A Alegria do Céu

Sermão pelo Rev. Cristovão R. Nobre

"Bem-Aventurados os que habitam em Tua casa; louvar-te-ão continuamente"
Salmo 84:4

Ao expressar o desejo de habitar no tabernáculo e nos átrios do Senhor, o salmista exprime, na linguagem do sentido espiritual, a esperança e o anseio da alma pela vida no céu. Este versículo fala da felicidade perenal dos que lá habitam mas também associa essa felicidade com alguma coisa ativa que ali eles fazem: "Louvar-te-ão continuamente".
Os "átrios" e a "casa do Senhor", na Palavra, são, respectivamente, a igreja e o céu, pois se sabe que ambos compõem, juntamente, o reino do Senhor. E, para o cristão fiel, a igreja é o princípio de seu céu, na terra.
Toda pessoa crédula deseja ir para o céu. É um desejo, porém, que difere de pessoa para pessoa, procedendo de várias razões. O mais comum é que se deseje ir ao céu como única alternativa possível de não ser lançado no inferno. É, por conseguinte, mais um temor do sofrimento eterno do que, realmente, um desejo pelo céu. Pois, colocadas as coisas nesses termos, quem não desejaria o céu, para escapar de tão temível castigo?
Outra motivação comum do desejo pelo céu é a que se liga a uma cobiça do mérito ou do galardão. Há os que desejam o céu crendo que já o têm merecido, por causa de sua fé na imputação do mérito de Cristo, isto é, que Deus Filho já teria pago ao Deus Pai o preço de sangue para a entrada deles no céu, de sorte que, firmados nessa crença, têm por garantido o seu lugar no céu, e disso falam com certeza, e até com um certo orgulho.
Outros desejam o céu como recompensa certa e devida por terem vivido na prática dos ensinamentos religiosos. Esses também firmam sua confiança mais em si mesmos e em seus bons feitos do que na Misericórdia Divina, e se considerariam injustiçados se não alcançassem o céu.
O fato é que predomina uma ignorância geral a respeito da vida celeste. As pessoas perderam completamente a noção das coisas interiores, do espírito, e, não distinguindo entre estas e as naturais, elas as confundem, e por umas querem julgar e conhecer as outras. Como lemos no C.I. (4l2): "Não sabem o que é a alegria celeste e qual a sua qualidade; dela somente formaram uma idéia pelas alegrias e prazeres corporais e mundanos". Em conseqüência, formam sobre o céu concepções que são presas à idéia das coisas corporais e seus prazeres. Por exemplo: os que acham que o trabalho é um castigo e se entregam à preguiça crêem que a vida eterna será um repouso, uma quietude tranqüila, para não dizer uma eterna ociosidade. Outros crêem que será uma vida de incessantes cânticos, orações e louvores diante do trono Divino. Outros, que será uma vida de delícias do corpo e dos sentidos, em paraísos e jardins. Outros, ainda, pensam que será uma vida em que os escolhidos estarão assentados, com coroas, reinando com o Cristo, cada um recebendo honra conforme o galardão alcançado...
Mas o engano que é comum a todas as fantasias é que o céu é um determinado lugar; o por isso acham que ir para o céu é somente entrar naquele lugar. Tanto é que, na crença popular, o céu é freqüentemente figurado como uma simples porta ou portão entre as nuvens, para onde se é dirigido após a morte.
É normal que nós sejamos induzidos ao engano de pensar nas coisas espirituais segundo as concepções dos sentidos. É por isso que precisamos ser sempre instruídos acerca das coisas superiores, a fim de que não nos percamos nas idéias que nos entram do mundo. Pois, se um dia nós nos propomos a trilhar o caminho do céu, nada mais razoável do que procurar saber claramente como é o céu e qual poderá ser o nosso estado lá. E quando buscamos na Palavra a resposta para essa indagações, a escuridão começa a ser desfeita. Assim, podemos adquirir idéias claras e razões apropriadas, por onde podemos cultivar uma afeição mais elevada, genuína, pelo céu. Conhecendo aquilo que almejamos, poderemos dizer com sinceridade: "A minha alma anelante desfalece pelos átrios do Senhor".?
Sabe-se que o céu é sobretudo um estado de espírito. Em Lucas 17:21, o Senhor disse: "Eis que o reino de Deus está dentro de vós". Está em nosso espírito, nas idéias e afeições espirituais. O céu é chamado "tabernáculo" ou "casa" por causa do uso da habitação. O Senhor habita nos bens e verdades que estão nos anjos. E como o céu é constituido só de bens e verdades, daí ser dito que o Senhor habita nos céus. O céu está, portanto, nos íntimos dos anjos, pois é aí que estão os bens e verdades que o compõem.
As coisas existentes no mundo natural não dependem do estado de nossos interiores. Mas no céu é diferente: tudo o que lá existe em torno do anjo é um resultado ou correspondência direta do interior desse anjo ou de uma sociedade de anjos. Por isso, o estado interior de amor neles faz existir, por exemplo, montanhas à sua volta, pois as montanhas correspondem ao amor; seu estado de inocência faz aparecer rebanhos de ovelhas e cordeiros, correspondentes à inocência; e assim se dá com todas as coisas que lá aparecem. Ora, como os interiores dos anjos estão repletos do amor ao Senhor e ao próximo, e das boas afeições provenientes daí, por isso, à volta deles se apresentam coisas tão belas e tão agradáveis à vista que ninguém neste mundo natural pode sequer imaginar. Assim podemos compreender como é que o céu está principalmente nos íntimos deles, e só está nos externos como resultado ou correspondência desses íntimos. É o mesmo que dizer que o céu é um estado e, em decorrência disso, um lugar, enquanto o mundo material é um lugar até certo ponto independente do estado interior de seus habitantes.
Quanto à felicidade do céu, isto pode ser conhecido de algum modo quando se sabe que todo prazer nasce de um amor. Não existe prazer que venha de outra parte. É pelos prazeres que o amor se manifesta (Am.Con.18). Ora, já que o céu é um estado de amor real, logo, os prazeres do céu são todos provenientes desse amor, sendo, portanto, os prazeres dos usos prestados ao Senhor e ao próximo. Esses prazeres, tomados em conjunto, fazem a felicidade e a alegria celeste. O livro AMOR CONJUGAL (5) assim define o prazer do céu: "É o prazer de fazer alguma coisa que seja útil a si mesmo e aos outros; e o prazer do uso tira do amor a sua essência, e da sabedoria a sua existência; ...[esse prazer] é a alma e a vida de todas as alegrias celestes".
O amor e a sabedoria só se realizam através de alguma coisa últil, que tenha um uso bom. Visto que no céu os anjos estão no amor e na sabedoria genuínos, daí se vê que no céu existe uma variedade imensa de usos aos quais os anjos se aplicam e nos quais eles acham os seus prazeres. É mesmo dito que o reino dos céus é o reino dos usos. Assim, os usos ou as ocupações ali são das mais diversas. Há negócios públicos e domésticos, civis e eclesiásticos; há cargos administrativos, jurídicos e de direção; há ocupações necessárias ao funcionamento de prédios públicos, templos, escolas, bibliotecas, casas e palácios; há vilas e cidades. E tudo lá é muito mais variado e mais perfeito do que aqui. A escrita, por exemplo, bem como a arte literária, é tão rica e encerra idéias tão profundas que o homem jamais poderia supor (CI 258-264). A arquitetura, lá, está em sua arte mesma (CI l85). O ensino às crianças e aos recém-chegados é ministrado com tanto zelo e tanta empatia que causa admiração. (CI 335). Nos templos, as prédicas "são feitas com tal sabedoria, que não é possível compará-las com as que se fazem no mundo" (CI 223). Daí haver, evidentemente, a necessidade de executores desses ofícios. Dentre os deveres domésticos, os Escritos nos falam, por exemplo, da tutela das criancinhas recém-chegadas do mundo: os anjos do sexo feminino que aqui amaram ao Senhor e ao mesmo tempo tinham ternura para com todas as crianças, indistintamente, recebem por adoção quantas crianças desejarem; elas lhes são por mães e as crianças como seus filhos, até a idade escolar (CI 332). Há, enfim, deveres diversos, como os dos anjos guardiães que estão com os homens, os que mantêm os infernos sob controle, os que recebem os noviços, e assim por diante.
Essas obras exigem, obviamente, conhecimento, empenho, concentração e dedicação. Os anjos que as executam são homens e mulheres, que levam uma vida semelhante à que viveram no mundo em seus interiores, com a única diferença que, agora, despidos do revestimento material perecível, estão em plena capacidade de cumprir os seus usos. Estão na vida humana ideal e vivificada, mas sempre humana. Por isso, os anjos não desfrutam de poderes anormais ou inumanos, como alguns supõem. Por exemplo: não podem voar; não têm conhecimento do que se passa à grande distância; não dispõem de nenhum poder mágico para resolver suas tarefas. Com efeito, vivem num mundo espiritual absolutamente da mesma maneira que o homem vive no mundo material. O que eles têm de especial, sim, é que gozam de sentidos, inteligência, percepção e afeições mais perfeitos, e podem ser dirigidos pelo poder Divino sem nenhum embaraço. Sendo assim, as ocupações ou funções que desepenham no cumprimento dos seus usos, exigem tal dedicação, que elas lhes extenuam as forças, como as ocupações naturais, pelo que eles também têm necessidade de repouso.
Alguém pode pensar que, havendo assim tantas obrigações, é estranho que haja ainda para eles algum prazer. Mas basta pensar que quando se ama o trabalho que se faz, esse trabalho não é visto como carga, mas, ao contrário, como coisa agradável e que diverte o espírito. Este é o caso dos anjos, pois nada lhes dá mais prazer do que prestar usos em prol do Senhor e do homem. Além disso, eles têm agora um corpo substancial que é leve e dócil, e não são mais tão estorvados, como nós, por um corpo débil e grosseiro. E mais ainda, o prazer para eles nessas funções é ainda mais intenso quando se sabe que em tudo que realizam eles vêem um fim para o bem, vêem a realização dos propósitos Divinos. Em cada obra que executam eles obtêm o sucesso almejado; cada esforço é compensado; todo trabalho é bem sucedido, e eles vêm a ordem sendo estabelecida, o reino de Deus sendo implantado através daquilo que realizam, pois podem ser guiados de muito perto pelo Senhor Mesmo.
Por esses sucessos pode-se imaginar quão grande e profunda é a alegria deles, alegria essa que depois desce e se manifesta em todas as coisas de seu corpo. Numa experiência de Swedenborg a respeito desse prazer celeste de fazer o bem a outrem, ele descreveu: "Observei que eu, quando queria transportar todo o meu prazer a um outro, um prazer mais interior e mais pleno do que antes então influía em seu lugar, continuamente; e quanto mais eu tinha essa vontade, mais esse prazer influia; e percebi que isto procedia do Senhor" (CI 413).
Contudo, não é só no desempenho das funções, que os anjos têm seus prazeres. De fato, eles estão na alegria íntima do amor conjugal, amor que é supremo no ser humano, pois representa e espelha mais de perto o casamento Divino do Bem e da Verdade. Além desses prazeres íntimos, eles estão ainda no contentamento externo que é como um plano em que descem e repousam as alegrias interiores. Lemos, por exemplo, no AMOR CONJUGAL (5): "Há nos céus reuniões muito agradavéis, que alegram a mente dos anjos, divertem seus ânimos, deleitam seus corações e recreiam seus corpos. Mas não as gozam senão depois de terem feito usos em suas funções e em suas obras. Por isso há alma e vida em todas as suas alegrias e em todos os seus divertimentos".
É a uma vida assim, de tais alegrias, que o salmista se referiu ao dizer: "Bem-aventurados os que habitam em tua casa; louvar-te-ão continuamente', porque o louvor significa o culto interno, e o culto interno é aquele que se oferece a Deus através de uma vida de amor e de usos.
O céu é composto, pois, do amor ao Senhor e ao próximo, e daí vem o prazer de ser útil. Esta é a origem da beleza interior e exterior de todos os anjos e de todas as coisas que lá existem. Daí vêm toda alegria e toda felicidade celestes, com a tranqüilidade e a paz que lá se desfruta. Embora não exista lá nenhum interesse de se ser recompensado, não há nenhuma afeição que não traga consigo a recompensa interior do uso.
Por aí se vê como erram aqueles que desejam o céu como recompensa de sua religiosidade ou de seus méritos, ou os que almejam ali receber galardão por causa de sua fé... Vê-se também que, sendo consituído essencialmente de afeições interiores da alma, o céu não existe fora de ninguém que não tenha tais afeições em seu íntimo, pelo que o Senhor disse: "O reino de Deus está dentro de vós". Assim, não é um lugar onde se possa ser admitido ou impedido de entrar. Se o céu não estiver em nosso ínterior, não haverá nenhum lugar onde possamos estar em paz e experimentar o prazer do céu.
Vê-se ainda como se enganam os que esperam no céu uma vida ociosa, porque uma vida inútil acaba se tornando tediosa e tristonha, além de entorpecer a mente e os sentidos. E igualmente erram os que, interpretando literalmente as Escrituras, desejam o céu para se assentarem em tronos e reinarem com Cristo. Esqueceram-se do que o Senhor disse que o Filho do homem veio para servir e não para ser servido. Quem de nós quiser ser o maior, será o serviçal. Ao invés de desejo de dominar, o desejo do céu é o desejo de servir por amor ao próximo e ao Senhor.
Entretanto, esses prazeres, que são tão vivos e tão patentes para os anjos, os que estão na casa de Deus, não são tão perceptíveis para nós, que estamos nos átrios da casa de Deus, ou seja, a igreja. Enquanto vivermos no mundo físico, dificilmente perceberemos e compreenderemos bem a alegria e os prazeres celestes. É o que lemos no C.I.401: "O homem que está no amor para com Deus e no amor para com o próximo, enquanto vive no corpo não sente de um modo manifesto o prazer proveniente deste amores e das boas afeições oriundas daí; mas sente apenas uma bem-aventurança quase imperceptível, porque, oculta em seus interiores, ela é velada pelos exteriores que pertencem a seu corpo, e embotada pelos cuidados do mundo".
Mesmo assim, o homem da igreja pode perceber alguma coisa muito geral desse prazer. É, por exemplo, essa satisfação íntima quando vê se realizar alguma obra que contribuirá para o bem espiritual de outrem; é esse contentamento em seu coração quando vê a justiça enfim triunfar sobre os maus, à parte de qualquer sentido de vingança. Em suma, é a alegria interior que o cristão verdadeiro sente por servir, de algum modo, como instrumento nas mãos Divinas para o bem de seu semelhante, e mais ainda para o seu bem espiritual e eterno.
Esses sentimentos nobres em nossa alma nos dão, portanto, uma longíqua visão do que deve ser o prazer celeste. Não são impressões isoladas ou noções frias, porque acompanham esses sentimentos um fortalecimento de nossa confiança em Deus, uma paz em nossa mente natural, uma tranqüilidade para os anseios de nosso coração; as dificuldades que nos cercam não parecem mais tão ameaçadoras, nem os males se mostram tão medonhos e invencíveis. Porque o Senhor influiu estados do céu em nosso íntimo, e esses estados descem à nossa mente e chegam até às coisas à nossa volta, ou pelo menos, à maneira como as encaramos.
A igreja é o céu do Senhor na terra. Ela é como os átrios do tabernáculo. O homem da igreja cujo coração é fiel está, enquanto no mundo, entre anjos do céu. Pela vida verdadeiramente cristã ele pode, na igreja, antever a alegria e a felicidade do céu. Por isso também o salmista disse: "Porque vale mais um dia nos teus átrios do que em outra parte mil. Preferia estar à porta da casa do meu Deus, a habitar nas tendas da impiedade". E: "Quão amáveis são os teus tabernáculos, Senhor dos Exércitos... Bem-aventurado os que habitam em tua casa; louvar-te-ão continuamente".
Amém.

Lições: Salmo 84; Mateus 5:l-l6; CÉU E INFERNO 395.