ARREPENDIMENTO

Sermão pelo Rev. Frederich l. Schnarr

 

                                          Então falou Samuel a toda a casa de Israel, dizendo: Se com todo o vosso coração vos convertedes ao Senhor, tirai dentre vós os deuses estranhos e os astarotes e preparai o vosso coração para o Senhor e servi a Ele, e vos livrará da mão dos filisteus.


(1 Samuel 7;3)

 

                   A história do apelo à casa de Israel para arrepender-se de sua idolatria descreve, no sentido espiritual, o estado de arrependimento que precede a reforma do indivíduo. Convém notar que essa história mostra três estados sucessivos. O primeiro, em que vemos os filhos de Israel praticando abertamente a idolatria, é um estado de mal a que todos os homens se incluíam devido ao seu hereditário mau. O segundo, em que Samuel apela para o povo no sentido de que se desfaça de seus ídolos, é um estado de confissão do pecado. E o terceiro, em que Israel se volta para o Senhor pedindo perdão, depois de afastar-se dos deuses estranhos, é um estado de verdadeiro arrependimento. Esses três estados (mal, confissão e arrependimento) são os estados universais pelos quais devem passar todos os homens que nascem no mundo, se quiserem tornar-se homens regenerados, isto é, habitantes do reino do Senhor.

                   Que todos os homens nascem com uma vontade própria que faz que eles se inclinem para os males de toda a espécie é o que a Revelação nos ensina claramente. Basta que examinemos nossas intenções e os motivos de nossas ações para confirmarmos isso. Cobiça, prevenção, ódio e inclinação pelos prazeres ilegítimos brotam de nosso amor ao eu, tentando apossar-se de nossa vontade e dominar nossos pensamentos, manifestando-se nos atos de nossa vida.

                   Desde que a criatura humana perdeu sua inocência primitiva, isto é, desde sua queda, o inferno tem introduzido no mundo suas perversões e desordens. E tal é o poder sutil de sua persuasão que a criatura humana se acha, às vezes, incapaz de reconhecer o que é ordem e o que é desordem. Se permitir que prevaleçam as forças infernais, verá que, em breve, os prazeres e desejos naturais a levarão para as paixões e cobiças de toda a ordem. Seu sentimento, impregnado de males, a conduzirá a um tal estado de desordem, que impedirá sua aproximação do Senhor. Se intenta fazer que a razão a guie, achará que seus pensamentos se voltam cada vez mais para o mundo material em que a experiência e a sensação reinam absolutas. Mas isso somente lhe traz insegurança, porque sua consciência, sob o influxo do Senhor, não está completamente amortecida e produz, de vez em quando, o desejo de penitenciar-se.

                   O homem que não tem seu pensamento baseado nas verdades Divinas e que não tem a direção das leis da ordem Divina é semelhante a um peregrino perdido em um deserto. É queimado pelo sol de seus próprios amores e atormentado pelas areias movediças de sua própria inteligência. Constrói seus ídolos com o pó da terra e adora os deuses dos amores mundanos e dos desejos egoístas.

                   Então, como o homem, entregue a si mesmo, jamais acharia o reino do céu, o Senhor manda Samuel, ou as Divinas Verdades da Palavra, para ajudar o homem. A missão de Samuel é mostrar à humanidade o caminho que ela deve seguir, a progressão ordenada dos estados que conduzem à vida angélica; é mostrar-lhe as obras que deve realizar e a vida que deve rejeitar. O Senhor dá gratuitamente Seu amor para incutir na humanidade coragem e esperança, a fim de que todos achem paz e felicidade no céu.

                   Os Escritos nos ensinam que o homem que deseja sair do estado de desordem e de mal deve primeiramente apresentar-se diante do Senhor, reconhecendo e confessando os amores e desejos de seu coração. Para fazer isso, deve saber o que constitui o pecado, isto é, quais são os amores e desejos maus de que é portador. E o único meio para alcançar esse conhecimento é o homem deixar-se guiar pelas verdades da Palavra, pois ele não pode conhecer seus pecados a não ser que conheça as verdades que os revelam. À luz das verdades, o homem precisa ver, conhecer e reconhecer o mal nos meandros de seu pensamento e nos motivos de sua vontade. Deve indagar de si mesmo o que faria se o temor da perda da reputação, da honra e do lucro fosse removido, de modo que seu pensamento e sua vontade ficassem em completa liberdade.

                   Esse conhecimento do mal é o primeiro passo para a regeneração. Mas isso não é suficiente para a salvação do homem. Uma pessoa pode reconhecer que é pecadora, pode considerar-se culpada de vários males e, ainda assim, não se arrepender de seus pecados. Assim eram os filhos de Israel que louvavam o Senhor com sacrifícios e ofertas queimadas, e depois iam corromper-se com outros deuses. Assim eram os fariseus e saduceus que louvavam a Deus com os lábios e, entretanto, O desrespeitavam com suas ações. Assim, são todos os que conhecem os seus males e, entretanto, continuam a praticá-los pela vida afora.

                   A segunda etapa da regeneração é a confissão dos males. Ela se verifica quando nos voltamos para o Senhor humildemente, confessando sinceramente nossos pecados e reconhecendo que, por nós mesmos, nada somos senão mal. Fazemos isso segundo o apelo de Samuel, que representa as Divinas Verdades da Palavra, apelo que está contido em nosso texto: "Se com todo o vosso coração vos converterdes ao Senhor, tirai dentre vós os deuses estranhos e os astarotes e preparai o vosso coração para o Senhor e servi a Ele, e Ele vos livrará da mão dos filisteus".

                   O ensinamento da Doutrina Celeste é que os pecados não são perdoados pela simples confissão de boca, nem são lavados como lavamos a sujeira de nossas mãos. Eles são perdoados por meio do arrependimento e da penitência. Se vivermos de acordo com as verdades da Palavra, se dedicarmos verdadeiro amor ao Senhor e ao próximo, se desistirmos do mal porque é mal, então os pecados são removidos pelo Senhor.

                   Essa terceira etapa da regeneração, o estado de arrependimento e de penitência, é a mais importante, embora seja uma consequência das duas anteriores, formando como que o ápice de uma pirâmide. Sua importância pode ser vista quando refletimos que, em toda a Revelação, o Senhor tem chamado os homens ao arrependimento. Em várias passagens da Palavra lemos: "Assim diz o Senhor Deus: Arrependei-vos e afastai-vos de vossos ídolos; e desviai as vossas faces de todas as abominações" (Ezequiel 14;6); "Arrependei-vos, porque o reino de Deus está à porta" (Mateus 3;2); "O tempo está cumprido e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no Evangelho" (Marcos 1;15). Os Escritos explicam que a menos que o homem comece a arrepender-se neste mundo, ele não tem possibilidade de fazê-lo no outro. Pois é neste mundo que o homem forma e estabelece seu amor dominante, e este sendo formado, seja com a confirmação do bem e da verdade, seja com a confirmação do mal e da falsidade, tal amor permanece para sempre. Constituindo essa confirmação - uma ou outra - seu prazer dominante, o homem não deseja mudá-lo na outra vida e, quando deixa este mundo, procura, no céu ou no inferno, a sociedade que está de acordo com o amor aqui confirmado.

                   Este ensinamento não quer dizer que o homem esteja completamente arrependido e regenerado antes da morte; na realidade, muito poucos homens se aproximam, hoje em dia, desse estado. Mas o ensinamento significa que o homem deve começar a afastar-se do mal e voltar-se sinceramente para o bem. Pois, quando há um esforço sincero e humilde no sentido de submeter-se às leis da ordem Divina, é provida uma abertura pela qual o Senhor pode continuar a auxiliar e guiar o homem, gradualmente, cada vez mais, para fora dos prazeres meramente sensuais e corporais, e encaminhá-lo para os prazeres espirituais do céu. Quando o homem faz a sua parte, demonstrando o desejo de ser regenerado, o Senhor completa a tarefa em benefício do homem. Isso é ilustrado pela lição da Palavra que estamos examinando, na qual lemos que, sempre que os filhos de Israel se voltavam para o Senhor com o coração arrependido e cessavam de adorar deuses estranhos, eram recompensados com vitórias sobre os inimigos e com a paz que se seguia.

                   Cumpre lembrar que nossos pensamentos concernentes ao arrependimento podem ser influenciados pelas idéias que prevalecem, a respeito, no mundo cristão em torno de nós. Precisamos ter cuidado para preservar nossa mente livre de fazer do arrependimento um ato emocional e temporário, como é o arrependimento resultante do conceito de salvação instantânea no momento da morte. Durante os estados de infortúnio, de luta, de doença ou de medo, a razão se torna confusa e dominada por pensamentos resultantes do instinto de conservação. Nesse momento de desespero, o homem que não tem o amparo da religião volta-se para o Senhor na esperança de que seus pecados sejam perdoados. Não há, entretanto, arrependimento nesses estados de compulsão da mente. Qualquer forma verdadeira de arrependimento só pode realizar-se quando o homem está num estado de liberdade e paz.

                   Passadas as vicissitudes que se abateram sobre ele, o homem sem religião ou se volta para sua vida anterior de males e falsidades, ou se esforça no sentido de viver uma vida de acordo com a Lei Divina. A sua razão deve estar clara para refletir e então dirigir seus amores para um lado ou para outro. Se passa a acreditar na Lei Divina e se esforça por cumprir os mandamentos, então o Senhor pode abrir os interiores de sua mente para habilitá-lo a receber os amores do céu.

                   Alguns membros da Igreja, que trilham o caminho da regeneração, desanima, às vezes, com o aparente pequeno progresso que julgam ter alcançado, apesar do sincero esforço que fizeram para se penitenciarem. Devemos lembrar-nos, entretanto, que a reordenação da mente natural e a abertura da mente espiritual pelo Senhor é um processo que exige muitas mudanças sutis e muitas transformações trabalhosas. O amor que deve permanecer e coroar a existência da criatura humana não pode formar-se instantaneamente. As tentações, as lutas, as penitências são os meios de sua formação e somente o Senhor conhece o tempo em que tal amor florescerá e dará os frutos que constituirão a felicidade e a paz. Quando chega esse momento de júbilo, todas as lutas e trabalhos mergulham, para sempre, no esquecimento.
Isso é representado pelo cumprimento da promessa feita, por intermédio de Samuel, aos filhos de Israel, segundo o qual, se eles afastassem os deuses estranhos, representativos de seus maus desejos e de seus maus amores, o Senhor os ajudaria a vencer os inimigos e os levaria finalmente à paz e à felicidade, que são a recompensa da luta.

                   Como o arrependimento é o primeiro essencial na vida da regeneração, é conveniente que, sempre que refletirmos sobre as promessas do futuro, sempre que nos propusermos novos padrões de vida, sempre que nos prepararmos para novos esforços, (é conveniente que) nos lembremos de que devemos fazer nossa parte na obra da salvação, sabendo que o Senhor a completará.

                   Não há criatura humana que não necessite de arrependimento. Somos todos filhos de Israel. E a voz de Samuel ressoa hoje nas páginas da Palavra exatamente como fazia nos tempos antigos. A Divina Verdade é eterna e sua mensagem é a mesma para todos os homens. Ela nos chama para que nos voltemos para o Senhor e, como resposta, com um coração verdadeiramente arrependido, devemos repetir o que foi dito no Salmo 139: "Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me e conhece os meus pensamentos; vê se há em mim algum caminho mau, e guia-me pelo caminho eterno". Amém.

Lições: I Samuel 7;2 a 17
AC 8391 e 8392
Adaptação J. Lopes Figueredo

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AC 8391 e 8392
ARREPENDIMENTO

 

                   8391. Aquele que vive uma vida de fé arrepende-se diariamente, porque medita sobre os males que estão nele, reconhece esses males, evita praticá-los e suplica a ajuda do Senhor. O homem, por si mesmo, está continuamente caindo mas, por outro lado, o Senhor continuamente o levanta. O homem cai por si mesmo quando ele pensa no mal com o desejo de praticá-lo e ele é levantado pelo Senhor quando resiste ao mal e, consequentemente, não o pratica. Tal é o estado daqueles que estão no bem. Aqueles, porém, que estão no mal, caem constantemente e a esses o Senhor socorre continuamente. O Senhor faz isso para impedir que eles se precipitem no horror do inferno, para o qual eles, por si mesmos, se inclinam...

                   8392. O arrependimento praticado no estado de liberdade é proveitoso, mas o arrependimento que se processa por compulsão não é válido. O estado de compulsão é um estado de doença, um estado de perturbação da mente resultante de desgraças ou de morte iminente, isto é, um estado de medo que expulsa a razão da mente. O homem mau, em estado de compulsão, promete arrepender-se, mas quando volta ao estado de liberdade, ele também volta ao seu estado anterior de vida má. Ocorre o oposto com o homem bom: os estados que perturbam sua mente são para ele tentações que, superadas pelo arrependimento, com a ajuda do Senhor, concorrem para sua regeneração.