Apropriação do bem e do mal

Sermão pelo Rev. Cristóvão R. Nobre

"E outro de seus discípulos lhe disse: Senhor, permite-me que primeiramente vá sepultar meu pai. Jesus, porém, disse-lhe: Segue-me, e deixa os mortos sepultar os seus mortos."(Mt. 8:21,22)  "O ponto principal da inteligência dos anjos é saber e perceber que toda vida provém do Senhor..." (AC 4318)

O que se chama vida, as Doutrinas Celestes, descrevem, em termos simples, como um influxo de luz e calor espirituais vindo do Sol dos céus, que é o Senhor Deus Jesus Cristo, em Seu Divino Humano. O calor desse Sol é o Divino Amor para com toda a raça humana, e a luz é a Divina Sabedoria com que o amor se reveste.
Os anjos dos céus mais altos, chamados anjos celestes, são os primeiros a receberem em suas almas o influxo do Amor e Sabedoria Divinos, e em seus corpos o calor e a luz correspondentes. Suas vontades são como vasos que foram acomodados a serem cheios dos sentimentos verdadeiramente humanos provenientes de Deus, a saber, misericórdia, compaixão, a confiança, a alegria, a benignidade e tantos outros. Daí lhes vem toda sabedoria. Por causa dessa completa recepção do Divino, numa bem-aventurança e numa luminosidade máximas, e por isso numa esfera de vida superior.
Os anjos chamados espirituais são os que recebem o influxo Divino do amor com menor intensidade do que de sabedoria. Nestes, a recepção da vida se dá sobretudo pela sua inteligência e só então pelas afeições. A esfera de vida em que estão ainda é intensa, mas num grau inferior ao dos anjos celestes.
O influxo Divino, continuando sua descida, é recebido pelos anjos naturais, que habitam os céus mais baixos. Esses anjos são os que na vida do mundo praticaram o bem mais por uma questão de obediência à religião do que por uma convicção real, e não cuidaram muito da instrução espiritual. Mas, considerando que temeram ao Senhor e afastaram-se do mal, estão numa vida feliz e numa esfera inferior dos céus.
Os anjos celestes estão interiormente associados aos anjos espirituais, comunicando-se com os íntimos e os superiores das mentes destes. E os espirituais estão interiormente associados aos anjos naturais. Por conseguinte,  tudo o que os anjos celestes, superiores, fazem e falam entre si, isto vem como influxo correspondencial e atua nos anjos espirituais, imediatamente inferiores, sendo recebido por eles como idéias e afeições correspondentes aos sentimentos e aos assuntos dos anjos acima deles.
Assim, a vida Divina, ao influir no anjo superior, é recebida em sua alma como vontade e entendimento; manifesta-se nele em forma de palavras e ações, e estas, pelas correspondências, influem nos íntimos das mentes dos anjos imediatamente inferiores, como o pensamento e a vontade destes e assim sucessivamente. É assim que a vida Divina influi e desce através dos céus destes em forma de amor e sabedoria angélica, de anjo para anjo, cada um recebendo e moldando conforme o caráter de sua recepção, e cada um transferindo o influxo aos associados seguintes.
Como as operações Divinas são mais claras e manifestas lá, por isso os anjos sabem e percebem que tudo o que eles pensam e desejam, não vêm de dentro deles mesmos, mas da vida e da inteligência de anjos superiores que estão associados às almas deles.
Além dos anjos, há ainda, na esfera espiritual, pessoas que desenvolveram, na vida do mundo, um caráter celeste ou espiritual, ou seja, de amor ao bem ou à verdade, e por isso estão sendo preparadas para um dos céus. São chamadas, nesse estágio, de bons espíritos, mas  serão chamadas anjos num dos céus. Essas pessoas saíram mais recentemente do mundo e por isso estão mais próximas a nós. Elas constituem, portanto, a associação mais próxima a nossas mentes e corações. Assim, o que estes bons espíritos falam e fazem, nós sentimos como afeições e idéias em nossa vontade e nosso pensamento.
Portanto, o que nos chega do mundo espiritual como vida é o influxo de calor que nós recebemos como ânimo na vontade, e de luz ou capacidade de pensar e entender. Sentimos como se essas coisas nos pertencessem, porque parecem brotar de dentro de nós, mas de fato elas nos vêm do mundo dos espíritos, que por sua vez recebe dos céu inferior, este do céu médio, este do céu superior e este, do Senhor. Esta cadeia contínua de influxo é a vida procedendo incessante e ininterruptamente do Senhor a toda criatura humana e a todo universo. E é por esta simples razão, que não podemos interromper, nem por um momento sequer, o fluxo contínuo de pensamentos e de desejos em nossos íntimos.
Mas existem também os planos da existência espiritual inferior, chamados de infernos, que fazem oposição aos três céus. O influxo do Divino desce e chega também a esses planos infernais por uma razão: que Deus, cuja essência é o Amor, não pode deixar de amar, e por conseqüência não pode deixar de influir com o amor e a sabedoria até nos seres infernais. No entanto, estes recebem a vida Divina e a pervertem. Eles transformam em ódio todo amor que recebem, retribuindo com o mal o bem. E mudam em fantasias a verdade em que são instruídos. Eles  pervertem o influxo, porque o concentram em si próprios, ao invés de transferirem aos outros o bem e a verdade que recebem. Assim se tornam cada vez mais egoístas e desumanos. Por isso, estão em infernos cada vez mais profundos, conforme o grau de perversão da vida Divina original.
"Que os maus recebam a vida que vem do Senhor, dá-se como com os objetos no mundo: todos recebem a luz do sol e assim as cores, mas conforme suas formas. Objetos que sufocam e pervertem a luz aparecem opacos... mas mesmo assim têm sua opacidade derivada da luz do sol. Assim é com a luz ou vida do Senhor com os maus. Esta vida, porém, não se chama vida, mas morte espiritual" (4320).
A pessoa não pode querer se associar, por se mesma, a algum anjo, nem invocar a presença de anjos, mesmo que por uma boa razão, porque ela desconhece a natureza das próprias afeições e a ordem do influxo espiritual. É o Senhor, somente, quem faz isso, quem associa à pessoa os bons espíritos que são mais adequados às suas afeições.
Mas, o homem, por causa do livre-arbítrio, associa-se, por si mesmo, a espíritos infernais que estão no mal e na falsidade semelhantes aos que estão nele. O homem, quando escolhe o mal e a falsidade, está, na realidade, associando-se a seres de quem receberá um influxo constante desses males e falsidades. Num esforço, porém, de abrandar e enfraquecer as forças infernais que o próprio homem busca, o Senhor designa anjos ou bons espíritos para acompanharem o homem e o protegerem, associando assim ao homem seres através dos quais Ele poderá influir com bem e a verdade. Resulta daí que o homem estará sempre em equilíbrio de forças, sempre em liberdade de escolher, e, por esta razão, enquanto viver neste mundo, estará sempre com oportunidade de desistir do mal e voltar-se para Deus.
Nenhuma criatura pode, jamais, estar fora dessa cadeia de influxo universal com seres espirituais, pois é assim que todos recebem a vida do Criador. Não obstante, cada pessoa é livre, absolutamente livre, para escolher o tipo de associação que mais desejar.
O valor de sabermos a respeito dessa admirável ligação espiritual reside no fato de assim podermos evitar o erro de atribuir a nós mesmos o bem e o mal. Nós não somos fonte do bem, pois não pode haver senão uma fonte de vida, o Senhor, pelo que é dito que só Ele é bom. Nem sequer os infernos são uma fonte de mal, porque eles não podem criar coisa alguma: os infernos são apenas um reflexo pervertido e deturpado do bem e da sabedoria que tinham fluído da fonte Divina e única de vida. Pois só Deus é e existe por Si mesmo, enquanto todas as outras criaturas não são nem existem senão por Ele.
Sendo assim, se algum bem fazemos, este bem é somente resultado de um influxo celeste que foi recebido convenientemente por nós e aplicado. Somos meros instrumentos de Deus, ou vasos. Nem mesmo os anjos atribuem o bem a si próprios, mas atribuem ao Senhor. A Ele cabe, pois, toda honra e toda glória.
Quem acha que pode fazer alguma por si mesmo, quem atribui a si mesmo alguma bondade, alguma boa disposição, ou boa vontade ou  força em alguma coisa útil que porventura realiza, é involuído espiritualmente. Quem se vangloria e elogia a si próprio por suas boas qualidades e virtudes não passa de um ignorante e cego para as coisas Divinas. Quando o indivíduo pratica o bem e acha que este bem foi feito por ele mesmo, não há como não desejar honra e louvor pelo que fez, e por isso crê que merece o céu e lá galardões. Assim, ele torna esse bem meritório e o contamina. E visto que se considera cheio de bondade, o Senhor não pode mais dar a ele o bem genuíno e verdadeiro. Por outro lado, quanto mais uma pessoa se esvazia de si mesmo, mais o Senhor a enche com a vida plena do amor e da sabedoria. Quanto mais vazio estiver um vaso, mais ele pode caber e ser cheio.
Outra face desse mesmo erro é a pessoa atribuir a si mesma os pensamentos maus que lhe ocorrem e os desejos maus que a inflamam. De fatos, os pensamentos e as cobiças não são outra coisa senão uma exalação infernal que os infernos lhe fazem chegar. São como pratos de alimento imundo que os infernos prepararam usando ingredientes nobre do influxo Divino. Tanto quanto a pessoa recebe aceita na vontade os desejos do mau, mais ela se faz semelhante aos espíritos infernais e mais estará, a cada momento, adquirindo um caráter semelhante ao deles, fazendo com eles sua eterna morada.
Há ainda situações em que a pessoa sente os influxos de pensamentos torpes e desejos infernais, não aceita e os repele de si, mas, mesmo assim, se condena e se entristece, acreditando que foi ela quem os pensou e os criou. Todavia, tanto quanto a pessoa não comungou com tais influxos infernais, e tanto quanto ela recusou-se a dar trela a eles em seus pensamentos e sua vontade, ela não deve de algum se condenar, porque foram os infernos nela que fizeram isso. Ela não tem culpa, mas os infernos desejam que ela creia que é culpada.
É aqui, pois, que se aplica a ordem que o Senhor deu àquele moço que queria segui-Lo, mas desejava antes sepultar o pai: "Deixa os mortos sepultarem os seus mortos". Os "mortos" aqui são as coisas infernais do próprio, representado pelo "pai" do indivíduo. Isto quer dizer que  devemos atribuir os males aos infernos, devolver aos infernos o que é dos infernos. Tudo o que é mal e falso pertencem aos infernais e devem retornar para lá. Assim, tão logo percebemos a insinuação infernal do falso no pensamento, o ardor da cobiça do mal na vontade, devemos nos lembrar do que o Senhor disse, e expulsar todas essas insinuações mortais para os infernos, o lugar  de onde vieram. Se não fizermos assim, estaremos compartilhando dos prazeres infernais e seremos condenados por crimes espirituais que não eram, de fato, para serem nossos, mas dos  quais nos apropriamos, conscientemente ou enganados pelos demônios.
Saber essas coisas é, como foi dito, o ponto principal da sabedoria dos anjos, e por isso deve ser também a doutrina a ser exercitada pelo membro da Igreja. Nós lemos nos Escritos que: "Se o homem cresse, como é a verdade, que todo bem vem do Senhor e todo mal vem dos infernos, ele não se apropriaria do mal, fazendo-se condenável por causa dele, nem se atribuiria o bem, tornando-o meritório". Os anjos são sábios porque fazem isso.
Quando a pessoa não atribui a si nem o mal nem o bem, poder-se-ia pensar que ela se anula e perde sua identidade. Mas não é assim, porque, quando a pessoa não se atribui o mal, mas o rejeita, ela se torna inocente do mal e remida. E quando igualmente não se atribui o bem, por ser do Senhor, ela se esvazia de seu ego, e então o Senhor pode enche-la de todo bem e toda verdade. Pois o amor do Senhor quer atribuir, Ele mesmo, o bem e a felicidade verdadeiros a toda criatura, e quer que ela usufrua deles como se fossem seus.  Realmente, toda felicidade angélica está no uso, no gozo e no prazer dos bens do Senhor como se fossem seus, e não na posse de tais bens.
Eis aí, então, a plena realização humana, porque então se usufrui de toda a capacidade de amar, saber e realizar todos os seus intentos, que serão o de prestar usos ao Senhor, ao próximo e a si mesmo, com toda inteligência e toda potência. E a vida Divina, isto é, o amor e a sabedoria, serão os princípios ativos que impulsionarão e encherão as almas dessa plenitude de vida. Amém.

Lições:
AC 4319, 4320 (partes)

AC 4319, 4320 (partes) "Tem sido mostrado freqüentemente a espíritos que, na vida do corpo, tinham-se confirmado na crença de todas as coisas estavam neles mesmos, ou seja, que eles pensam, falam e agem por si mesmos e suas almas, no que a vida parece ser implantada. Também foi mostrado por experiência viva (..) que os maus pensam, querem e agem pelos infernos, e os bons pelo céu, isto é, do Senhor pelo céu. E entretanto, ambos o bem e o mal, parecem vir da pessoa mesma. Os cristãos sabem isto pela doutrina que tiram da Palavra, que os males vêm do diabo e os bens vêm do Senhor, mas são poucos os que acreditam nisso. E como não acreditam, eles se apropriam dos males que pensam, querem e praticam, mas os bens não lhes são apropriados; pois aqueles que crêem que os bens vêm deles mesmos, dizem e atribuem o bem a si próprios, e põem o mérito neles... (4319).
"Que a vida que vem do Senhor, só, pareça estar com cada um como se fosse sua; isto se deve ao amor ou misericórdia do Senhor para com toda a raça humana, pois Ele quer apropriar o que é Seu mesmo a cada um, e dar a cada um a felicidade eterna. É sabido que o amor dá a outrem o que lhe pertence e assim se faz presente no outro. E quanto mais o Divino amor!
"Que os maus recebam a vida que vem do Senhor, dá-se como com os objetos no mundo: todos recebem a luz do sol e assim as cores, mas conforme suas formas. Objetos que sufocam e pervertem a luz aparecem opacos... mas mesmo assim têm sua opacidade derivada da luz do sol. Assim é com a luz ou vida do Senhor com os maus. Esta vida, porém, não se chama vida, mas morte espiritual" (4320).