Constranger-se a si mesmo

Sermão pelo Rev.Cristóvão R.Nobre

Mas que vos parece? Um homem tinha dois filhos, e, dirigindo-se ao primeiro, disse: Filho, vai trabalhar hoje na minha vinha. Ele, porém, respondendo, disse: Não quero. Mas depois, arrependendo-se, foi. E, dirigindo-se ao segundo, falou-lhe de igual modo; e, respondendo ele, disse: Eu vou, senhor; e não foi.
Qual dos dois fez a vontade do pai?"

Mateus 21:28-32

Do ponto de vista interno-histórico, esta parábola trata dos dois tipos de pessoas na Igreja Judaica e sua posição diante dos ensinamentos do Senhor em Sua primeira vinda ao mundo. Naquela Igreja, tínhamos, de um lado, os fariseus e sacerdotes, indivíduos escrupulosos que faziam questão de se mostrar ao mundo como eram fiéis à sua religião; seguiam à risca as ordenanças de seu culto; mas apenas externamente. Os seus interiores eram tais, que o Senhor os comparou a sepulcros caiados: por fora limpos, mas por dentro imundície e morte. Sua ostentação externa da religião com um interior tomado por tantos males e cobiças fez com que fossem tidos como figuras mesmas da hipocrisia. Estes rejeitaram a João, que lhes tinha vindo "no caminho de justiça" e não creram nele. E tampouco aceitaram as palavras do próprio Deus.
De outro lado tínhamos os judeus simples, do povo, como os pescadores que se tornaram discípulos do Senhor, os publicanos e as meretrizes. Estes creram na pregação de João e assim se prepararam para receber o Senhor. Arrependeram-se de seus pecados e puderam ser salvos.
Tanto uns quanto os outros eram igualmente enfermos espirituais; careciam da cura Divina para as  suas almas. Os publicanos e as meretrizes não eram mais nem menos dignos do auxílio Divino do que os fariseus e os sacerdotes. No entanto, a atitude que tiveram frente à mensagem salvadora de Deus os fez diferentes; uma diferença tal qual a que há entre a vida e a morte.
No sentido interno espiritual, esta parábola nos ensina também a respeito de estados em nossa mente, segundo os quais podemos nos assemelhar ou aos fariseus ou aos publicanos e meretrizes arrependidos.
O "homem" que tinha os dois filhos é o Senhor quanto à Divina Verdade ou a Palavra, pois é Ele quem nos chama para desempenhar o uso que nos cabe em nossa existência. Os "dois filhos' são duas espécies de pessoa, uma que se reconhece pecadora e outra, hipócrita. Mas também são dois estados mentais que podemos ter diante de nossas responsabilidades espirituais. "Trabalhar na vinha" é cooperar com a própria regeneração. A "vinha' é a mente espiritual do homem, onde o Senhor opera a transformação do novo nascimento. Ora, a regeneração consiste basicamente em renunciar aos males e, depois, desempenhar os bens dos usos; e o homem deve fazer estas coisas como se por si mesmo, para que o Senhor opere por meio desse esforço; por isso é dito que o homem deve "trabalhar" na vinha.
Precisamos desenvolver nossa regeneração espiritual como se fosse por nós mesmos; devemos cultivar as verdades espirituais até que frutifiquem em bens de uso para o Senhor, Seu reino, nosso próximo e para nós mesmos. O chamado do Dono da vinha era para que os filhos fossem trabalhar "hoje", isto é, no presente estado espiritual, sem adiar o assunto para uma decisão futura, pois poderá não existir uma tal oportunidade.
A Divina Verdade está continuamente influindo em nosso entendimento, urgindo para que nos movamos e ponhamos em prática o que ela nos ensina. Ela é o Senhor a nos indicar que devemos ir em frente, já, prosseguindo no processo de nossa regeneração. "Filho, vai trabalhar hoje na Minha vinha", disse o Senhor. Notemos que o Senhor não compeliu nenhum dos filhos, não impôs sua autoridade paterna, não os forçou a esse trabalho nem os constrangeu à obediência. Os filhos eram livres para irem ou não.
"Dirigindo-se ao primeiro, disse: Filho, vai trabalhar hoje na Minha vinha. Ele, porém, respondendo, disse: Não quero. Mas depois, arrependendo-se, foi".
Este primeiro filho representa os publicanos e as meretrizes, pecadores que se arrependeram de sua rebeldia para com seu Deus, aceitaram o batismo de João para o arrependimento e receberam a bênção de salvação que lhes deu o Senhor. A princípio estiveram no erro, mas depois, ouvindo a Palavra de João, converteram os seus corações a Deus.
O cristão que está sendo regenerado muitas vezes se assemelha a eles. Quando o seu entendimento é esclarecido a respeito de seus caminhos, e ele vê que deve tomar uma decisão para o bem de sua regeneração, a vontade própria logo se levanta e põe obstáculos. O entendimento ilustrado e reformado pela Palavra vê que tal e tal prática deve se deixada porque é um mal e um pecado contra as leis Divinas. Mas a vontade se ergue do leito de seu comodismo e diz: "Não quero". Ou então tenta enganar o homem, dizendo: "É um ideal inatingível; é impossível". Ou o ilude com a promessa falsa: "Sim, amanhã farei isto. Outro dia, outra hora mudarei isto e isto em minha vida. Por enquanto não posso"
O espírito ou a mente do homem consiste em dois aspectos: um interno e um externo. A ordem da regeneração é que o homem emende e corrija o externo, para que o Senhor possa fazer o mesmo no interno. Ambas as partes devem ser regeneradas e se harmonizarem para que o homem seja verdadeiramente humano e tenha a salvação. O Senhor não pode mudar os interiores do homem se este não se esforça para, ao mesmo tempo, mudar suas atitudes e conduta externas.
Enquanto o Senhor faz essa obra em nosso espírito, muitas vezes nos deparamos com essa desavença entre externos e internos. Nossa vontade e nosso pensamento interior vêem o bem e para ele se inclinam; mas a vontade própria externa e seu pensamento vêem o mal e suas cobiças e para estes tendem. Daí é que, quando o Divino Vero influi em nosso entendimento e nos orienta acerca do caminho da regeneração, nossa vontade externa reage e não quer aceitar nem se subordinar ao interno. Existe então essa duplicidade de intenções ou interesses que muitas vezes nos perturba: nosso interior diz uma coisa e quer aquilo, mas o exterior diz outra e quer essa outra, completamente oposta. As atrações opostas parecem como se dividissem ou dilacerassem o ser do homem.
Os espíritos que já passaram do primeiro estado no mundo dos espíritos, e os anjos, não têm mais esse caráter dúplice. Com eles, a obra Divina está encerrada até o ponto onde podia ser realizada. Agora, o que eles querem e pensam nos internos, também fazem e falam nos externos. Há harmonia, não há mais conflito e por isso é dito que, neles, cessa o combate. Mas o homem, enquanto vive neste plano natural, precisa ter essa distinção de internos e externos, do contrário sua regeneração seria impossível. Por isso sua mente externa é distinta da interna. Em consequência, pela mente interna o homem pode ver e julgar o que se passa na mente externa e assim pode ser reformado. É por isso que o homem que está sendo regenerado freqüentemente se vê nesse dilema de intenções opostas dentro de si. De um lado ele tem uma vontade nova, santa, que visa o que é justo e reto em todas as coisas. É a vontade que ele recebeu pelas verdades que aplicou à vida. Por ela ele se volta para o céu. Mas de outro lado ele vê a sua  vontade própria, os males ainda enraizados ali; e muitas vezes  se espanta com suas reações, suas palavras e seus gestos irregenerados, porque tinha esquecido o caráter infernal de seu próprio. Por esta vontade do próprio o homem é somente cobiça e egoísmo, e por isso olha para si mesmo e para o inferno.
Quando esse homem que se regenera ouve o chamado terno do Senhor, o convite que lhe diz que é hora de continuar o trabalho espiritual da regeneração, de prosseguir mais uma etapa, o primeiro impulso da velha vontade é dizer: "Não", porque é uma vontade comodista, rebelde e difícil. O homem sozinho não poderia vencê-la. O homem meramente natural, o que não está sendo regenerado, quando sua vontade diz "não" ao que é bom e justo, ele consente e se queda, entregando-se ao que ela determina, donde não é possível nenhuma vida espiritual.
O homem que está sendo regenerado, porém, tem o entendimento ilustrado pelo Senhor. Este conhece bem o caráter de sua vontade. E este tem recebido do Senhor as primeiras coisas, os fundamentos de uma outra  vontade, uma vontade nova, que irá, no futuro, substituir a do seu próprio. Essa vontade nova, que o Senhor está implantando em seu entendimento, é chamada "consciência", e está acima da vontade própria natural. É uma vontade espiritual, interior. Assim, quando se dá o primeiro impulso da rebelião da vontade própria, a vontade nova, a consciência, deixa passar um pouco, deixa que o furor do próprio se esfrie em seu abrasamento, e depois, com brandura mas firmeza, diz: "Sim. Vai. Faz o que é conforme a Ordem Divina".
É então que se instala um combate entre os maus espíritos que habitam as más inclinações da velha vontade e os anjos que estão nas relíquias da nova vontade. Esse combate o homem sente como dor de consciência, ou um remorso por causa do seu primeiro impulso, por causa de sua má vontade. E os Escritos dizem que esse combate é tanto mais grave quanto mais o mal estiver enraizado na vontade. As atitudes que decidimos tomar em relação à nossa personalidade serão mais ou menos fáceis em proporção da profundidade com que o mau hábito estiver arraigado.
"Mas depois, arrependendo-se, foi". Se o homem decide fazer o que lhe dita a consciência e volta atrás de seu primeiro impulso irregenerado, ele supera a oposição da vontade própria e vence. Então inicia-se um novo estado de progresso espiritual. Ele trabalha hoje na vinha do Senhor, onde há muito o que fazer, porque o reino espiritual é o reino dos usos.
O homem deve lutar para vencer a oposição de sua própria vontade. É uma coisa que só ele pode fazer. É uma lei da Divina Providência que o homem não seja constrangido por ninguém a fazer o que quer que seja, porque aquilo que vem ao homem por compulsão de fora não fica com ele. Mas o que ele recebe livremente, isso ele quer e passa a fazer parte de sua natureza, de seu ser. É próprio do homem agir por seus impulsos ou instintos naturais. Uns mais outros menos, todos freqüentemente se deixam dominar pelos impulsos de sua vontade irregenerada sem se deterem para refletir a respeito do que é mais conveniente à vida verdadeiramente humana.
O ato de constranger a sua própria vontade não faz violência à liberdade do homem. Existe violência, sim, quando alguém quer constranger a vontade de outrem, adulto, a fazer alguma coisa. Nem o próprio Deus faz isto, pois que Ele respeita a liberdade e a racionalidade de cada indivíduo. Tampouco nós devemos fazê-lo. Quando, porém, o próprio indivíduo se constrange a fazer o que deve, ele o faz por sua livre decisão e vontade. É assim que lemos nas Doutrinas:
"Constranger-se a si mesmo não é contra a racionalidade, nem contra a liberdade. Já foi mostrado que há no homem um interno do pensamento e um externo do pensamento; que eles são distintos... e que, como são assim distintos, podem agir separadamente e agir conjuntamente; agem separadamente quando o homem, pelo externo de seu pensamento, fala e faz diferentemente do que pensa e quer interiormente; e agem conjuntamente quando ele fala e faz o que pensa e quer interiormente; esta conduta é comum nos sinceros, e a outra nos não-sinceros. Ora, pois que o interno e o externo da mente são assim distintos, o interno pode também combater contra o externo, e por este combate forçá-lo ao consentimento; o combate tem lugar quando o homem pensa que os males são pecados, e que em conseqüência quer renunciar eles; pois quando há renúncia a porta se abre, e desde que a porta é aberta as cobiças do mal que obsedavam o interno do pensamento são expulsas pelo Senhor e, em seu lugar, são implantadas as afeições do bem. Isto tem lugar no interno do pensamento. Mas como os prazeres das cobiças do mal que obsedam o externo do pensamento não podem ser expulsas ao mesmo tempo, eis porque há combate entre o interno e o externo do pensamento.
Ao segundo filho, o homem "falou-lhe de igual modo; e ele, respondendo, disse: Eu vou, senhor; e não foi". Esta segunda espécie de pessoa ou o segundo estado mental é de um caráter inteiramente oposto ao da primeira. Nesta, quando a verdade fala ao entendimento, o externo da mente parece aceitar. A vontade finge que se submete, mas apenas externamente.  No íntimo, ela reina e não abre mão de suas posições. A aceitação meramente externa da verdade resulta num bem hipócrita, conspurcado ou contaminado com o mal interior. O hipócrita assume atitudes apenas por conveniência de seus interesses, ou para ser agradável a outrem de quem depende para alcançar seus objetivos egoísticos. Interiormente, seu coração reage contra as verdades da Palavra. Como o Senhor falou aos fariseus: "Porque João veio a vós no caminho da justiça, e não o crestes... nem depois vos arrependestes para o crer".
Nesses não há o arrependimento por causa de sua conduta externa, uma vez que as maldades confirmadas anularam as relíquias em que se baseia a consciência. O mal que eles acalentam não deixa haver base de recepção do influxo, da voz Divina. Ainda que tenham visto a verdade da letra da Palavra, ainda que tenham entendido a pregação clara de João, não abriram seus corações. Deliberadamente resolveram permanecer em suas vidas más. No entanto, como lhes convém guardar as aparências externas, por diversas razões próprias e mundanas, aparentam a aceitação, e durante algum tempo chegam a enganar os outros com seu atos.
Sabemos que o verdadeiro ser do homem é o seu interno, ou o espírito. Não é, pois, a atitude externa que vale, mas a vontade interna. Não é a aparência dos fariseus nem a condição externa de ninguém, mas a intenção de sua alma. O externo é um mero revestimento que será retirado tão logo o homem entre no mundo dos espíritos. Mas o interno, esse fica, seja ele qual for, bem como a posição que adotou em relação à voz Divina. Por isso o Senhor disse: "Nem todo o que Me diz Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de Meu Pai que está nos céus". Um dos filhos disse: "Não quero, Mas depois, arrependendo-se, foi". E o Senhor continuou: "Qual dos dois fez a vontade do pai? Disseram-lhe eles: O primeiro".
É bem melhor obedecer aos preceitos Divinos, ainda que seja a custo de remorso, de luta e de dificuldade, de esforço para vencer e domar a própria vontade, do que aparentar um externo agradável, tentar conseguir o favor Divino com palavras vazias de louvores. O homem que está sendo regenerado também tem uma vontade má e infernal que o impele à negação de Deus, que rejeita a operação do Espírito em sua vida. Mas o Senhor deu a ele as verdades e os bens que formam a sua consciência. Por eles o homem pode se elevar e superar a si próprio. Pode se arrepender e ir dar prosseguimento à obra de regeneração que o Senhor efetua em sua vida.
"Qual deles fez a vontade do pai?" -o Senhor perguntou. Que atitude mental teremos diante das verdades da Palavra, os Mandamentos Divinos? Devemos trabalhar hoje no reino de Deus, em Sua vinha, em especial na vinha de nossa própria mente. Nessa vinha da mente, só nós podemos trabalhar, cooperando com o Senhor na obra de nossa própria salvação. Amém.
Lições: Mt. 21:23-32; D.P. l45-l46
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