Comida espiritual

“Ele, porém, lhes disse: Uma comida tenho para comer, que vós não conheceis. ... A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou, e realizar a sua obra”.

(João 4:32).

Sermão pelo Rev. Cristóvão R. Nobre

Que comida era essa, os discípulos não sabiam. Eles jamais tinham ouvido falar de outra comida, a não ser aquela que nutre o corpo. Mas o Senhor lhes esclareceu que havia e há uma outra comida, celeste e espiritual, mais importante que a comida natural que eles conheciam. Eles não a tinham conhecido ainda, mas, conforme o Senhor disse, consistia em fazer a vontade Deus e realizar a Sua obra.
Nós fomos criados com um aspecto espiritual ou interno, e outro aspecto material, ou externo. O espiritual é para viver eternamente, mas o material nos foi dado somente para um breve período, a vida passageira deste mundo.  O material deve servir de meio de preparação da vida espiritual. Sendo assim, devemos ter a prudência de prestar atenção a um e outro aspecto, ao espiritual tanto quanto o material, para não falar que, na realidade, se tivéssemos realmente prudência, deveríamos prestar atenção muito mais ao espiritual do que ao material.
E porque fomos criados assim, o Senhor nos deu o sustento para os dois aspectos, as duas naturezas em nós. Ele nos deu o alimento material e nos deu também o espiritual. Deu-nos o apetite e a fome pelo alimento material e também o apetite e a fome pelo espiritual. E nos deu a sensação de prazer e saciedade quando recebemos um e outro alimentos, para que, pela nossa conduta e neste mundo, fôssemos também preparados, em nosso espírito, para a vida na eternidade.
Todavia, como o ser humano recebeu também o livre arbítrio nas matérias espirituais, é preciso que essa busca e recepção do alimento do espírito se faça como se fosse pelo próprio homem, para que sinta e perceba a vida espiritual como sua. E é por causa desse livre arbítrio, ou antes, do seu abuso, que a pessoa deixa de lado aquilo que devia ser o essencial, a vida do espírito. Sem dar ouvidos à instrução Divina, torna-se insensato, a ponto de esquecer das necessidades vitais do espírito, e cuidar somente das  necessidades materiais. 
Neste sentido, o homem, como os discípulos, desconhece outra comida senão a que ele vê com os olhos, toca com as mãos, saboreia e ingere com seu corpo.
E quanto mais ignora ou desdenha o alimento espiritual, mais sua alma carece, se debilita e se expõe às enfermidades espirituais, que são o pecado, o mal, o ato nocivo praticado deliberadamente contra o próximo e, assim, contra Deus.
A Palavra de Deus menciona muitas vezes uma espécie de desolação na terra (ver AC 5576), por causa da fome, representando o estado da alma quando olvida os deveres e usos espirituais. Quando há na vida a falta dos elementos espirituais, isto é, as verdades da fé e os bens do amor a Deus e para com o próximo, o que resta é o vazio e a desolação, como a plantação devastada pelos gafanhotos ou outras pragas. Ou como na seca, que esturrica as últimas ervas verdes, racha o solo e mata de fome animais e homens.
Por essa forma de desolação se pode ter uma idéia do que deve ser a desolação da alma, o que resta quando não há mais na pessoa a esperança de salvação, o contentamento com as bênçãos Divinas, mas somente os males representados pelo individualismo, a amargura, o azedume, a mesquinhez e as cobiças de toda sorte. A falta de alimento da alma às vezes se mostra, na mente natural, por seus opostos. Por exemplo, se a alma carece de confiança no Senhor, sua mente natural refletirá essa carência em forma de ansiedade e preocupação doentia com as coisas futuras.
Sabemos que, assim como o corpo natural pode morrer por fome ou sede, a vida espiritual também definha e acaba perecendo quando não é nutrida adequadamente e a tempo. A pessoa que não tem um mínimo de desejo em procurar conhecer o que é a verdade, faz com que sua mente intelectual entorpeça e assim ela se torna cada vez mais estúpida. E se não tem desejo em fazer senão os seus desejos e as suas ambições, faz com que sua vontade se empanturre de egoísmo, cada vez mais letárgica e por fim sem a disposição da vida celeste, imprestável para qualquer uso realmente bom. 
Aos discípulos curiosos ou admirados quanto a essa espécie diferente de comida, o Senhor respondeu: “A minha comida é fazer a vontade dAquele que me enviou, e realizar a Sua obra”. Assim aprendemos que as coisas que alimentam o espírito são o conhecimento da verdade e a prática dessa verdade na vida, o que se chama uso ou bem. E, conforme vimos pela passagem de João, essa comida era tão importante, que Jesus nem mesmo cuidou da comida que os discípulos Lhe trouxeram, dizendo: “Rabi, come”. O Senhor Se satisfazia em levar a salvação à mulher samaritana e, em breve, aos da cidade que viriam ter com Ele no poço.
A este respeito, lemos nas Doutrinas Celestes (AC 5293) que, na Palavra,  “no sentido interno, o “alimento” significa propriamente as coisas que nutrem a alma do homem, isto é, que o nutrirão após a morte, pois então ele vive como uma alma ou espírito, e não mais necessita de do alimento material, mas do espiritual, que consiste em fazer tudo o que é de uso e tudo o que conduz ao uso. O que conduz ao uso é saber o que é bom e verdadeiro, e o que é de uso é querer e fazer o que é bom e verdadeiro. Estas são as coisas que nutrem os anjos, e por isso são chamadas comida espiritual e celeste. A mente do homem, na qual estão sua vontade e seu entendimento interiores, ou suas intenções e propósitos, não é nutrida por nenhum outro alimento, mesmo enquanto ele vive no corpo. O alimento material não penetra na mente, mas somente no que é do corpo. Esse alimento sustenta o corpo somente para a finalidade de que a mente possa usufruir de seu nutrimento, enquanto o corpo usufrui do seu, isto é, para que haja uma mente sã num corpo são”.
A comida que alimenta o nosso espírito é fazer a vontade de Deus e não a nossa.  Não temos dificuldade em reconhecer essa forma de comida; é estranha a nós, não a conhecemos, como Jesus disse, porque não temos familiaridade com fazer a vontade de Deus. Porquanto, para fazer a vontade de Deus, temos de contrariar a nossa.
“Comer”, espiritualmente entendido, é fazer o bem do uso, porque a comida real que edifica nossa vontade é o bem, a boa obra feita em Deus e por Deus por nosso intermédio. O contentamento que se sente quando se pode ter o privilégio de ser instrumento de Deus é a saciedade da alma. Assim, o que forma, nutre e edifica nosso ser é o bem que vem de Deus.
E se a comida da alma é a prática do amor ao próximo, a bebida é a instrução nas verdades que se conjuntam com o bem. Por isso se diz “fome de vingança” ou “ sede de saber”.
Então, comer e beber, espiritualmente entendidos, é fazer o bem e ser instruído. E é por isso que a Igreja onde a Palavra de Deus é pregada segundo uma doutrina sã é vista como um cenáculo onde o Senhor serve uma ceia celestial.  Os fiéis que atendem ao convite do Senhor recebem o vinho puro da verdadeira instrução e compartilham do pão ázimo do bem sem fermento, isto é, o bem feito por altruísmo, sem a hipocrisia do interesse, do mérito ou do desejo de recompensa.
Se a maioria das pessoas não se interessa por essa provisão feita pela Igreja é porque, infelizmente, ainda não compreendeu a importância da vida espiritual nem quer ser instruída. A tendência normal da criatura humana é ter a vontade saciada por seus próprios amores e o intelecto embriago pela própria fantasia, a que chamam inteligência.
Os que rejeitam o alimento celeste conscientemente não poderão permanecer, na outra vida, nas sociedades celestiais, pois esse é o único alimento servido ali. Seus espíritos se acostumaram a uma espécie de alimento imundo que seria fétido para os anjos.
Nesta vida, precisamos buscar o alimento do espírito com diligência, da mesma maneira que buscamos o alimento do corpo. Aliás, devemos dedicar ao alimento espiritual mais cuidado e diligência do que ao material, segundo o que o Senhor disse:  “Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela comida que permanece para a vida eterna, a qual o Filho do homem vos dará; porque a este o Pai, Deus, o selou” (João 6:27).
Comer, espiritualmente, é fazer o bem. Significa conhecer, perceber o bem e se apropriar dele. Assim como se dá com o alimento natural: seleciona o que quer, saboreia, ingere e seu corpo absorve o alimento. Nosso espírito identifica o uso que deve prestar e de que maneira; ao prestar esse uso com dedicação e diligência, sente o prazer do uso; e esse uso praticado passa a constituir sua experiência, seu caráter, sua personalidade e espírito. Ver AE 617.
Devemos, portanto, examinar com o devido cuidado o alimento espiritual que nos é constantemente fornecido de fora e de dentro, isto é, considerar a qualidade das leituras, diversões, conversas e outras informações que entram em nosso entendimento. Muitas dessas coisas são tão nocivas para o nosso entendimento como a água contaminada para o corpo. No entanto, muitas vezes aceitamos passivamente, e até com prazer, imundícies espirituais como se fossem coisas sadias.
Precisamos, também, examinar os sentimentos que entram por nossa vontade, prestando atenção especial às afeições do mal predominantes,  à qualidade dos desejos mais freqüentes, tanto os que são insinuados de fora quanto os que nos vêm da própria memória.
Em suma, temos de aprender a dar atenção ao nosso alimento espiritual e buscá-lo com a devida prudência, pois somos compostos de corpo e espírito, um interno e um externo. Quem se aplica somente ao alimento do corpo,  esquecendo-se do alimento do espírito, está se condenando a viver como animais na outra vida. Assim lemos nos Escritos:
“Se o homem não desfruta do nutrimento (espiritual) juntamente com o nutrimento do corpo, ele não é um homem, mas uma besta; e isto porque aqueles que acham que todo o prazer está nas comilanças e nos banquetes, e diariamente se entregam ao paladar, são estultos nas coisas espirituais... Depois da morte, vivem uma vida que é mais animalesca que humana, pois em vez de inteligência e sabedoria têm insanidade e sandice”. 
Esses indivíduos, já neste mundo, tinham um espírito doente, porque não tiveram apetite pelas coisas celestes e não as receberam como alimento. E a falta do nutrimento celeste os expôs às enfermidades espirituais, que são o mal praticado com prazer. E este mal, por sua vez, tira ainda mais o apetite pelo alimento celeste, num círculo vicioso como o de certas doenças que tiram o apetite da pessoa e a enfraquecem ainda mais.
O que satisfaz o homem natural, sua mente externa, é o que agrada à sua carne e aos prazeres do corpo, como a glutonaria, a luxúria, a preguiça, a ira, e assim por diante, que se tornam vícios e entorpecem o espírito. Enquanto a mente natural está dominada por esses prazeres, ela está tão espiritualmente enferma, que não tem desejo nenhum pelo alimento espiritual.
Esta é a razão, por que as pessoas se afastam da leitura da Palavra ou de um livro doutrinal, como também da instrução da Igreja e do culto deliberadamente, pois sua mente não tem apetite algum por tais assuntos, satisfeita que está com fantasias e futilidades.   Nessa situação, se for forçada à prática dos deveres religiosos, sentir-se-á como alguém que, tendo feito uma farta refeição, é convidado a sentar-se e participar de um outro, pois, estando saciada, não quer nem mesmo pensar em outra comida.
Como mudar isso, então? Como podemos levar uma pessoa a adquirir apetite pelas coisas espirituais, se está satisfeita com os prazeres naturais? A resposta é: não o podemos. Em primeiro lugar, porque não podemos persuadir pessoa alguma a respeito das matérias de fé. Tampouco podemos induzir nas pessoas as nossas próprias afeições, pois isto seria violar a sua liberdade espiritual, e, nas matérias espirituais, a liberdade do ser humano é absoluta. Se fosse possível inspirar em alguém o desejo pelas coisas espirituais, o Senhor já teria feito isso, antes de nós. Cabe à própria pessoa, por sua própria consciência, dar lugar a alguma mudança efetiva.
Lemos nos Arcanos Celestes (5147) que “o bem flui do Senhor através dos íntimos do homem e daí, por graus, como se por degraus de uma escada, para os exteriores, uma vez que o íntimo está num estado relativamente perfeito e por isso pode receber o bem imediatamente do Senhor. Mas nas coisas mais baixas não é assim... pois são relativamente mais imperfeitas”. Isto quer dizer que o bem nos vem do Senhor desde os íntimos, mas, para chegar ao nosso natural, passa pelo grau intermediário, onde está a nossa consciência. Sem a consciência no meio, para receber e dar prosseguimento ao bem, não podemos receber nenhum sentimento realmente bom, de Deus. É, pois, através de nossa consciência que as coisas podem ser mudadas e o apetite pelas coisas celestes pode ser recebido.
Em segundo lugar, há uma lei a ser observada: Ninguém pode servir a dois senhores. Neste caso, não se pode ter apetite pelo mal e pelo bem, ao mesmo tempo. Por conseguinte, para solução desse dilema, há um processo a seguir: primeiro, deixa-se de fazer o mal; depois, faz-se o bem.  Em outras palavras: antes de qualquer coisa, é preciso não alimentar mais o espírito com o alimento infernal que o envenena e mata. É preciso parar de ingerir o alimento estragado, antes de se tratar da doença que o alimento causa.  Impedir a ingestão de outros bocados do pão do inferno, ou seja, parar com atitudes de egoísmo, com desejos lascivos, com explosões de ira, com sentimentos de rancor. É preciso aprender a ter a firmeza de dizer “não, obrigado” ao alimento maléfico que nos é servido pelos maus espíritos.
Então, e somente então, depois de passado algum tempo dessa abstinência do mal, é que nossa mente se abrirá para a vida do céu: nosso entendimento terá sede de instrução pela verdade e nosso coração terá desejo de fazer o bem genuíno.
Abster-se de alimentar a mente com o mal e a falsidade, este é o jejum verdadeiro que o Senhor requer de nós, como lemos em Isaías 58:6,7:  “Porventura não é este o jejum que escolhi, que soltes as ligaduras da impiedade, que desfaças as ataduras do jugo e que deixes livres os oprimidos, e despedaces todo o jugo?   Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres abandonados; e, quando vires o nu, o cubras, e não te escondas da tua carne?”
Irmãos, se em algum momento nossa consciência nos mostrar que estamos saciando nosso proprium com alimentos infernais, peçamos a Deus a determinação e o poder para interrompermos essa refeição maligna e sairmos dessa mesa preparada pelos demônios. Tenha a hombridade e a sinceridade de reconhecer nossa fraqueza, dizendo: “Eu, de fato, quero esse mal e tendo para isso”. Mas, em seguida, tenhamos a coragem e a bravura de acrescentar: “Mas, como é um pecado contra Deus, não o farei”. Não admitamos mais aquele mal em nosso organismo espiritual, ainda que nos seja apetitoso. Tenhamos a firme decisão de dizer: “Vou praticar esse jejum. Vou contrariar minha vontade e recusar o mal, para não pecar contra meu Deus”.
A partir desse instante, e depois, pela persistência desse gesto, seremos convidados a tomar assento, com prazer e apetite crescentes, na mesa celeste que o Senhor nos prepara. Amém.