intimamente associado com o seu amor pelos pais" (Family Worship for Little Children). Não é por outra razão que, na pia batismal, os pais assumem a incumbência de prover o desenvolvimento espiritual de seus filhos e zelar por ele. Sabemos  que a preparação para  a vida eterna é a coisa mais importante deste mundo, incomparavelmente mais importante do que qualquer outra coisa. E, no entanto, qual de nós se preocupa em avaliar o conhecimento da Palavra que a criança tem adquirido? em examinar, junto com ela, o quanto esses conhecimentos têm sido ou não aplicados à sua vida infantil?
Chega-se à conclusão que essa responsabilidade e esses usos não podem ser desempenhados senão através da prática do culto em família. Uma  reunião íntima, familiar, durante uns breves momentos, entre muitos, que são separados para a Igreja, têm efeitos benéficos sobre a vida espiritual do cristão, muito mais do que se supõe.
Mas, para que as práticas do culto externo em família possam gerar seus benefícios e seus usos, é preciso que se observem algumas orientações dadas pelas Doutrinas:
Primeira: o culto deve ser espontâneo. "Nada é agradável ao Senhor se não for livre, espontâneo e voluntário". Ó culto pelo livre é o culto real, e o culto pela compulsão não é culto' (AC l947, 2880). Cabe porém, lembrar que essa espontaneidade não existe logo de início. Nossa vontade própria é a de não prestar culto a ninguém senão a nós. Há que se mudar isto, o que não se consegue senão pela auto-compulsão. Devemos, necessariamente, compelir nossa própria vontade, porquanto compelir a si mesmo não é contra a liberdade. Surgem tantas coisas que parecem ser mais importantes, quando queremos nos reunir, que, se formos levados pela nossa vontade própria, jamais prestaríamos o culto ao Criador. Assim, enquanto não somos regenerados, precisamos lutar contra uma vontade oposta, até que tenhamos adquirido o hábito de orar, falar sobre o Senhor, ler a Palavra, exercer o culto externo sem constrangimento, por amor, livremente, pois então será por nossa nova vontade, com é agradável ao Senhor.
No caso das crianças, todavia, visto que elas não dispõem ainda de real entendimento, não podem também dispor de plena liberdade. É justo, pois, que sejam constrangidas, quando necessário, a que prestem o culto externo, até que atinjam a idade adulta. É dito "quando necessário", porque, se houver paciência e cuidado, elas poderão ser conduzidas ao culto livremente, guiadas por suas afeições, e vêm por seu amor inocente e infantil, sem nenhum constrangimento.
Segunda orientação: o culto deve ser puro, isto é, proceder de interno que façam um com os externos. Em outras palavras, as práticas externas do culto devem ser o complemento das ações de caridade e dos pensamentos de verdade que se teve, durante o dia, nos negócios e nas ocupações, em relação ao próximo, pois estas coisas são as que fazem o verdadeiro culto interno. Se houver vida cristã de caridade, a vida de piedade quererá descer e se manifestar nos atos exteriores de adoração a Deus, tanto na congregação como no lar.
A terceira coisa do culto é a idéia de Deus. Na Nova Igreja, adoramos o Deus visível na pessoa do Senhor Jesus Cristo. Vemo-Lo na Palavra, tal como Se revelou no Sentido Interno do Seu Segundo Advento. Por isso, no culto, temos o hábito de voltar nossa atenção para a Palavra aberta, pois é lá que o Senhor Se faz presente conosco. Por esta mesma razão, as crianças são ensinadas a ver a Palavra como um livro especial, Santo, porque é o Senhor Mesmo falando; um livro, por isso, merecedor de todo o nosso respeito. E, quando aberto, por representar o Senhor presente, dirigindo-se a nós, que se tenha a reverência devida ao Nome do Senhor.
O abrir a Palavra, ajoelhar-se e curvar a face diante do Senhor, suplicar-lhe com humildade pelo sustento espiritual, ser-Lhe grato por  bênçãos concedidas, são símbolos externos muito poderosos, excelentes bases correspondenciais para o culto de vida. A reverência e o temor santo desses momentos criam um ambiente de paz, de afeição e de luz, propício para a recepção do alimento da alma, de um modo digno. O Senhor falou, em João (4:23,24): "Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem. Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adoram em espírito e em verdade".
Se em nossa vida civil e moral temos procurado ser cristãos fiéis da Nova Igreja, ao nos aproximarmos do Senhor com esse espírito para a prática do culto doméstico, com os nossos, no íntimo de nossos lares, poderemos crer e ter plena confiança que nossa adoração é recebida e nossas orações são ouvidas, segundo lemos nas Doutrinas (AE l82): "Com os que vivem uma vida moral de origem espiritual, o culto... é verdadeiramente culto a Deus. Pois suas orações se elevam ao céu, e são ouvidas, porque o Senhor conduz as suas orações pelo céu até Ele Mesmo".
Deve haver um momento especial, deixado para esta necessidade tão vital, para esse uso tão excelente, que é o do culto familiar. Havendo dedicação, havendo digna humildade, havendo santidade e reverência, quando o Senhor falar, as mentes estarão aptas a ouví-lo e compreender os propósitos sapientíssimos que reservou para nós.