Gratidão ao Senhor - II

Sermão pelo Rev.Cristóvão R.Nobre

"Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e tudo o que há mim bendiga o Seu santo Nome. Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e não te esqueças de nenhum de Seus benefícios". Salmo 103

 

O convite aqui é feito à alma e a tudo o que há na pessoa - ou, em outra tradução, às entranhas, para que bendigam ao Senhor. É, pois, um convite a um louvor que procede dos íntimos, da vontade e do pensamento interiores, da emoção e também da razão do indivíduo.
Muitas vezes, quando somos tocados por um certo sentimento de gratidão, oramos ao nosso Senhor dizendo "Muito obrigado, Senhor, por isso ou por aquilo", e quase sempre o fazemos sem refletir na razão real desse agradecimento. Por isso é que o salmista nos desperta a bendizer o Senhor a partir de um nível mais interior de nosso ser, de uma forma mais racional e esclarecida e também de afeições mais sinceras e vivas do que fazemos normalmente. Assim a gratidão  a Deus vem da própria alma e de tudo o que há de bom e verdadeiro na pessoa.
Por nosso homem natural, somos criaturas ingratas. Quase nunca nos lembramos do quanto dependemos da vida Divina e raramente reconhecemos as bênçãos quer estão continuamente fluindo do Senhor para todos nós. Se atentarmos para os nossos sentimentos naturais apenas, viveremos toda esta vida ocupados tão somente com nossas cobiças materiais, nossa pessoa, nossos objetivos e tudo o que diz respeito a nós mesmos. É, por conseguinte, importante uma oportunidade como esta, quando nos convidam a elevar os olhos e enxergar o céu além de nosso mundo terreno, o próximo e suas necessidades, além de nossos interesses, e a Deus Altíssimo, além de nossa insignificância e nosso individualismo.
Mas não nos elevamos automaticamente acima de nosso eu e do mundo só porque decidimos fazer isso.  Uma tal elevação de visão só é real se estivermos buscando a uma fé sólida em Deus associada à caridade espiritual, qual seja, a uma forma de vida que evita causar males e prejuízos ao seu próximo porque assim Deus ordenou.
Só pela Infinita graça do Senhor é que podemos elevar os olhos e enxergar os valores reais de nossa existência, os alvos que nos realizam como seres humanos, como imagem e semelhança de Deus.
Quando elevamos os olhos de nossa fé dessa maneira e olhamos para Ele, a primeira coisa que percebemos é a Sua grandeza diante do ser humano que se faz tão diminuto em seu egoísmo.
E, no entanto, Ele, que é tão imenso, tão grandioso,  desceu de Sua infinita altura, fez-Se carne, fez-Se Deus visível, Jesus Cristo, só para estar perto da criatura humana com o fim de conjuntá-la a Si e salvá-la.
É este Deus encarnado, o Senhor Deus Jesus Cristo, a Quem adoramos. Ele é Todo-poderoso, mas nunca Se impôe ao homem. É Criador e Pai, mas nunca força nossa obediência e sujeição. É Justo, mas nunca nos condena, nem paga com o punição o mal que muitas vezes fazemos. Um Ser magnânimo, pois, como lemos no Salmo, "Não nos tratou segundo os nossos pecados, nem nos retribuiu segundo as nossas iniqüidades".
Esse Deus clemente Se mostra sempre todo amor e proteção, sem nunca afastar um milímetro de Sua bondade, e está sempre pronto a nos receber, quando voltarmos para Seus braços, para nos envolver em Seu um cuidado terno, pois jamais desvia Seus olhos de criatura alguma, por um instante que seja, seja ela o anjo dos mais altos céus, seja o mais perverso dos homens na terra.
Infinitamente zeloso, Ele sempre nos concede tudo o que nos for essencial para uma existência feliz pela eternidade, ainda que, para isso, tenha de nos privar de alguma coisa que nos pareça essencial para a vida material, que é temporária.
Ele nunca deixa de nos conceder todos os dons e bens que formos capazes de receber, mesmo que, algumas vezes, acabemos por transformar esse bem em mal contra Ele e contra nosso próximo, também tão fraco como nós.
Poucas vezes nos lembramos de refletir sobre tanta bondade que Ele nos faz. Somos mesquinhos e indiferentes ao Seu amor. No entanto, a despeito disso, Sua Divina Providência está sempre ativa, incessantemente operando para nos salvar de uma enormidade de males e perigos de cuja maioria sequer temos a mínima noção.
Ele nos salva, por exemplo, do vazio, da falta de sentido e perspectiva nas nossas vidas, quando nos ensina que fomos criados para fazer parte de um reino onde o prazer da vida é o maior que existe, o de ser útil uns aos outros. Ele nos mostra que poderemos ser realmente felizes quando nos empenharmos na prática de bens para nosso próximo e nós mesmos.
Ele nos salva do medo da morte, da eternidade, do terror da não-existência, quando nos ensina sobre o céu e as suas maravilhas, dando-nos plena certeza de que Ele está nos preparando lugar de conforto e paz, e que continuaremos a manter nossa identidade e nossas faculdades preservadas, e as usaremos de forma ainda mais plena do que aqui.  Para tudo isso, Ele requer apenas que aceitemos a vida do céu em nossos íntimos enquanto vivermos aqui. Assim o salmista diz que Ele é "Quem redime a tua vida da perdição, e te coroa de benignidade e de misericórdia".
A nós, humanos, não resta nenhuma outra perspectiva de bem, de felicidade, de satisfação interior fora da aceitação dessa realidade eterna de que o Senhor é Deus acima de tudo. Sem Ele não há esperança de vida. Deus justo e salvador, não há outro senão Ele só.
Todavia, Ele não impõe a que o homem creia nisso. Por causa do livre arbítrio, que faz o homem ser diferente de um animal, é necessário que o indivíduo chegue livre e espontaneamente a essa conclusão, por sua própria fé, e assim aceite voluntariamente a vida espiritual que vem de Deus. Quando temos ciência disso, não podemos deixar de pensar da maneira como o apóstolo resumiu:  "Como escaparemos nós, se não atentarmos para uma tão grande salvação?" (Hebreus 2:3); e também como os discípulos desde cedo compreenderam: “Senhor, para quem iremos nós? Tu tens as palavras da vida eterna.." (João 6:68).
O Salmo 103 nos convida, portanto, a bendizer ao Senhor de todo o nosso ser, de nossos corações e mentes, com afeição genuína e com racionalidade.
Mas devemos saber que a ação de graças e a adoração que a criatura humana presta a Deus não é porque Ele queira ser adorado ou celebrado. De fato, Deus não necessita de louvores nem de celebrações, porque, sendo Deus, como poderia o louvor do homem aumentar a Sua glória, ou acrescentar algo à Sua bondade que já é infinita?
Então, Deus aceita nosso culto porque, ao nos dispormos a louvá-Lo e a bendizer o Seu Nome, estamos vencendo essa natureza humana negativa e corrupta em nós, que a ninguém quer engrandecer senão a si mesma.
Quando nos inclinamos diante de Sua grandeza, estamos removendo de nosso coração a soberba, o orgulho, a autoconfiança exagerada, e nos deparamos como realmente somos: meros receptáculos, criados para receber a vida Divina.  Assim compreendemos e trazemos de novo à mente a verdade de que nada somos e só Ele é, só Ele tem a Vida.
Nessa condição de humildade, quando são removidos os obstáculos do ego humano, o Senhor pode Se aproximar mais de nós e nos fazer sentir de mais perto a Sua vida. O louvor, a ação de graças a Deus se presta, pois, não para bajular o Altíssimo, mas para nos colocar numa condição própria para recebermos a vida real.
Por isso a primeira condição do agradecimento, da ação de graças, é que deve ser espontânea.  Deus também não nos obriga a sermos gratos a Ele. O louvor não é um preço que Ele nos cobra, pagamento pelo bem que nos  faz. Porque Ele nos ama e continuará expressando Seu Divino pelo homem pela eternidade, quer seja o homem grato ou não.
Podemos passar toda o dia, todo o ano e toda a vida sem dirigir a Ele qualquer palavra de agradecimento de nossos corações, e Ele ainda continuará a nos amar e querer nosso bem.
Podemos ignorar todos os Seus benefícios, mas Ele não mudará Sua face de misericórdia para conosco.
Podemos, como os nove leprosos que foram curados, receber as bênçãos e dar às costas a Ele, prosseguindo pelo nosso caminho, mas então nosso caminho será muito mais árduo, muito mais triste.  Ignorar a misericórdia de Deus só torna a vida humana mais miserável. Pois, fora dEle, que alternativa temos? Nele, temos a esperança de uma vida futura feliz; sem Ele, é a não existência, o fim, o nada.
Se nos voltarmos para Ele, teremos, nas horas de maior dor nesta vida, o conforto, a consolação de saber que Ele está acima de tudo, que todas as coisas são dirigidas, determinadas e permitidas por Sua misericordiosíssima Providência para dali tirar um bem eterno para o homem. Por outro lado, se O ignorarmos, restar-nos-á somente a sensação de que estaremos sós e desamparados nas aflições, impotentes diante das vicissitudes da vida, diante de tantas forças que são muito maiores do que nós, e presos a situações que não podemos mudar.
Temos a escolha a fazer, de um lado, de uma profusão de verdades que penetram em nosso entendimento e abre-nos os olhos do espírito; de outro lado, a escuridão da ignorância, da incredulidade, a falta de noção a respeito do que será amanhã.
Olhemos, irmãos, à nossa volta e vejamos com o entendimento, os olhos da fé, e também com um coração cheio de boa vontade, em todas as coisas, essa operação silente, incansável, poderosa, da mão Divina. Ele está conosco a todo momento.  Ele é nossa única esperança real, nossa herança certa para a vida eterna.
Meditemos nas muitas bênçãos que Ele nos tem dado e nos dará ainda. E aprendamos a cultivar nosso amor para com Ele, a começar pela gratidão, por um desejo de expressar, do fundo de nossas almas, a confissão consciente de que dEle dependemos e que só dEle vem tudo o que é realmente bom e verdadeiro em nossas vidas.
Seja este reconhecimento uma oração de gratidão e de louvor ao santo Nome do Senhor, neste dia: "Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e não te esqueças de nenhum de Seus benefícios".  Amém.