Os Crimes de Davi

Sermão pelo Rev. Cristóvão R. Nobre

"Tu és este homem"

II Sam 12:7

Ao lermos esta história, temos o sentimento de que é uma das mais tristes do Antigo Testamento. Observamos como um indivíduo, a quem tudo tinha sido dado para sua satisfação pessoal, deixa-se levar pela cobiça a tal ponto de praticar os crimes de adultério, engano e um assassinato planejado e executado com sem compaixão. A violência desse crime ainda mais se ressalta porque a vítima inocente, Urias, deu exemplo de fidelidade ao próprio criminoso. Urias teve uma nobreza incomum, pondo o bem da seus patrícios acima de seu próprios prazeres, porquanto não aceitou o repouso e o prazer enquanto os amigos ainda pelejavam. Todavia, nem um gesto de tamanha integridade sensibilizou Davi, que persistiu em seu crime até executá-lo totalmente.
Consumado o assassinato, ficou encoberto o adultério. Mas então veio a ele um profeta, chamado Natan. O profeta narrou a Davi uma história; um crime hediondo em que um homem rico e egoísta que sacrificou uma vítima indefesa, uma cordeirinha tomada de  um vizinho pobre, ainda que tivesse inúmeras ovelhas e vacas em sua propriedade. Davi se enfureceu, indignado com a vileza do rico  fictício, e proferiu uma sentença dura: "Vive o Senhor que digno de morte é o homem que fez isso! E pela cordeira tornará a dar quadruplicado, porque fez tal coisa, e porque não se compadeceu". E foi então que o rei Davi ouviu de Natan as palavras mais duras que talvez jamais ouvira: "Tu és este homem". E o Senhor, pela boca de Natan, passou a lembrar a Davi a iniqüidade que cometera, a sua crueldade e  a sua ingratidão, porquanto o Senhor o havia tirado de detrás do rebanho, simples pastor que era, para chefiar a nação mais poderosa, relativamente, que existiu até hoje. Davi tivera tudo o que sua alma desejasse e mais teria se assim o quisesse, e, no entanto, não se compadeceu; entregou-se à cobiça do adultério, à perfídia e finalmente ao assassinato.
Como conseqüência desse ato, a casa de Davi foi marcada para sempre pela desgraça de males semelhantes: primeiramente, o filho que resultou desse adultério veio logo a morrer, não obstante a oração, a súplica e o fervor de Davi. Depois,  outro de seus filhos, Amnon, cometeu o crime de incesto com sua meio-irmã Tamar. Por causa disso, Amnon foi morto por um irmão, Absalão, que vingava a vilência feita a Tamar. Esse mesmo Absalão veio depois a usurpar de Davi o trono real; provocou uma rebelião e fez o próprio pai fugir caminhando e chorando de Jerusalém. O filho rebelde, entrando no palácio, ultrajou as esposas de Davi publicamente. Para ainda maior desgosto de Davi, Absalão veio logo depois a morrer pela lança de Joabe. Um outro filho de Davi e o seu sucessor, Salomão, apesar de sua inigualável sabedoria e riqueza, terminou seus dias em meio a imundície de idolatria e de uma multidão imensa de concubinas. O abuso de Salomão foi que causou o povo de Israel se rebelar contra o descendente de Salomão.
Mas, o que nos chama a atenção nesta história trágica é que Davi não foi capaz de reconhecer sozinho seu mal. Foi necessário que o crime lhe fosse descoberto e lançado em face pelo profeta Natan: "Tu és este homem". O mal foi; Davi reconheceu seu crime e a setença foi proferida. O juízo foi feito.
Quando examinou seu próprio caso sem o saber, olhando de um ponto de vista externo, Davi pôde fazê-lo com isenção, pois seu proprium não se sentiu ameaçada. Não sendo envolvido por conceitos tendenciosos provenientes de sua cobiça, seu julgamento foi só do entendimento e racional. A verdade foi vista pelo seu entendimento sem que a vontade corrupta interferisse.  Sem essa exposição por Natan, Davi continuaria a esconder e ignorar seu mal, ou o desculparia por argumentos falsos.
A criatura humana é constituída mormente por sentimentos ou afeições. O amor é a vida do homem e o homem é aquilo que ele ama e não aquilo que ele entende. São, pois, as afeições que governam, conduzem, dirigem e subjugam o entendimento e todo o homem. Por isso, antes de ser regenerada, quando uma pessoa  se analisa ou julga uma situação a partir da vontade própria, dificilmente ela vê sua condição real e por isso não admite sua culpabilidade. Seu entendimento julga e examina pela luz externa, apenas, e nessa a vontade própria não se desnuda diante da razão. Ainda que o mal esteja aparente e bastante caracterizado, como no caso de Davi, a tendência ntural da criatura humana é, primeiramente, esquivar-se da culpa e, em seguida, se a admite, atribuir a responsabilidade de seu erro a outrem. Foi assim no caso de Adão, que, ao ser interrogado pelo Senhor, primeiro se escondeu. Depois, admitiu seu erro, mas imputou a culpa à mulher; e esta, por sua vez, responsabilizou a serpente.
Quando estabeleceu uma Igreja espiritual nesta terra, nos tempos antiqüíssimos da Igreja Noética, uma providência vital que o Senhor tomou foi a de separar no homem essas duas faculdades, vontade e entendimento, fazendo com que fosse possível, a partir dali, que o entendimento se elevasse acima da vontade e fizesse julgamentos independentemente dela. Assim, quando a raça antiqüíssima submergiu-se completamente em males horrendos, como relatam os Escritos nos Arcanos Celestes, a raça nova, representada por Noé, pôde ser salva, porque, ainda que a vontade estivesse no mal, o entendimento racional como que flutuava acima desses males e falsos, e via o vero e o caminho de sua redenção. De uma posição superior, a racionalidade humana podia bem enxergar com toda amplidão a natureza do mal, bem como as conseqüências mais próximas e mais distantes de seus atos. E em razão disso, no uso da liberdade, o racional humano poderia empreender as lutas espirituais para reerguimento ou reedificação da vontade. Este é o caminho de salvação da igreja espiritual.
Essa história da separação da vontade e do entendimento foi toda contada no sentido espiritual da história simbólica da arca de Noé. A arca, com seus três andares, é o símbolo dos três graus da mente humana, repleta de afeições que o Senhor preservou. A flutuação da arca sobre o dilúvio é o processo de instrução e reforma da mente, resultando a regeneração e salvação da Igreja.
Mas a Igreja cristã que existe hoje no mundo é uma Igreja natural. Ainda que seu entendimento seja capaz disso, raramente, se não nunca, ele se eleva acima de uma compreensão literal, material e imediatista da Palavra Divina. Por isso também, sua visão e sua compreensão da natureza humana são estreitas, limitadas e incompletas. Dentre os cristãos hoje, raros são os o que é o mal que se chama pecado e contra o qual devem combater,  e ainda mais raros são os que podem racionalmente olhar para dentro de si, examinar seus atos e intenções, ver os males, reconhecê-los como sendo os tais pecados contra Deus, confessar-se culpado por causa deles, suplicar auxílio do Senhor e, então, iniciar uma vida nova, distinta e diferente da que então até ali vivia.
Lemos em VRC 544: "Como no mundo cristão reformado há poucos que façam penitência, é por isso que foi acrescentado aqui, que aquele que não se olhou interiormente, nem se escrutou, não sabe enfim o que é o mal que dana nem o que é o bem que salva... Com efeito, o mal que o homem não vê, não conhece e não reconhece, permanece, e o que permanece se enraíza cada vez mais, até obstruir os interiores da mente, o que faz com que o homem se torne a princípio natural, em seguida sensual, e por fim corporal..."
Sem a instrução da verdade espiritual do sentido interno da Palavra, a Igreja permaneceria natural. E a tendência do natural é não se elevar acima de sua vontade e suas afeições, e seu entendimento permanece atrelado e submisso aos desigínios da vontade. O entendimento vê o que a vontade quer enxergar, e se o entendimento vê o vero, a vontade o perverte ou distorce para acomodá-lo aos seus juizos.  Por isso é que o homem natural dificilmente olha para si mesmo com isenção e ainda mais dificilmente confessa-se culpado de algum pecado perante Deus. Com efeito, mais conveniente lhe é o considerar-se bom, honesto, justo e salvo, por isso melhor que os outros, sem erros e sem defeitos. E se alguma coisa lhe sobrevém de errado, prefere culpar os outros. Prefere identificar nos outros a razão de suas desgraças.
Pensando na função corajosa de Natan, podemos compreender muitas vezes a função da Palavra de Deus. A Palavra, em seu sentido genuíno e espiritual, nos mostra verdades claras a nosso respeito que nunca enxergaríamos por outro meio. Natan para nós, ou a Palavra da letra esclarecida pelo sentido espiritual, serve ao uso de nos fazer ver onde estamos e a natureza de nossa real condição espiritual. As histórias, parábolas, profecias e instruções da Palavra Divina são, muitas vezes, o dedo de Natan, nos mostrando nossas falhas e nos dizendo também: "Tu és esse homem". A mensagem que lemos na Palavra não é para julgarmos o estado espiritual dos outros, mas o nosso próprio.
No entanto, alguém poderia argumentar: "Mas Davi cobiçou, adulterou e matou, e eu não faço isso". Portanto, eu não sou tal homem.
Ocorre que, espiritualmente, o crime de Davi representa um mal corriqueiro a que muitas vezes estamos sujeitos a praticar nos internos. A mulher, na letra, representa o bem e o marido representa a verdade que se casa com esse bem. Por isso, praticar adultério com a mulher e assassinar seu marido, como fez Davi Porque, representa, no sentido espirtual, a adulteraração do bem e, em seguida, a violência à verdade. Quando se chama o bem de mal e o mal de bem, a pessoa o adultera; e agrava ainda mais seu mal se, depois, perverte o juizo e a justiça, mudando a verdade para adaptá-la ao bem que foi adulterado.
Os Dez Mandamentos, quando entendidos espiritualmente, não falam de dez situações, mas de todas as situações possíveis de nossas vidas em que podemos andar errados. De fato, podemos não estar praticando um mal nos externos, como fez Davi, mas podemos estar mergulhados nesse mal até a alma nos internos. Muitos se consideram honestos porque não estendem a mão para sacar de uma faca e ferir alguém, ou porque jamais puxariam o gatilho de um revólver para atirar num ser humano; também não poriam alguém numa situação de risco fatal, como fez Davi com Urias, para que essa pessoa venha a morrer. Entretanto, eles ignoram que, muitas e muitas vezes, praticam assassinato nos internos de seu coração e sua mente, porque, o assassinato considerado espiritualmente, como aprendemos nas Doutrinas Celestes, vai além de tirar a vida física. Pois quem odeia seu irmão o está matando espiritualmente, e o mataria se o pudesse, se não temesse as conseqüências externas e decorrentes de sua vida em sociedade.
Uma pessoa que nutre ódio por outra mas faz segredo disso, quando chega ao mundo dos espíritos e entra no seu segundo estado, ao a reecontra seu desafeto, ela não faz mais segredo de seu ódio; ela se enferuce quando vê a outra e procura imediatamente matá-la, porque agora as intenções de seu espírito se manifestam abertamente nos atos.
E quando pensamos que o desprezo pelo irmão é, de fato, um grau de ódio, e que desprezar resulta no mesmo que odiar, podemos imaginar quão mais grave é esse julgamento que devemos fazer de nossos sentimentos. Desprezar o próximo é, de fato, matá-lo espiritualmente. E quantos não desprezam seu semelhante por motivos fúteis ou por antipatia gratuita ou por se julgar superior?
O Senhor fez uma grave advertência no Novo Testamento: "Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás, e quem matar será réu de juizo. Eu, porém, vos digo: Quem quer que se encolerizar contra seu irmão temerariamente, estará sujeito a juizo;; e qualquer que disser a seu irmão: Tolo, será réu de sinédtrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do inferno".
As verdades da Palavra às vezes parecem muito duras. E quem de nós iria aceitar e admitir isso a nosso respeito, se não fosse a Palavra de Deus, em seu sentido espiritual, para nos dizer? A Lei Divina é assim, julgando e penetrando até à alma, mostrando às claras qual é a real natureza humana, suas intenções e o que há por trás de atos e palavras do homem irregenerado.
De fato, é difícilimo admitir nossos próprios erros, mas a prática habitual do auto-exame diante de Senhor, pode nos fazer conhecer nossas reais intenções e pode nos convencer de quem realmente somos, e das razões verdadeiras por que fazemos ou deixamos de fazer isto ou aquilo.  Só pelo auto-exame é que admitimos a verdade de que somos espiritualmente mortos quanto à nossa vontade, e precisamos desesperadamente de sermos transformados por Deus por meio da reforma e da regeneração.
Mesmo quando estamos sendo regenerados, ainda resistimos muitas vezes em ver os nossos males, e preferimos vê-los e julgá-los somente nos outros. Mas a persistência no conhecimento espiritual, na prática do auto-exame, e no esforço para transformação de nossa vontade antiga, nos leva, pouco a pouco, a que seja implantada em nós a verdadeira consciência, o segundo racional, verdadeiro, em cuja luz poderemos julgar segundo o justo juizo.
A Palavra de Deus é cheia de exemplos, parábolas e ilustrações exatamente por causa dessa nossa condição semelhante à de Davi, a saber, nossa dificuldade em confessar os erros. Pela observância dos outros, porém, podemos começar a reconhecer os males, como foi aqui, com Davi. Depois, com o avanço da regeneração, reconheceremos que esses males também repousam em nós, de uma forma ou de outra, em maior ou menos grau. E reconhecemos que não somos diferentes nem melhores que Davi, porque o que Davi fez no corpo é o que a critura humana faz continuamente: cobiçar o mal e violentar a verdade a fim de encobrir a cobiça. E violentar o vero pelo amor do mal é um pecado para o qual não há remissão, porque é o que se chama mal de propósito deliberado ou dolo. Ainda que, depois, a pessoa reconheça seu erro, haverá danos, mágoas, valores destruídos que ela nunca mais poderá reedificar.
"Tu és este homem", disse Natan a Davi. E nós ficamos pensando: "Bem feito para Davi. Natan fez bem em lhe apontar o mal". Mas a Palavra está escrita para nós, hoje. Nós agora somos o Davi, e os veros espirituais são o Natan que nos fazem olhar para dentro de nós, ver as intenções e os atos, e reconhecer nossas faltas diante de Deus para que sejamos lavados de nosso males e falsos, regenerados e salvos. Nós somos este homem de quem Natan fala, muitas e muitas vezes em nossa vida.
Davi, quando ouviu o retorno de sua própria acusação, se humilhou diante do Senhor, e por causa dessa humilhação, parte das conseqüências de seu crime puderam ser evitadas: "Deus traspassou o seu pecado... não morrerás". Mas, outras vezes, quando o Senhor falou duramente, como fez Natan, muitos não tiveram a humildade de Davi. Ao contrário, se escandalizaram, porque não admitiram o julgamento da verdade proferida, e voltaram atrás. Lemos em João: Muitos, pois, dos seus discípulos, ouvindo, disseram: "Duro é este discurso. Quem o pode ouvir? ... Desde então, muitos dos seus discípulos tornaram para trás, e já não andavam com Ele" (6:60, 66). Com que aqueles discípulos se escandalizaram? Com alguma falsa acusação que o Senhor tivesse proferido? Com alguma injustiça da parte do Senhor? Não. Com a verdade. Ao invés de se examinarem, reconhecerem seu estado e procurarem aplicar a Palavra salvadora do Senhor em suas vidas, acharam nela pedra de tropeço e, escandalizados, ressentidos, deixaram de andar com Ele. E foram muitos, como disse a Palavra, que retrocederam. Na verdade, mais foram os que se escandfalizaram com a verdade do que os que a aceitaram, porque assim é com a natureza humana.
Natan não podia dizer outra coisa a Davi, senão o mal de Davi permaneceria encoberto, acarretando sua completa ruína. O Senhor também não podia correr atrás daqueles discípulos e mudar Seu julgamento a fim de agradá-los. Na maioria das vezes, ouvimos o juizo e recusamo-nos a aceitar a correção; e permanecemos empedernidos em nossa situação, queixosos com a verdade. Por causa da liberdade do homem, isto é inevitável. Mas a verdade só tem poder salvador se for proferida, ouvida e aplicada sem ser violentada ou adulterada por causa do mal.
Por isso, um ministro que aconselha e dá uma palavra de admoestação como esta, está, pressupõe-se, orientado pela sua consciência da verdade e pelo seu juramento à Palavra de Deus quando de sua ordenação. Ele precisa dizer aquilo que, em sua consciência, vê como verdade. Se ele muda seu juízo por causa de amizades, ou se muda sua instrução para torná-la agradável, ou se deixa de dizer o que é verdadeiro para não causar escândalo, está fazendo como Davi: por amor natural a outrem, está violentando o vero.
Mas outros discípulos permaneceram com o Senhor e aceitaram Suas palavras. O Senhor ainda lhes deu oportunidade de considerarem sua aceitação, dizendo-lhes: "Quereis vós também retirar-vos?" O Senhor não os forçava que O seguissem nem que O ouvissem. Eles, porém, compreenderam de onde lhes viria a salvação, e responderam: "Para quem iremos, Senhor? Só tu tens a Palavra de vida eterna". Amém.