A Arca de Deus é Tomada de Israel

Sermão pelo Rev. Cristóvão R. Nobre

" Então pelejaram os filisteus, e Israel foi ferido, e fugiram cada um para a sua tenda; e foi tão grande o estrago, que caíram de Israel trinta mil homens de pé. E foi  tomada a arca de Deus; e os dois filhos de Eli, Hofni e Finéias, morreram"
I Sam. 4:l0,ll.

Da história de Israel, na série que até aqui estudamos, os eventos aqui narrados constituem um dos piores momentos, talvez o mais infeliz, para aquele povo. Afligidos por antigos opressores, foram duramente batidos em combate, caíram em servidão de vinte anos, perderam sua casa sacerdotal e, o que era mais grave, foi-lhes arrebatado o que tinham de mais precioso: a arca de Deus.
Obviamente, estes são relatos que nos foram dados por uma razão mais importante do que a de meramente conhecer a história de um povo antigo. São para que nos sirvam de espelho, por assim dizer, cuja imagem nos dará conhecimento de estados de nossa regeneração. E, alertados quanto aos riscos que poderemos enfrentar, possamos caminhar seguros nessa senda espiritual. Porquanto os fatos narrados aqui, como sabemos, tratam não da nação israelita, mas de coisas da igreja no homem, o seu estabelecimento e o seu progresso. Pelas Doutrinas Celestes, sabemos que " todas as nações da terra de Canaã representavam heresias confirmatórias ou de falsidades da fé ou de males do amor, enquanto os filhos de Israel representavam as verdades da fé e os bens do amor e assim a Igreja"  (AE 8l7:7).
Os filisteus habitavam a região litorânea de Canaã. Embora fossem um povo pequeno, não foram vencidos por Israel na época das conquistas. Antes, pelo contrário, permaneceram lá e se tornaram no inimigo mais perigoso e mais pertinaz aos israelitas, chegando até a dominar a Israel em pelo menos quatro diferentes ocasiões.
Como ocorreu com as outras nações, a Filístia representava certos males e falsidades que o homem deve combater e remover no processo da regeneração. Que os filisteus tenham permanecido tanto tempo na terra é porque o mal que representavam continua, de fato, tenazmente infestando o fiel por muito tempo, em sua regeneração.
Na Igreja Antiga, era costume chamar de " filisteus"  àqueles que muito falavam sobre a fé mas não ligavam tanto para a vida (AC 1198). Nos tempos ainda mais antigos, os filisteus tiveram, no entanto, uma significação boa: representavam a ciência dos conhecimentos, coisa evidentemente muito necessária à racionalidade humana (ver AC 1197). Eram, então, dignos participantes da Igreja Antiga (AC l238), 9340). Mas, no decorrer do tempo, eles foram se confirmando cada vez mais nessa ciência e sem preocupação em associá-la aos bens, isto é, em pô-la em prática, na vida. Assim, na falta de um bem correspondente, seus muitos conhecimentos se ligaram a outros amores, os do próprio, que são o de si e o do mundo. Assim perverteram os conhecimentos do vero, a fim de desculpar seus males, e, como conseqüência, esses conhecimentos se transformaram em falsidades do mal. Por isso os filisteus passaram a ter a significação genérica e negativa de fé só, ou seja, fé separada da caridade. Como resultado, cessou todo amor e toda vida espiritual, e eles se tornaram homens meramente naturais que, mesmo de posse dos conhecimentos da fé, desculpam as cobiças impuras dizendo que são " fraquezas da carne" , que não condenam aquele que tem a fé.
Na condição de filisteu espiritual, o homem se contenta em meramente possuir os conhecimentos da fé; mas, sem a purificação dos males, esses conhecimentos são manchados e corrompidos. Esse tipo de fé dissociada " expulsa o bem da caridade dizem os Escritos e quando esse bem é expulso, o mal do amor de si e do mundo ocupa seu lugar, e se liga àquela fé. Por isso, quando o amor espiritual, que é a caridade, é separado, a fé se conjunta ao amor de si e do mundo, que é o amor dominante no homem natural"  (AE 8l7). O homem então " está destituído de amor espiritual, e está apenas no amor natural, e com esse amor nenhum princípio religioso pode-se ligar, e muito menos alguma coisa da igreja, porque todo princípio religioso e toda coisa da igreja têm relação ao Divino, ao céu e a vida espiritual., e estes não podem se conjuntar com outro amor e não ser o amor espiritual"  (Ibid.)
Em linhas gerais, assim sucede com o homem que entra nesse estado filisteu: lº) dá importância mais aos conhecimentos da fé do que à vida; 2º) negligencia a caridade, cuja primeira coisa é afastar os males como pecados; 3º) sem encontrar resistência, os males dominam e a caridade se extingue; e, por fim, os males imperam mais e mais, à medida em que são escondidos ou desculpados pelos conhecimentos da verdade que então passam a ser, de fato, falsidades do mal.
Vemos assim que é o cristão, isto é, aquele que possui os conhecimentos da fé, que está, mais do que qualquer outro, sujeito a cair nesse estado espiritual. A mensagem interior desse relato da guerra entre israelitas e filisteus é, portanto, dirigida a nós. Pois, como nos ensinam as Doutrinas, o filisteu espiritual está na igreja e é todo aquele que ama viver uma vida natural (AE 8l7). Todo fiel está sujeito a estados de frieza e obscuridade espiritual, e, por conseqüência, a daí prosseguir e cair nesse outro estado, o filisteu, de indulgência para com seus erros, a despeito do que sabe das verdades. " Os filisteus aprendem os conhecimentos da fé e os retêm na memória somente com a finalidade de conhecê-los. Assim, só podem é perverter esses conhecimentos por meio de raciocínio por esses mesmos conhecimentos e assim formarem par si falsas doutrinas" .
Lemos em I Sam. 4: " E os filisteus se dispuseram em ordem de batalha, para sair ao encontro de Israel; e, estendendo-se a peleja, Israel foi ferido diante dos filisteus, porque feriram na batalha, no campo, uns quatro mil homens"  (vers.2). E, no Apocalipse Explicado: " Todas as guerras que os filhos de Israel travaram com os filisteus representam combates do homem espiritual com o homem natural, e daí também os combates da verdade conjunta ao bem contra a verdade separada do bem, qual verdade em si não é verdade, mas falsidade"  (AE. 817:6). A derrota de Israel é, pois, a derrota do homem quando se entrega ao império de seus males. Abraçando o mal, o homem é derrotado juntamente com o seu mal, e se separa do bem.
" E tornando o povo ao arraial, disseram os anciãos de Israel: Por que nos feriu o Senhor hoje diante dos filisteus? Tragamos de Siló a arca do concerto do Senhor, e venha no meio de nós, par que nos livre da mão de nossos inimigos. Enviou, pois, o povo a Siló, e trouxeram de lá a arca do concerto do Senhor dos Exércitos, que habita os querubins; e os dois filhos de Eli, Hofni e Finéias, estavam ali com a arca do concerto de Deus"
A fé separada da caridade é morta e inoperante. Não pode oferecer qualquer resistência ao mal, pois está agregada ao mal. Este é o estado característico do filisteu. No entanto, a própria nação israelita se achava nesse estado, tinha-se igualado ao filisteu. Estava nesse estado devido aos seus próprios males, mas, também, aos males dos seus sacerdotes. A nação havia se desviado do culto de JEHOVAH para o culto a outros deuses. Estava apegada ao seu mal. Como poderia, pois, vencer o mal? Mas tinham a arca, a força como supunham e assim só poderiam vencer. É como o homem que, mesmo sem deixar seus pecados, acredita que a posse de verdades da Palavra ser-lhe-á de alguma forma útil para sua proteção. É uma fé fantasiosa em algo miraculoso. Há uma condição inaceitável de mistura de verdades com os males, como se vê pelo texto, quando é dito que " Hofni e Finéias"  (os males) estavam ali com a arca do concerto de Deus"  (a Divina Verdade).
O Senhor só pode operar a salvação do homem se o homem sinceramente se dispuser a agir como por si mesmo, afastando os males como pecados, segundo o que vai aprendendo da Palavra. Sem isto, a Palavra com ele não tem ação, ainda que o homem saiba uma imensidade de coisas dali. Pela Palavra o Senhor está presente com o homem pois o Senhor jamais se afasta de alguém mas não conjunto ao homem. Então, para o homem, parece que o Senhor se afastou.
A persuasão do filisteu, de que se é salvo pela fé independente das obras que se pratica, é mais visível e mais veemente nos que são das seitas protestantes. Contudo, ainda que achemos essa crença absurda, nós mesmos podemos cair inconscientemente no erro de exibir uma semelhante confiança em nossa fé, baseando-nos na quantidade ou qualidade de veros que aprendemos da Palavra. Quem possui os conhecimentos do sentido interno pode se deixar levar por uma falsa segurança ou pelo orgulho, devido a uma familiaridade que adquire com as matérias relativas às coisas espirituais. Como foi dito, o filisteu infesta o homem da Igreja durante muito tempo, até que o Senhor reine plenamente em sua nova vida.
Existe, por exemplo, o risco de acharmos que a vida cristã verdadeira é muito idealística e inatingível, e que é muito difícil ser regenerado. Com isso talvez estejamos, sem perceber, tecendo um manto de desculpas e falsas razões para cobrir e acomodar males que temos e que deviam, antes, ser descobertos e expelidos. Mas é comum o cristão não expulsar os males e, na hora da angústia, lembrar-se de Deus e só então correr para Ele em busca de auxílio. E pensa que será atendido, e que Deus não olhará para os seus males, pois todos os homens são fracos, e erram mesmo... " Então pelejaram os filisteus, e Israel foi ferido ... e foi tão grande o estrago, que caíram de Israel trinta mil homens de pé. E foi tomada a arca de Deus; e os filhos de Eli, Hofni e Finéias, morreram" . Enquanto permanecer filisteu espiritual, o homem será sempre derrotado e assolado pelas aflições, por mais confiança que deposite nas verdades que aprendeu. O povo de Israel, mesmo tendo a arca, não pôde vencer. E ficaram perplexos: " Por que nos feriu o Senhor hoje diante dos filisteus?"  Souberam atribuir a Deus a causa de sua desgraça, mas não souberam esquadrinhar os seus atos a fim de ver se haviam feito mal aos olhos do Senhor, e onde se afastaram dEle.
O fato é que os israelitas haviam deixado o culto a JEHOVAH e se desviado para outros deuses. Lemos no cap. 7 vers. 3, que Samuel lhes disse, passados vinte anos de servidão: " Tirai dentre vós os deuses estranhos, e os astarotes" . Na luta, quiseram a força do Senhor, mas não pensaram em deixar os pecados. Permitiam em seu meio a presença do mal, abertamente, por permitirem que ali estivessem Hofni e Finéias, como se a vida deles em nada ofendesse a Deus. Por isso foram derrotados, e perderam a arca do concerto com Deus. Pois esse concerto implica numa reciprocidade do homem para com Deus: o homem estando em Deus e Deus no homem, para que o homem tenha a vida. Não receberam o poder; mas a arca jamais deixou de ter tal poder, e tão pouco o Senhor mudou para com  Israel. Mas a aparência de que o Senhor se afasta e de que a Palavra não opera foi mostrada no fato de a arca ser tomada deles. " Icabod, foi-se a glória de Israel" .
Como pode um homem que, mesmo conhecendo os preceitos Divinos, negligencia a vida de caridade, o afastamento dos males, como pode ele enfrentar os males e ser vencedor? Se nos associamos ao mal, não poderemos receber poder contra o mal. Se o cristão se iguala aos ímpios, como pode ter autoridade para falar contra a impiedade? para um tal cristão, o poder que antes lhe vinha da Palavra, a arca de sua força espiritual, é perdido. Mas não absolutamente porque a arca tenha menos poder de salvar, e sim porque o estado do homem é tal que ele se torna incapaz de receber esse poder. A arca é uma aliança, mas quando essa aliança é quebrada pelo homem, a força espiritual lhe foge do alcance. É então que, na aflição, o homem clama a Deus, mas inutilmente, como vãs foram as lamentações de Israel após a derrota. É como está nos Profetas (Hab. l:2): " Até quando, Senhor, clamarei eu, e Tu não me escutarás? gritarei: Violência! e não salvarás?"  E no Salmo (66:l8): " Se eu atender a iniquidade no meu coração, o Senhor não me ouvirá" .
Havia uma coisa em Israel que impediu a operação do poder Divino. O povo que se dizia de JEHOVAH havia se apegado aos deuses estranhos, astarotes e baalins. Esses dois gêneros de deuses significam os amores naturais que dominam o homem, o amor de si e o amor do mundo.
Toda a história do massacre e da perda da arca que Israel sofreu é, no sentido interno, a história do homem da Igreja quando se acomoda a esses dois amores e, por conseqüência, se desvia do culto pelo bem e pela verdade para o culto pelo mal e pelo falso da fé. Vinte anos mais tarde, cansada de servir aos filisteus, a nação israelita deu ouvidos à instrução Divina, e deixou os astarotes e baalins, que a tinham lançado naquela condição miserável.
Assim aprendemos que, se viermos em semelhante estado de frieza e escuridão espiritual e assim nos arriscando a cair no estado filisteu, de desculpar os males pelas falsidades, devemos então nos voltar para a Palavra de Deus e ali procurar, diligentemente, através de meditação e de auto-exame, sondando as nossas almas e corações, procurar, assim, ver o que em nós tem nos impedido de exercer lealmente as funções de nossa vida espiritual. Sondando nosso interior, talvez venhamos a reconhecer nossos astarotes e baalins, ou seja, tudo aquilo que pertence à vida natural e que tem obtido demasiada importância em nossa vida, a ponto de o desejarmos acima de tudo, nos impedindo de ter uma aproximação maior de Deus.
Tudo o que desejamos, tudo a que damos excessivo valor, tudo o que buscamos com mais empenho e interesse, isto é o que amamos acima de todas as coisas, e é a isso que prestamos o nosso culto, qualquer coisa que isso seja: nosso eu, nossos bens, nossa casa, nossos filhos, nossa profissão , nossos negócios, nosso cônjuge, enfim, qualquer coisa pode se tornar um deus estranho, se nos impede de sermos fiéis para com o Senhor. " Não terás outros deuses diante de Mim" , diz o Senhor nosso Deus. No Israel antigo, esses outros deuses eram facilmente identificáveis, pois eram ídolos externos. Mas hoje, conosco, membros de uma Igreja espiritual, esses deuses estranhos assumem formas mais complexas e ocultas, pois são ídolos interiores, e só se manifestam quando examinamos a qualidade de nossos amores naturais. Esses, astarotes e baalins, são tudo aquilo que nos têm privado, com nossa complacência, de levar a verdadeira vida de caridade e piedade.
Amando primeiramente as coisas de nossa vida natural, e só depois as coisas da vida espiritual, certamente estaremos numa ordem invertida. Um salmo (l27) nos exorta: " Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam. Se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela. Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão de dores, pois assim dá Ele aos seus amados o sono"  (v.l,2).
Sempre que nos aplicarmos à Palavra com um propósito sincero de servir fielmente ao Senhor, ela nos iluminará e nos guiará a consciência para uma vida de lutas, sim, mas também de vitórias, sob a liderança e sob a proteção do Senhor, que então realmente combaterá por nós.
O Senhor nos chamou para sermos vitoriosos em nossa vida espiritual.
Ele quer nos dar poder par resistirmos evencermos os inimigos de nossas almas. Saibamos, pois, ir à Palavra do Senhor e por ela caminhar a cada dia. " Se com todo o vosso coração vos converterdes ao Senhor, tirai dentre vós os deuses estranhos e os astarotes, e preparai o vosso coração ao Senhor, e servi a Ele só, e vos livrará da mão dos filisteus" . Amém.

Lições: I Sam. 4; 7:l-6. A.E. 8l7, partes.
Consultas: " Correspondences of Canaan" , de C. Th.Odhner e " The Helper" , 1921