O mal da ansiedade

Primeiro de uma série de dois sermões pelo Rev.Cristóvão R.Nobre

"Não vos inquieteis pelo dia de amanhã,
porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo..."

(Mt.6:34)
A ansiedade é um mal tanto para o corpo quanto para o espírito. A preocupação exagerada com o amanhã e as coisas futuras é o mal mais comum, que aflige a todos os indivíduos e talvez o que mais perturba o espírito, roubando-lhe a paz. Foi por isso que o Senhor dedicou parte de Seu Sermão da Montanha a tratar deste assunto, dizendo, em resumo: "Não andeis... inquietos, dizendo: que comeremos, ou que beberemos, ou que com que nos vestiremos? De certo vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas estas coisas..."
Aqui o Senhor menciona coisas que visam a atender as necessidades mais elementares da vida, ou seja, o alimento e a roupa, mas estas evidentemente estão representando todas as outras necessidades da existência humana, pois o ser humano se inquieta por uma imensidade de coisas, em vários níveis de necessidade ou de carência. Primeiro ele tem de atender as necessidades básicas para sua sobrevivência física, e por isso busca o alimento, a roupa e a habitação. Depois vêm muitas outras necessidades como afeto, reconhecimento, amizade, condição social, honra, fama - não necessariamente nessa ordem - e por isso ele quer a companhia de um cônjuge, de parentes e amigos, quer as riquezas, o status social, uma posição mais alta no organograma da empresa, um salário maior, o reconhecimento dos outros pelos seus talentos ou pelos seus valores morais e cívicos etc. E mesmo quando consegue tais coisas, ainda assim não se satisfaz, pois ambiciona outras além destas, e se inquieta quanto a conservá-las e aumentá-las sempre, como também fica ansioso pelo medo de perdê-las. Mesmo um crente em Deus tem inquietações quanto à sua vida futura no outro plano, como igualmente as tem o incrédulo ou ateu, quando pensa que os anos passam e que o aparente fim de sua existência cada vez mais se aproxima.
É próprio da natureza humana desejar o que é bom e útil, pois este desejo é a mola que impulsiona o desenvolvimento e o progresso do indivíduo e da humanidade. Mas a queda da raça humana fez que se inserisse nesse desejo uma ambição insaciável, pela qual o homem, quando se entrega a ela, nunca está contente quer sempre mais e mais; e como não é possível atender a todas as suas ambições, é dominado pela ansiedade e até pela angústia, a "ansiosa solicitude pela vida". É uma grande virtude saber estar contente com o que se tem. Quem possui essa virtude? É possível alcançá-la? É. Ainda que, talvez, a criatura humana só a adquira realmente nos céus, é nesta vida que se lança as bases para adquiri-la.
O mal da ansiedade pelo futuro é que ela traduz nossa desconfiança no Senhor. Ficamos ansiosos porque, na realidade, não aprendemos ainda a confiar no providencial cuidado que o Senhor tem para com Seus filhos. Ele procurou nos mostrar a inutilidade que é perdermos o sossego pelo dia de amanhã e pelas coisas que fogem ao nosso controle: "E qual de vós poderá, com todos os seus cuidados, acrescentar um côvado à sua estatura?" (Mt.6:27).  Ele quis nos ensinar que todas as coisas marcham e operam dentro da boa ordem da Divina Providência, que tem em vista sempre a melhor sorte possível para cada um de nós. Ele citou o exemplo das aves do céu, que Ele a todas alimenta, e das ervas do campo, os lírios, que Ele reveste de beleza, e nos disse: "Não tendes vós muito mais valor do que elas?" (Mt.6:26).
Quando lemos no Evangelho estas palavras de Jesus, acreditamos nelas porque estão plenamente de acordo com a idéia que fazemos d`Ele: um Deus amoroso, o Pai verdadeiro que cerca de cuidado toda criatura e jamais abandona nenhum de Seus filhos. E mais adiante, no mesmo Sermão, Ele disse: "Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas coisas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará bens aos que lhos pedirem?" (Mt.7:11). Por isso cremos que o Senhor zela por nós. Mas a dificuldade vem do fato de que essa crença não é, na realidade, a fé do coração; é apenas um fato que nosso entendimento confirma. Compreendemos e aceitamos como verdade literal e genuína da Palavra que o Senhor provê todas e cada uma das coisas, até as menores delas. Mas, em seguida, quando saímos dessa esfera de fé intelectual e nos envolvemos novamente nas questões materiais do viver diário, esquecemos disso tudo que tínhamos ouvido e sabido e... eis aí novamente a ansiedade.
Essa dificuldade que temos se explica, em parte, pelo de fato de que, enquanto vivemos neste mundo, não nos é dado ver a operação manifesta da Divina Providência, até por causa de nossa liberdade e para o bem de nossa regeneração. Se olharmos em volta, examinando com o entendimento natural e os sentidos do corpo, não veremos nenhuma prova material de que o Senhor está operando e governando. Parece que tudo seria mais fácil se víssemos a mão Divina agindo em algumas circunstâncias, mas não vemos. E é por isso que o homem natural duvida da existência de Deus ou de Seu governo, quando vê desastres, tragédias e acidentes, ou mesmo quando infortúnios menores e mesquinhos lhe perturbam a marcha das coisas materiais.
Quando a Igreja nos ensina que Deus governa o universo, e que é Ele que mantém em ordem as estrelas e as órbitas dos planetas, nós, que temos uma religião, aceitamos sem dificuldade, pois estas são coisas mais gerais, muito grandes e, por assim, dizer, estão mais distantes de nossa realidade. Mesmo quando ouvimos que Ele é que mantém viva e em atividade cada célula de nosso corpo e cada uma das menores criaturas do reino vegetal e animal. Mas a fé nessas verdades implica aceitar a mesma operação e o mesmo governo nas coisas maiores e menores de nossa vida, em todas e cada uma delas, nos grandes mas também nos pequenos acontecimentos, a cada segundo do nosso dia a dia. Implica aceitar que todas essas coisas acontecem, aconteceram e acontecerão somente porque ou o Senhor quer, se forem boas, ou porque Ele as tem de permitir, se forem más para dali tirar um bem que as suplante. Pois a verdade é que cada coisa tem uma importância e um uso que muitas vezes não nos é claro, pois só serão desvendadas na eternidade, como Ele disse em Jeremias 30:24: "No fim dos dias entendereis isto".
Reflitamos um pouco sobre o que está envolvido nessa crença. Se olhamos pela janela agora e vemos um pardal passar voando, devemos crer que isto foi uma ação da Divina Providência. O percurso do vôo, a altura, a direção, o sentido, tudo foi determinado pela sabedoria Divina. E isto deve ter causado uma impressão qualquer em nosso sentido de visão, impressão que, por mais insignificante que pareça, ficará registrada na memória de nosso espírito e terá um uso determinado na vida eterna, difícil de sabermos qual. Mas uma coisa aparentemente tão banal, teve necessariamente um uso, senão não teria acontecido. Pois existe uma razão celeste em todas as coisas do mundo natural. Este plano em que vivemos é apenas o plano dos efeitos produzidos pelo influxo espiritual. Os propósitos e as causas ou razões das coisas estão, não aqui, mas nos reinos celeste e espiritual. Há um sentido Divino, um efeito da Divina Providência em cada uma das coisas e em todas as circunstâncias de nossa vida, quer acreditemos, quer não. Nada, absolutamente nada, pode jamais escapar do controle desse governo soberano do Pai eterno, desde as menores coisas materiais até as menores espirituais, que são os detalhes mais ínfimos e mais obscuros de nosso pensamento. Tudo só existe pela Vida Divina, só é pelo Divino Ser e só se move pela Divina operação.
Se cremos nisso, nós, homens "de pouca fé", precisamos então educar nosso entendimento e fazer depois que essa fé desça ao nosso coração. Temos de nos habituar a ver e a reconhecer a ação da Divina Providência em todas as coisas de nossa existência e humildemente nos conformar com o governo Divino sobre nossas insignificantes pessoas. E o meio pelo qual essa fé desce ao coração é lutar para afastar do espírito a ansiedade, a preocupação, a solicitude, a inquietação, a intranqüilidade, o desassossego, ou qualquer que seja o nome que dermos a isso, pelas coisas futuras. Tudo isso figura falta de fé, falta de confiança real em Deus. Quando, por isso, notarmos que estamos ficando ansiosos ou angustiados por qualquer motivo, até os mais nobres - como, por exemplo, o bem espiritual nosso e de nosso semelhante ou a prosperidade da Igreja - lembremo-nos de ter uma atitude racional e crer, de coração, que todas as coisas só acontecem sob o governo da misericórdia Divina. Das maiores alegrias até às piores tragédias, nada ocorre sem que o Senhor esteja dali tirando um bem para nós na eternidade.
A aceitação dessa verdade não quer dizer que tenhamos de ser fatalistas. Pois a fatalidade é uma aceitação passiva a tudo como sendo a vontade de Deus sem que possamos fazer coisa alguma para mudar. O crente fatalista pensa que Deus já havia determinado todas as coisas, e por isso nada mais resta ao homem fazer. Não é isso. Assim o homem seria objeto inanimado, ao passo que ele foi criado livre, dotado de uma vontade e um entendimento, faculdades que o próprio Criador leva em conta e respeita. Por isso é que o homem pode fazer escolhas e, de certa forma, determinar seu próprio futuro. O Senhor, como é Onisciente, sabe o que o homem escolherá e provê as coisas dentro do campo das escolhas que o homem vier a fazer. Por isso também foi que Ele nos dotou de prudência, que é a resposta com que o homem coopera com a Divina Providência.
Aceitar o pleno governo Divino até nas menores coisas de nossa vida é aceitar, portanto, que dependemos d`Ele e que temos de recorrer sempre a Ele para recebermos a vida verdadeira. Mas, ao mesmo tempo, já que Ele nos deu vontade, racionalidade e liberdade, é também aceitar que devemos, como se fosse por nosso próprio esforço, determinar nosso futuro segundo nos parece melhor, mais conveniente. E determinamos nosso futuro quando fazemos escolhas aqui, no presente. Assim, o futuro está, por assim dizer, latente, existindo em potencial no nosso presente.
Contanto que ajamos com sinceridade e façamos o possível para, como por nós mesmos, fazer o que é justo e correto no provimento das diversas necessidades (físicas e espirituais) de nossa vida, podemos ficar tranqüilos que o Senhor fará o que Lhe compete. Podemos ter a confiança de planejar o futuro, a disposição dos meios e caminhos de atingi-lo, mas submetendo nossos propósitos ao propósito Divino, pois Ele, só, é quem realmente sabe o que é melhor para nós. Se os os projetos que fizermos resultarem em sucesso, ótimo, daremos graças a Ele; se não, não há motivo de lamentação, pois talvez aquilo que pensamos que fosse um bem não era realmente bom, ou talvez não fosse o momento adequado.
Se nossa crença e nossa atuação forem sinceras, não haverá motivo para ansiedade. Nossa fé aumentará, será uma fé viva, do coração. E a Divina Providência poderá facilmente nos guiar, em nossa miopia espiritual, pelos labirintos desta vida até o alvo que nós mesmos escolhemos para nós, mas que Ele nos preparou. Amém.