Bens e Males no Ser Humano

Sermão pelo Rev. Cristóvão R.Nobre

Mas que vos parece? Um homem tinha dois filhos, e, dirigindo-se ao primeiro, disse: Filho, vai trabalhar hoje na minha vinha. Ele, porém, respondendo, disse: Não quero. Mas depois, arrependendo-se, foi. E, dirigindo-se ao segundo, falou-lhe de igual modo; e, respondendo ele, disse: Eu vou, senhor; e não foi. Qual dos dois fez a vontade do pai?"
Mateus 21:28-32

O "homem" que tinha os dois filhos é o Senhor quanto à Divina Verdade ou a Palavra. Ele nos chama para desempenhar os usos que nos cabem em nossa existência. Os "dois filhos' são duas espécies de pessoa, uma que se deixa regenerar pelo Senhor, e por isso está no bem; e outra, que não está no processo da regeneração, mas aparentemente está no bem, embora de fato esteja no mal. "Trabalhar na vinha" é cooperar com a própria regeneração. A "vinha" é a mente espiritual do homem, onde o Senhor opera a transformação do seu novo nascimento. Ora, a regeneração consiste basicamente em renunciar aos males e, depois, desempenhar os bens dos usos; e o homem deve fazer estas coisas como se por si mesmo, para que o Senhor opere por meio desse esforço; por isso é dito que o homem deve "trabalhar" na vinha.
Precisamos cuidar de nossa regeneração espiritual como se ela fosse efetuada por nós mesmos. Em outras palavras, devemos buscar o conhecimento das verdades Divinas, devemos por ele cultivar o nosso entendimento, e devemos, pelo entendimento racionalmente esclarecido, nos esforçar para desviar dos males e praticar os nossos deveres correta e honestamente. Devemos produzir frutos para o Senhor, Seu reino, nosso próximo e mesmo para nós próprios. O chamado do Dono da vinha era para que os filhos fossem trabalhar "hoje", isto é, no presente estado espiritual, sem adiar o assunto para uma decisão futura, pois uma tal oportunidade futura poderá não existir.
A ordem do Dono da vinha é a atuação Divina Verdade, o Espírito Santo. Ela está continuamente influindo em nosso entendimento, urgindo para que nos movamos e ponhamos em prática o que aprendemos de bom e verdadeiro. Ela é o Senhor a nos indicar que devemos trabalhar na nossa regeneração já, prosseguir no processo de transformação de nosso modo de pensar e de agir. "Filho, vai trabalhar hoje na Minha vinha", diz Ele. Notem, porém, que a ordem dEle, na parábola, é branda, sem compelir nenhum dos filhos, sem impor Sua autoridade paterna. É quase um convite. O Senhor não nos força a sermos regenerados, porque devemos nos empenhar nesse trabalho em plena liberdade. Não somos constrangidos à qualquer obediência, embora saibamos que a obediência é vital. Como os dois filhos na parábola, somos livres para aceitar ou não a determinação Divina.
"Dirigindo-se ao primeiro, disse: Filho, vai trabalhar hoje na Minha vinha. Ele, porém, respondendo, disse: Não quero. Mas depois, arrependendo-se, foi". Assim é a pessoa que está sendo regenerada.  Pelo seu natural ou corporal, seu primeiro impulso é o de se rebelar contra a Verdade regeneradora. No seu nível corporal ela encontra inúmeros motivos para não ser regenerada; muitos atrativos que a desviam de seguir a consciência. De fato, ela se inclina para satisfazer as cobiças do amor do mundo e quer estar nessas cobiças.
Mas como o Senhor está no homem interno ou espiritual de uma tal pessoa, a consciência fala e ela acaba ouvindo.  Ela se examina, vê, conhece e reconhece os males em si, considera-se pecadora. E, por sua consciência,  ela decide que quer sinceramente se desvencilhar desses males o quanto antes. Sabe que, por si mesma, é infiel e rebelde para com Deus. Mas deseja lutar corajosamente pela sua regeneração. Então, arrepende-se de sua rebeldia para com seu Deus e, em seguida, afasta-se daquele mal e pratica o bem. A princípio, estava no erro, mas em seguida, ouvindo a consciência, reconheceu sua culpa, arrependeu-se, desviou-se de seus maus caminhos e converteu seu coração a Deus.
Quando começa a ser regenerado, o ser humano está na condição de que falam os Escritos, na obra Divina Providência: o Senhor está no interior, no homem interno, mas os males ainda estão no homem natural ou externo.  Os bens estão no interior e os males no exterior, e eles não se misturam. No seu interior, o homem não tem mais a intenção de praticar os males, mas no seu nível corporal e natural, quanta luta! Ali ainda há o prazer desses males.
É possível e é normal que haja essa convivência forçada de males e bens no mesmo homem, tanto no mau quanto no bom. Mas a diferença é que, no bom, isto é,  no que está sendo regenerado, os males estão nos externos e não na intenção, enquanto no mau, no que não está sendo regenerado, a maldade está na intenção, embora o externo se revista de uma aparente bondade civil,  moral e mesmo espiritual. Assim lemos em DP 227:
0 Senhor, por Sua Divina Providencia provê e dispõe continuamente, para que o mal seja por si mesmo, e o bem por si mesmo, e que assim possam ser separados - Cada homem está tanto no mal como no bem, pois está no mal por Si mesmo, e no bem pelo Senhor; e o homem não pode viver a não ser que esteja em um e no outro, pois Se estivesse em Si só e assim no mal só, nada teria da vida; e Se estivesse no Senhor só e assim no bem só, nada teria tampouco da vida; pois o homem neste gênero do vida seria como que sufocado, continuamente ofegante, como um moribundo na agonia; e naquele gênero de vida seria extinto; pois o mal sem bem algum em Si é morto; é por isso que cada homem está em um e no outro; mas a diferença é que um está interiormente no Senhor, e exteriormente como em si, e que o outro está interiormente em Si, mas exteriormente como que no Senhor, e este está no mal, e aquele no bem, todavia todos dois estão em um e no outro; se o mau está também é porque está no bem da vida civil e moral, e também exteriormente em algum bem da vida espiritual, e além disso porque é mantido pelo Senhor na racionalidade e na liberdade, a fim de que possa estar no bem; este bem é aquele pelo qual todo homem, mesmo o mau, é conduzido pelo Senhor. Por estas explicações, pode-se ver que o Senhor separa o mal e o bem, a fim de que um esteja no interior e o outro no exterior, e que assim Ele provê para que não se misturem... Mas isto não pode ser feito se o homem primeiro reconhece os veros da fé e vive segundo estes veros, e depois Se afasta deles e os nega.
A mente do homem consiste de dois aspectos: um interno e um externo. A ordem da regeneração é esta: que o homem trabalhe no externo, para que o Senhor faça o trabalho real e essencial no interno. Que o homem emende e corrija, com sinceridade, suas ações e palavras, seu pensamento e suas intenções, afastando a malícia dali, para que o Senhor possa fazer o mesmo no seu homem interno ou seu espírito. Ambas as partes devem ser regeneradas e se harmonizarem para que o homem seja verdadeiramente humano e tenha a salvação. O Senhor não pode jamais mudar os interiores do homem se este não se esforçar para, ao mesmo tempo, mudar suas atitudes e conduta externas.
Enquanto o Senhor faz Sua obra em nosso espírito, muitas vezes nos deparamos com uma desavença entre o externo e o interno em nós. Nossa vontade e nosso pensamento interior vêem o bem e para ele se inclinam; mas a vontade própria externa e seu pensamento vêem o mal e suas cobiças e para estes tendem. Daí é que, quando o Divino Vero influi em nosso entendimento e nos orienta acerca do caminho da regeneração, nossa vontade externa reage e não quer aceitar nem se subordinar ao interno. Existe então essa duplicidade de intenções ou de interesses que muitas vezes nos perturba: nosso interior diz uma coisa e quer aquilo, mas nossa exterior diz outra e quer essa outra, completamente oposta.
Há como que uma divisão e contenda de vontades em nós. De um lado, nós nos voltamos para o céu. Mas de outro lado, visamos nossa  vontade própria, os males ainda enraizados ali; e muitas vezes  nos espantamos com nossas reações, nossas palavras e gestos irregenerados, porque tínhamo-nos esquecido desse caráter infernal de nosso próprio. Por esta vontade do próprio é que o homem que está sendo regenerado percebe e egoísmo, e por isso olha para si mesmo e para o inferno.
Por causa disso o impulso da velha vontade em nós é dizer: "Não quero" à ordem do Senhor.  Temos uma vontade comodista, rebelde e difícil.  Mas depois do combate que se chama tentação, vencemos a vontade rebelde e nos submetemos aos mandamentos Divinos, e assim nossa regeneração progride. Há um combate entre as vontades, mas esse combate é, de fato, entre os maus espíritos que habitam as más inclinações do homem corporal e os anjos que estão no homem interno. Esse combate o homem sente como dor de consciência, ou um remorso por causa do seu primeiro impulso, por causa de sua má vontade. E os Escritos dizem que esse combate é tanto mais grave quanto mais o mal estiver enraizado na vontade. As atitudes que decidimos tomar em relação à nossa personalidade serão mais ou menos fáceis em proporção da profundidade com que o mau hábito estiver arraigado.
O homem sozinho não pode vencer essa sua vontade negativa. Ele não pode vencer o mal do seu esterno, se o Senhor não estiver no seu interno. Sem as verdades da Palavra para formar uma consciência genuína nele, ele ficará à mercê e ao capricho da vontade irregenerada. O homem meramente natural, o que não está sendo regenerado, por não ter consciência genuína, quando sua vontade diz "não" ao que é bom e justo, ele consente com ela, conforma-se com o mau, entregando-se ao que ela determina, donde não é possível nenhuma vida espiritual.
A "consciência" é, então, uma vontade nova e boa que o Senhor implanta, pela regeneração, no entendimento do homem. Ela está acima da vontade própria natural. É uma vontade que provém do espiritual, do interior. Assim, quando se dá o primeiro impulso da rebelião da vontade antiga, a vontade nova, a consciência, deixa passar um pouco, deixa que o furor do próprio se esfrie em seu abrasamento, e depois, com brandura mas firmeza, dirige o homem a que cumpra a Ordem Divina.
"Mas depois, arrependendo-se, foi". Inicia-se assim um novo estado de progresso espiritual. Ele trabalha hoje na vinha do Senhor, onde há muito o que fazer, porque o reino espiritual é o reino dos usos.
Compreendemos assim que, para sermos cristãos verdadeiros, devemos lutar continuamente para vencer a oposição de nossa própria vontade. Ser regenerado é contrariar a si mesmo todo o tempo, a fim de agradar a Deus. E esta é uma coisa que só cada um de nós pode fazer. É uma lei da Divina Providência que o homem não seja constrangido por ninguém a fazer o que quer que seja, porque aquilo que vem ao homem por compulsão de fora não fica com ele, mas o que ele recebe livremente, isso ele quer e passa a fazer parte de sua natureza, de seu ser. É próprio do homem agir por seus impulsos ou instintos naturais. Uns mais outros menos, todos freqüentemente se deixam dominar pelos impulsos de sua vontade irregenerada sem se deter para refletir a respeito do que é mais conveniente à vida verdadeiramente humana.
O ato de constranger a sua própria vontade não faz violência à liberdade do homem. Existe violência, sim, quando alguém quer constranger a vontade de outrem, adulto, a fazer alguma coisa. Nem o próprio Deus faz isto, pois que Ele respeita a liberdade e a racionalidade de cada indivíduo. Tampouco nós devemos fazê-lo. Quando, porém, o próprio indivíduo se constrange a fazer o que deve, ele o faz por sua livre decisão e vontade. É assim que lemos nas Doutrinas:
"Constranger-se a si mesmo não é contra a racionalidade, nem contra a liberdade. Já foi mostrado que há no homem um interno do pensamento e um externo do pensamento; que eles são distintos... e que, como são assim distintos, podem agir separadamente e agir conjuntamente; agem separadamente quando o homem, pelo externo de seu pensamento, fala e faz diferentemente do que pensa e quer interiormente; e agem conjuntamente quando ele fala e faz o que pensa e quer interiormente; esta conduta é comum nos sinceros, e a outra nos não-sinceros. Ora, pois que o interno e o externo da mente são assim distintos, o interno pode também combater contra o externo, e por este combate forçá-lo ao consentimento; o combate tem lugar quando o homem pensa que os males são pecados, e que em conseqüência quer renunciar eles; pois quando há renúncia a porta se abre, e desde que a porta é aberta as cobiças do mal que obsedavam o interno do pensamento são expulsas pelo Senhor e, em seu lugar, são implantadas as afeições do bem. Isto tem lugar no interno do pensamento. Mas como os prazeres das cobiças do mal que obsedam o externo do pensamento não podem ser expulsas ao mesmo tempo, eis porque há combate entre o interno e o externo do pensamento".
Ao segundo filho, o homem "falou-lhe de igual modo; e ele, respondendo, disse: Eu vou, senhor; e não foi". Esta segunda espécie de pessoa ou o segundo estado mental é de um caráter inteiramente oposto ao da primeira. Nesta, quando a verdade fala ao entendimento, o externo da mente parece aceitar. A vontade finge que se submete, mas apenas externamente.  No íntimo, ela reina e não abre mão de suas posições. A aceitação meramente externa da verdade resulta num bem hipócrita, conspurcado ou contaminado com o mal interior.
O hipócrita é aquele que é mau, mas assume atitudes boas e louváveis por conveniência de seus interesses, ou para ser agradável a outrem de quem depende para alcançar seus objetivos egoísticos. Interiormente, seu coração reage contra as verdades da Palavra. Como o Senhor falou aos fariseus: "Porque João veio a vós no caminho da justiça, e não o crestes... nem depois vos arrependestes para o crer".
Nesses, o mal está no íntimo, oculto; é a rebeldia contra o vero, é a intenção maldosa de ferir, magoar o próximo, dominá-lo, usurpar, fraudar e mentir. Não há o arrependimento algum porque as maldades confirmadas anulam as verdades em que poderia se basear a consciência. O mal que eles conservam e nutrem por dentro não deixa haver espaço de recepção do influxo, audição para a voz Divina. Ainda que tenham visto a verdade da letra da Palavra, ainda que tenham entendido a pregação clara de João, não abriram seus corações. Deliberadamente resolveram permanecer em suas vidas más. No entanto, como lhes convém guardar as aparências externas, por diversas razões próprias e mundanas, aparentam a aceitação, e durante algum tempo chegam a enganar os outros com seu atos.
Sabemos que o verdadeiro ser do homem é o seu interno, ou o espírito. Não é, pois, a atitude externa que vale, mas a vontade interna. Não é a aparência dos fariseus nem a condição externa de ninguém, mas a intenção de sua alma. O externo é um mero revestimento que será retirado tão logo o homem entre no mundo dos espíritos. Mas o interno, esse fica, seja ele qual for, bem como a posição que adotou em relação à voz Divina. Por isso o Senhor disse: "Nem todo o que Me diz Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de Meu Pai que está nos céus". Um dos filhos disse: "Não quero, Mas depois, arrependendo-se, foi". E o Senhor continuou: "Qual dos dois fez a vontade do pai? Disseram-lhe eles: O primeiro".
É bem melhor obedecer aos preceitos Divinos, ainda que seja a custo de remorso, de luta e de dificuldade, de esforço para vencer e domar a própria vontade, do que aparentar um externo agradável, tentar conseguir o favor Divino com palavras vazias de louvores. O homem que está sendo regenerado também tem uma vontade má e infernal que o impele à negação de Deus, que rejeita a operação do Espírito em sua vida. Mas ele recebeu do Senhor as verdades e os bens que formam a sua consciência e por eles o homem pode se elevar e superar a si próprio. Pode se arrepender e ir dar prosseguimento à obra de regeneração que o Senhor efetua em sua vida.
"Qual deles fez a vontade do pai?" - o Senhor perguntou. É interessante que, do ponto de vista externo, parece que foi o primeiro filho, que prometeu ir. Este pareceu bonzinho, enquanto o outro era o rebelde. Mas, na realidade, é o contrário, porque a bondade do primeiro era apenas aparência; e o segundo, mesmo a custo de remorso, foi quem atendeu ao pai. Porque em um o bem estava no interior e mal no interno, enquanto no outro o mal estava no externo e no íntimo o bem. Bem e mal não se misturam. Mas faz uma diferença tremenda qual deles está no interno e qual no externo do homem.
Que atitude teremos diante das verdades da Palavra, os Mandamentos Divinos? Devemos trabalhar hoje no reino de Deus, em Sua vinha, em especial na vinha de nossa própria mente. Nessa vinha da mente, só nós podemos trabalhar, cooperando com o Senhor na obra de nossa própria salvação. Amém.
Lições: Mt. 21:23-32; D.P. l45-l46; 227