O arrependimento pelo mal

Sermão pelo Rev. Cristóvão R.Nobre

"Pequei, traindo o sangue inocente" (Mat.27:4)

Nas passagens dos Evangelhos lidas encontramos relatos de momentos dificílimos por que passaram dois homens, dois discípulos do Senhor, sufocados pelo remorso por causa de seus males. Reflitamos hoje sobre esse sentimento nas pessoas de Judas Iscariotes e Simão Pedro, segundo o que nos ensina a Palavra. Examinemos as atitudes desses dois homens naquele dia fatídico.  Como nos situamos em relação a falta que cometeram contra o Senhor?
A traição da parte de Judas Iscariotes é um dos fatos mais relevantes na história da crucificação do Senhor. Judas, por sua infâmia, passou à história cristã como encarnação do mal, como o responsável pela crucificação, como se ele tivesse, com seu ato, interrompido alguma obra Divina a mais em prol da humanidade.
De fato, o ato de que Judas Iscariotes foi capaz é de extrema impiedade. Ele que convivera com Jesus por quase três anos, ouvira Seus ensinos, vira Seus milagres e testemunhara que todas a Suas obras não eram senão de misericórdia... foi capaz de entregá-Lo nas mãos dos judeus que O queriam matar. Era o cumprimento do que havia sido escrito no Salmo "Até Meu próprio amigo íntimo, em que Eu confiava, que comia do Meu pão, levantou contra Mim o seu calcanhar" (41:9).
Cego por sua cobiça, seu amor ao dinheiro, Judas combinou com os príncipes e sacerdotes que lhes entregaria Jesus em troca de 30 moedas de parta. Judas conhecia bem os hábitos do Senhor, onde e quando poderia ser preso, longe da multidão que O seguia, para que isso não causasse alvoroço. E, no momento apropriado, foi com um beijo que ele indicou aos perseguidores Aquele a quem buscavam. Por 30 moedas de prata, que era o preço de um escravo, Judas vendeu alguém que, no mínimo, era absolutamente inocente de qualquer crime. Jesus Se deixou levar. "Como um cordeiro foi levado ao matadouro, e, como ovelha muda perante os seus tosquiadores, Ele não abriu a Sua boca" (Isaías 53:7).
Quando nos referimos ao discípulos que traiu Jesus, logo nos vem à mente o nome de Judas Iscariotes. Mas Pedro também O traiu. Naquela mesma noite da traição de Judas, Pedro também negou a Jesus três vezes, e isto diante não de um tribunal, mas diante de servos e pessoas comuns. Mais cedo, na hora da ceia, aquele mesmo Pedro havia, com toda a sua confiança, afirmado a Jesus: "Estou pronto a ir contigo até à prisão e à morte". E quando Jesus o alertou, dizendo: "Nesta mesma noite... três vezes Me negarás", Pedro ainda insistiu:  "Ainda que seja mister morrer contigo, não Te negarei. E todos os discípulos disseram o mesmo" (Mat. 26:34,35).
Ao jurar ao Senhor fidelidade até à morte, Pedro certamente não tencionava enganá-Lo. Com excessiva confiança em sua própria disposição, com certeza absoluta em sua própria fé, Pedro não podia supor que toda a sua confiança desapareceria dali a poucas horas. "Até à morte", pensava ele, seguiria a Jesus. E até na hora em que Jesus foi preso, Pedro cometeu a bravata de tomar a espada e atingir a orelha de um servo do sumo-sacerdote, valentia inútil que foi severamente censurada pelo Senhor.
Pedro superestimava a natureza humana. Pois, naquela mesma noite, ao ver que as coisas se agravavam, se acovardou, se escondeu e fingiu não ter nada com o que se passava. Estava de longe assistindo ao que acontecia quando foi reconhecido três vezes como um dos que seguiam a Jesus, e três vezes Pedro o negou, até com imprecações, jurando que não conhecia o Senhor.
Está claro que Judas teria agido pela cobiça de seu mal, significada pelo "diabo" que entrou nele na última ceia. Seu mal foi premeditado; ele saiu de propósito deliberado para atraiçoar a Jesus; é o mal confirmado pela astúcia do entendimento. Pedro teria agido pela covardia, enganado pela autoconfiança e pela fé em si mesmo. Omitiu-se porque preferiu salvar sua própria pele, não correndo o risco de também ser preso, esbofeteado e açoitado. Escondeu-se atrás da falsidade, jurando e mentindo que nunca conhecera a Jesus.
Ambos traíram o Senhor. Mas tanto um quanto o outro, Judas e Pedro, cedo perceberam o mal que haviam feito, e sentiram na alma grande remorso pelos seus crimes.
Lemos na Palavra que Judas,  ao ver que Jesus fora condenado à morte, arrependeu-se do que fizera. Talvez não tivesse calculado tal conseqüência de seu ato. Mas, sob o peso de um extremo remorso, teve um ato digno: apanhou as 30 moedas de prata, o salário de seu pecado, e foi procurar os responsáveis pela condenação de Jesus. Lá, perante os anciãos, confessou, sem rodeios: "Pequei, traindo sangue inocente".
Não fiquemos indiferentes à atitude de Judas. Aparentemente, ele tentava reparar o grande mal que havia feito. Comparecia diante daquele tribunal duvidoso como testemunha tardia e desesperada.  Aquele homem, ferreamente apegado ao dinheiro, já tivera de vencer esse amor ao dinheiro e tomar a resolução de devolvê-lo. Depois, tivera a honestidade de procurar aqueles aos quais devia confessar seu erro, mostrar seu arrependimento e dos quais obter ajuda para reparar sua falta. Além disso, mesmo sabendo que aquele tribunal já havia declarado Jesus culpado de blasfêmia, Judas passou por cima daquele veredicto, desafiando a decisão deles e declarou ser Jesus inocente. Em seu próprio juízo, Judas sabia que em Jesus não havia mal algum e que sua falta foi um grave pecado: "Pequei, traindo sangue inocente".
Mas os anciãos e sacerdotes não estavam realmente interessados em saber se Jesus era ou não inocente; não lhes interessava o testemunho, mesmo tardio, de Judas, porque estavam conseguindo o que sempre quiseram: eliminar Jesus e afastar para sempre o perigo que Ele representava. Por isso responderam secamente a Judas: "Que nos importa? Isso é contigo!".
E Judas se viu sozinho; não podia fazer mais nada; atirou as 30 moedas para o templo e, saindo, enforcou-se. Seus últimos atos neste mundo não podem deixar dúvida alguma quanto à veracidade de seu remorso, a confissão de seu arrependimento. O mínimo que ele achou que podia fazer para compensar a morte de um inocente era entregar-se ele também à morte. E, por ironia, foi Judas, e não Pedro, que acabou indo por Jesus até à morte.
O outro discípulo, Pedro, ao negar Jesus terceira vez, até com indignação e juras, ouviu o galo cantar. Naquele mesmo instante, do lugar onde Se achava, Jesus virou-Se e olhou para Pedro. Podemos imaginar que sentimentos passaram pelo coração de Pedro naquele instante, quando seus olhos encontraram os olhos de Jesus fitando até sua alma. O reconhecimento de seu pecado e de toda a fraqueza da natureza humana deve ter feito Pedro se envergonhar e se arrepender de tal maneira, que ele, saindo dali, chorou amargamente.
A tradição cristã é ser intolerante para com Judas e indulgente para com Pedro. O primeiro ficou como símbolo da indignidade mesma, e o segundo foi reputado como chefe da Igreja. E, entretanto,  ambos eram homens comuns, pecadores, carentes da misericórdia de Deus, que é a mesma para com toda criatura. E, o que é mais importante, tanto um como o outro igualmente se arrependeram com profundo remorso e amargura pelo que haviam feito. A diferença foi que Pedro continuou a fim de prestar seu testemunho e desempenhar seu valioso papel no desenvolvimento da Igreja, ao passo que Judas, talvez prevendo que não seria capaz de levar para o resto de seus dias aquele remorso, especialmente o receber na face as acusações de homens por um mal de que já se arrependera, preferiu abreviar sua vida. Não vamos aqui entrar na discussão do seu suicídio em si, mas apenas do seu sentimento e do que o levou a tal fim.
Alguém poderia lembra de que, como diz o Evangelho, na noite da última páscoa, o diabo entrou em Judas. Mas isto não é suficiente para concluirmos que ele era interiormente condenado, porque também é dito no evangelho que o diabo, mais exatamente, Satanás entrara antes em Pedro e falara por sua boca, sendo repreendido pelo Senhor: "Para trás de Mim, Satanás, que Me serves de escândalo..." (Mat.16:23).
Para melhor compreendermos estas e outras passagens da Palavra, é necessário saber que os discípulos de Jesus, sendo 12 como as tribos de Israel, tinham a mesma significação espiritual. E que o papel que esses discípulos tiveram nos relatos do Evangelho são em conformidade com o que eles representam espiritualmente na Igreja. Por exemplo: João, de quem se diz que Jesus o amava, representa exatamente isso, o amor ao Senhor; por isso é que a João o Senhor disse que ficaria até que Ele voltasse, por ser a coisa essencial da Igreja; Tiago representa a caridade; Pedro representa a fé, fé que no começo é um tanto incerta, vaga e que vacila à menor tribulação, pois ainda é a fé humana e não a fé verdadeira que é implantada mais tarde pelo Senhor.
Que Pedro represente a fé, isto é evidente pelas palavras que o Senhor lhe dirigiu, quando ele confessou que Jesus era o Filho de Deus:  "Bem aventurado és tu... Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a Minha igreja" (Mat.16:8), ou seja, a Igreja Cristã seria edificada não sobre o homem em si, mas sobre a fé que Pedro ali simbolizava, fé essa, como foi dito, que é a fé no Unigênito Filho de Deus.
Judas representa a Igreja Judaica. A traição de Judas foi usada no Evangelho como um símbolo representativo da mesma traição feita pela Igreja Judaica ao Messias: "Ele veio para o que era Seu, e os Seus não o receberam" (Jo.1:11). A Igreja Judaica, reduzida aos fariseus e sacerdotes, também trocou o Messias pelo amor mundano e o domínio por meio das falsidades, aqui representadas pela prata. Por essa rejeição, a própria Igreja Judaica escolheu seu fim. Neste sentido, Judas fez o mesmo que Judá, 1500 anos antes, que vendeu seu irmão José aos ismaelitas. E no plano de cada indivíduo, Judas representa o nível sensual, ou seja, o nível da mente mais próxima dos sentidos; e o fato de o diabo entrar em Judas mostra-nos o mal que pode invadir e dominar o homem a partir desse nível sensual da mente, que é o que recebe a insinuação dos amores mundanos e egoísticos e corromper todo o seu caráter. Judas, assim como a Igreja Judaica, findou-se na forca, para representar (embora ele não soubesse disso, é claro) que aquela Igreja estava devastada e finda. E Pedro continuou porque a Igreja Nova que então se instaurava, e cuja fé ainda infantil estava figurada nele, iria prosseguir e se fazer adulta e, finalmente, espiritual.
Quanto a se Judas e Pedro foram condenados ou absolvidos por sua traição, isto não nos cabe julgar. O que podemos - e devemos - fazer é analisar os seus atos, porque, como nos disse o Senhor, "pelos seus frutos os conhecereis". Portanto, se não nos cabe julgá-los para o bem, também não podemos condená-los, pois, aparentemente, os remorsos de Judas e Pedro foram sinceros. Por isso, não é correto seguir a cega tradição cristã e tomar o homem Judas como símbolo do mal. Pelo menos uma lição podemos tirar da atitude de Judas: ele teve a honestidade e a coragem de ir confessar seu pecado. Pedro também teve a mesma oportunidade, quando, depois da Ressurreição, três vezes confessou seu amor ao Senhor.
Ao pensarmos nos erros de Judas e Pedro, tenhamos em mente que nós, também, cometemos erros de que depois viemos a nos arrepender amargamente. Podemos até pensar que nossos erros são muito menores do que os deles, que traíram o próprio Jesus em pessoa... Mas será isto verdade? Por mais medonhos e vis que os atos daqueles dois discípulos tenham sido, será que não estamos sujeitos a repeti-los e fazê-los até piores? Porque, quando fazemos o mal de propósito deliberado, sabendo que aquele ato é um mal, estamos fazendo violência ao bem, e o Senhor é o Bem mesmo! Quando fazemos conscientemente o que é injusto, sem dar atenção aos apelos de nossa consciência, estamos esbofeteando e açoitando a justiça, e o Senhor é a Justiça mesma. Da mesma forma, quando presenciamos a verdade ser maculada, manchada, destorcida e ficamos omissos, com medo de abrir a boca para defendê-la quando isso nos cabe, estamos negando a verdade, fingindo nunca a conhecemos... e o Senhor é a Verdade mesma. Em suma, o Senhor é o Bem mesmo e a Verdade mesma, e tudo o que nós fizermos, conscientemente, que atente contra o bem e a verdade, é um semelhante ato de traição a Jesus. Nem mais nem menos.
Quando reconhecemos nossos erros e sentimos remorso por eles, este sentimento é saudável espiritualmente falando, porque o remorso indica a presença da consciência. Lemos nos Arcanos Celestes, a respeito da consciência: "Agir contra a consciência é agir contra à nova vontade, contra à caridade e contra às verdades da fé, conseqüentemente contra a vida que o homem tem do Senhor; isto é evidente pelo fato de que o homem está na tranqüilidade da paz e na bênção interna quando age de acordo com a consciência; e que está na intranqüilidade e também na dor quando age contra a consciência. Essa dor é que se chama "remorso da consciência" (9118). A ausência do arrependimento e do remorso, quando o mal é praticado, é por causa da ausência de qualquer consciência espiritual.
Ao reconhecermos nossos muitos erros, às vezes é impossível voltarmos atrás e repará-los. Mas, se isto nos for possível, temos o dever vital de fazermos isso, a honestidade de Judas para sair, confessar e tentar reparar nosso mal o quanto antes; se não fizermos isso, nossa adoração a Deus não é recebida: "Se trouxeres a tua oferta ao altar e aí t lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão, e depois vem e apresenta a tua oferta" (Mat.5:24). Se o Senhor nos determina isto, é porque, às vezes, somos nós os responsáveis por algum rancor que tenha ficado enraizado no coração de nosso irmão, porque o ofendemos de alguma maneira e depois, sem fazer caso da mágoa que causamos, permitimos que ficasse o ressentimento entre ele e nós. Faltou-nos a coragem de Judas para ir àquele irmão e dizer: "Pequei", e pedir-lhe perdão pelo mal que lhe causamos. Esta decisão nossa pode até ser mal recebida, se a pessoa não perceber sinceridade em nossa confissão ou achar que fizemos isso apenas por "desencargo de consciência". Mas se o fizermos de todo o coração, isto bastará para remover do coração dela todo azedume e que a impedia de receber as bênçãos do Senhor, e nós éramos responsáveis por isso.
Quando não nos for absolutamente possível ir à pessoa e tentar reparar o mal, confessando nosso erro, pelo menos o façamos diante do Senhor, com a firme resolução de nunca mais fazermos coisa semelhante com aquela e com outras pessoas. Então podemos pedir que o Senhor afaste de nós o remorso, já que, de nossa parte, nada mais nos resta a fazer. Senão o remorso se torna um meio de tormento que os espíritos infernais usarão para nos acusar e nos roubar a paz.
Pela mesma forma, tenhamos consideração para com os sentimentos de alguém que errou e que já se arrependeu do erro. Se a pessoa se mostra de fato arrependida, ela é digna de nossa compreensão, nossa empatia e nosso auxílio. Se ela já sente remorso pelo que fez, não caiamos na tentação cruel de agravar ainda mais o seu remorso, repisando no mal que ela cometeu. O Espírito de Deus é Quem convence do pecado, da justiça e do juízo. Não queiramos tomar o lugar de Deus em guiar a consciência alheia e nem sejamos acusadores de nossos irmãos. E se a pessoa não se arrepende e nem sente remorso alguma, nada nos resta a fazer, a não declarar a verdade, quando isto nos couber. Não cabe a nós provocar nela o arrependimento com palavras de condenação. Peçamos a Deus por ela; que, algum dia, a consciência do que é bom e verdadeiro pela Palavra do Senhor seja implantada nela e assim haja reconhecimento dos males.
Quanto a nós, olhemos, cada um de nós, para nossos próprios atos, como diz o Salmo: "Porque eu confessarei a minha iniqüidade; afligir-me-ei por causa do meu pecado. (...) Apressa-Te em meu auxílio, Senhor, minha salvação" (Salmo 38). Amém.
Lições: Salmo 38; Mateus 26: 14-16; 31-35; 69-75;  27:1-10.
Arcanos Celestes 9118.