Amar os Outros fora de Si  -  O Primeiro essencial do Amor

Um sermão pelo Rev. Cristóvão R. Nobre

"E, se amardes aos que vos amam, que recompensa tereis? também os pecadores amam aos que os amam."
Lucas 6:l2

   Fazer bem a outrem por causa do bem, e não por algum interesse próprio de que o faz. Eis o primeiro essencial do verdadeiro amor.
Se é dito "amar aos outros fora de si" é porque, evidentemente, pode-se também amar "por causa de si", ou em relação a si. Esta distinção é muito importante, pois é a que caracteriza a diferença entre o amor verdadeiro e o amor falso; entre o bem genuíno e o bem meritório; entre a caridade verdadeira e a aparente, enfim, entre o amor celeste e o amor infernal.
O motivo do bem que se faz deve estar em outrem e nunca em nós mesmos. Fazemo-lo não para nosso benefício mas para o do próximo, sua edificação espiritual, o seu bem eterno, independente do nosso interesse no caso. A prática do bem precisa estar acima de nossos motivos e disposições. E como a primeira atitude da prática do bem é eviar o mal, por isso, nos pontos que falam dos universais da fé, lê-se: "os males devem ser evitados porque são do diabo e vêm do diabo", e "os bens devem ser feitos  porque são de Deus e vêm de Deus". O motivo de fazer o bem ou deixar de fazer o mal, portanto, deve estar no bem em si e no mal em si, e nunca nos motivos que temos. Não o fazemos tão pouco por causa da pessoa do próximo em si mesma, porém por causa do bem e da verdade que nele estão, pois assim estamos fazendo ou deixando de fazer por motivos eternos, por causa do Senhor. Uma tal orientação deve discriminar nossa atitude para com os outros, fazendo com que exerçamos nossos atos tendo em vista sempre o bem e a verdade no próximo, isto é, a sua regeneração.
A essência do amor é o altruísmo. Essa palavra, em si mesma, inspira  uma elevação e uma dignidade que se situam muito além de quaisquer razões ou ambições pessoais; ela traz um sentimento de dever para com outrem, gera uma harmonia e uma concórdia, pois volta a mente par o bem comum, fora, portanto, do indivíduo; o altruísmo engrandece o espírito e dá vida ao amor. Todavia a sua oposta, o egoísmo, por si só diminui o sujeito a que é atribuída, fechando em obscuridade e mesquinharia, por voltá-lo para si e para baixo; o egoísmo corroi a alma, juntamente com as afeições que naturalmente a acompanham, como o orgulho, a avareza, a omissão, a vaidade e tantas outras...
Já em VRC 406 tivemos a oportunidade de ler: "O homem nasceu não para si, mas para os outros, isto é, a fim de que viva não para si só, mas para os outros; de outro modo nenhuma sociedade teria consistência e não haveria bem algum".
Mas "amar fora de Si" é característica do amor que existe unicamente com o Senhor, no Divino Amor. Pode ser reconhecida pelo amor de Deus para com todo o gênero humano, que está fora dEle. É uma qualidade tão plena no Senhor que esse Amor "vai e se estende não somente sobre os bons e as coisas boas, mas também sobre os maus e as coisa más; por consequência, não somente sobre os que estão no céu e sobre as coisas que o céu encerra, mas também sobre os que estão no inferno e sobre o que o inferno encerra; assim, não somente sobre miguel e Gabriel, mas também sobre o diabo e Satanás". É esta a maior manifestação de "amar fora de Si", pois o que pode estar mais fora do Senhor do que os infernos? Não que o Senhor Se distancie deles, mas porque "o mal se afasta por si mesmo; donde acontece que o mal é absolutamente separado de Deus e precipitado no inferno, entre o qual e o céu, onde está Deus, esiste um abismo imenso" (VRC 56). Não é isso o supremo altruísmo do Amor verdadeiro? é de acordo com Suas próprias palavras: "Amai pois a vossos inimigos, e fazei bem aos que vos aborrecem... e sereis filhos do Altíssimo; porque Ele é benigno até para com os ingratos e maus"  (Lucas 6:27,35).
A mera existência ou subsistência do malfeitor e do diabo é a prova maior deque o Divino Amor é fora de Si, porque se esse amor perdesse tal atributo,isto é, se deixasse de ser "fora de Si', ainda que fosse por um instante, os maus deixariam instantaneamente de existir; e não somente os maus, mas todos os seres criados, como também o próprio Amor Divino, pois tirar-lhe esse atributo sria tirar-lhe a essência e a existência. Mas o amor no Senhor não pode ser senão "fora de Si"; nunca se  concentra em Si, mas sempre no ser criado. E, em verdade, é por causa disso que o Senhor "não pode mesmo Se afastar do homem, nem encará-lo com uma face sereva..." pois isto seria "contra a Essência de Deus, e quem é contra a sua essência é contra si mesmo".
Para o mundo é algo novo e ao mesmo tempo não é, a afirmação de que o verdadeiro amor tenha uma tal essência. É novo porque no mundo cristão de hoje pensa-se que o amor de Deus é bom para os justos, mas que se retira, pune e pesa a mão sobre os injustos. e uma tal crença surgiu na Igreja porque ela se aprisionou no sentido da letra da Palavra, onde se diz que Deus vinga e se encoleriza. E se a Igreja se prendeu a esse sentido é porque desceu a um estado meramente natural, afastando-se do espiritual, e passou a ver as coisas espirituais mediante uma luz natural. E daí vem o conceito que o mundo tem de amor, resultando algo muito ligado ao natural e ao corporal.
O amor do homem natural visa o seu bem em primeiro lugar, e só age em favor de outrem se isto resultar em benefício ou alívio para si mesmo; ama-se aqueles que satisfazem tal amor e contribui para os interesse dele, mas torna-se na mesma medida em ódio e eem vingança para com aqueles que não propiciam tal satisfação, ou que não lhe prestem serviços e rendam-lhe homenagens. Portanto, dizer que o bem deve ser exercido fora do interesse próprio de quem o exercita soa como algo novo e de difícil execução . Mas não é, na verdade, um ensinamento novo, pois a Palavra sempre ensinou que o bem não deve ter em vista a própria recompensa; como lemos em Lucas: "E, se amardes aos que vos amam, que recompensa tereis? também os pecadores amam aos que os amam".
Há uma esfera do Divino Amor que se expande por todo o universo, afetando cada um segundo o seu estado. Nessa esfera estão os três essenciais do amor, os quais podem ser reconhecidos nos seres que por ela são afetados. Vem  daí o fato de todo ser criado ter uma aparência de amar os outros fora de si, de querer se conjuntar aos outros e de querer fazer bem aos que lhe são conjuntos. Em Verdadeira Religião Cristã é dito  que sobretudo os pais, e mais especificamente as mães, são afetados por essa esfera, pois "que amam ternamente seus filhos, que estão fora deles"; é um essencial do amor que pode ser reconhecido tanto nos bons quantos nos maus, homens, bestas e pássaros (VRC...44). Esse modo de amar natural é, porém, associado e subordinado ao amor a si em primeiro lugar. "Amar os outros fora de Si", no homem natural, é, ainda por causa de si, No caso, por exemplo, da mãe que ama o filho, que está fora dela, existe toda a aparência do fora de si no amor, mas, realmente, é por causa de si. Ela o ama porque é seu filho. Os pais naturais amam os filhos que estão fora deles, mas os amam porque vêm a si mesmos refletidos nos filhos. Vêem a si sob vários aspectos, seja na aparência física, seja na personalidade, seja nalguma inclinação ou talento especial, ou ainda porque vêem nos filhos a realização de algum sonho ou ambição pessoal. Daí se vê  claramente que, pelo natural, o homem ama fora de si apenas na aparência, pois sempre  estará amando a si naquele que está fora dele. E assim sempre será, até que enfim receba, pela regeneração, uma natureza nova, um amor novo, pelo qual amará o próximo fora de si, porque o amará por causa do Senhor.
O aparente amor fora de si, no homem natural, exige uma reciprocidade: só se ama àquele que em troca ama, e faz-se o bem somente quando houver nisso algum interesse por recompensa ou mérito, ou mesmo alívio de consciência. Tal espécie de amor é, em si, um mal, e por isso o Senhor disse: "também os pecadores amam os que os amam". Quando esse amor interesseiro não vê mais vantagem própria, ou quando é confrontado, então se levanta e se mostra naquilo que realmente é, ódio mortal para com o próximo, por não ter recebido a sua paga, seja esta em forma de serviços, submissão, louvor ou reconhecimento.
Não se pode estar no amor de si reinante e, ao mesmo tempo, no amor fora de si; não se pode amar a si mesmo em primeiro lugar e também ao próximo. Quando o amor a si domina, todo os outros amores são falsos, e são, de fato, ódio. O caso é que o amor dominante torna-se o senhor dos demais e empresta a eles a sua própria qualidade; por fora, pode parecer amor verdadeiro a outrem, mas interiormente é amor a si e ódio par com o Senhor e o próximo. Nos AC (760) lemos: "O homem que ama a si está muito distante do amor e  da caridade celeste". Está diametralmente oposto à ordem da criação, invertido, e assim, ao invés de prestar usos para o bem alheio, esforça-se para tirar de todo relacionamento humano o melhor proveito possível para si, em detrimento dos outros, a ninguém quer bem exceto àquele que é parte de si mesmo, com quem se
identifica e se satisfaz; (veja AC 22l9). Toda caridade que então  se faz está contaminada por essa qualidade do amor e suas intenções egoísticas. Lemos também nos AC 3956 que "as obras feitas por causa de recompensa não são boas em si mesmas, porque não nascem de fonte genuína, isto é, da caridade para com o próximo. A caridade para com o próximo tem dentro de si o desejo de que haja o bem com o próximo como há conosco; e nos anjos, que vá bem com o próximo mais do que com eles. Tal é a afeição da caridade".
Quando nós aprendemos as verdades espirituais e por elas combatemos os maus amores que há em nós, então começa a existir, pela primeira vez, um outro tipo de amor, par substituir àqueles: é o amor espiritual, a caridade, e nessa caridade, uma imagem desse essencial, que é amar os outros acima de si, fora de si. Somente então o homem entra num amor bom, um amor verdadeiro, pois procede do Senhor pela regeneração. É um amor orientado e qualificado pela verdade, e, se provado pelas diversas dificuldades da vida, sempre será amor, jamais se mudando em ódio. Não se volta para seus interesses em primeiro lugar, mas para os interesses do reino do Senhor e do próximo; o homem deixa de visar a si mesmo para erguer os olhos e visar o gênero humano ao seu redor, e neles, o Senhor. Ele entra, então, na ordem da criação, como lemos em Div. Sab. XIV:
"Com aqueles que amam os usos por causa do amor pelos usos, o Senhor é a cabeça, a Igreja, o país e os cidadãos são o corpo até os joelhos, e o mundo é os pés, dos joelhos até as plantas dos pés, e eles mesmos são os pés calçados com bonitos sapatos".
Irmãos, não estejamos pois em dúvida quanto a isto: o amor natural não é o amor genuíno, a caridade; não existe amor real, fora de si, no homem não regenerado, como não há bem genuíno  e  muito menos bom coração. Não há amor altruístico senão quando o homem é regenerado pelas verdades da Palavra e adquira amor espiritual, a verdadeira caridade par com o próximo. E isto é impossível sem as verdades. E mesmo no homem que foi regenerado que foi regenerado e tornou-se um anjo dos céus, jamais haverá tal amor verdadeiro ou tal bem genuíno nele, mas sempre com ele, pois o amor e o bem reais pertencem ao Senhor só. Vê-se, por conseguinte, que é um grave erro atribuir caridade ou bem a alguém antes da regeneração e mesmo depois. Estejamos certos quanto a isso.
Quando o homem está na ordem da criação e visa o interesse alheio de preferência ao seu, e assim o Senhor de preferência a si, tem um verdadeiro amor e se torna de fato útil ao reino dos céus. Não visa mais a vantagem pessoal que por ventura teria na obra, nem a faz por recompensa ou mérito. É algo como deixar de se pensar: "O que é que eu ganho com isso?", para pensar":  "Em que meu próximo pode ser beneficiado com isso? Como não lhe ser prejudicial? Como contribuirei par sua felicidade eterna?".
Se houver esse interesse honesto em relação ao próximo e ao Senhor, haverá também desejo de procurar saber qual é o bem que deve ser exercido par tornar o próximo feliz. Quem busca saber isso verá que primeiro há que se deixar de fazer aquilo que poderia ser prejudicial ao próximo, à sua alma e ao seu  corpo, o que já em si um bem. E para sabermos o que deve e não deve ser feito ao próximo e ao Senhor, o Senhor nos dá as verdades da Doutrina da Palavra.  O Divino Amor só age em conformidade com a Divina Sabedoria, e por isso a prática da caridade deve ser orientada e alcançada pelas verdades que estão na Palavra. Sem as Doutrinas da Palavra não pode haver reconhecimento acerca da caridade, do bem, e muito menos do amor. E as Doutrinas da Palavra são as que foram reveladas pelo Senhor em Seu Segundo Advento, através dos Escritos.
"Amar os outros fora de si", o primeiro essencial do amor. Considerando o que foi examinado aqui, todos nós vemos diante de uma necessidade premente de examinar, à luz da Palavra, a qualidade dos motivos pelos quais temos agido, as intenções de nossos atos, para que possamos daí reconhecer a qualidade do amor que existe em nós. O amor dominante determina todo o nosso estado, e segundo ele podemos estar numa ordem ou outra, pervertida ou íntegra, ou num processo de regeneração ou degeneração. Meditemos a respeito das intenções dos nossos atos, dos nossos motivos, nossos amores; reconheçamos nossa condição diante do Senhor e a Ele supliquemos que esse essencial do Seu Divino Amor, possa, de alguma forma, ser gradativamente recebido à medida em que nos empenharmos na tarefa da regeneração. Só assim receberemos um verdadeiro amor no qual existe essa característica do altruísmo verdadeiro, uma imagem do Divino Amor. Amém.