"As aflições do mundo"

Sermão pelo Rev. Cristóvão R.Nobre

"Tenho-vos dito isto para que em Mim tenhais paz; no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, Eu venci o mundo" - João 16:33.

No sentido literal destas palavras, o Senhor nos encoraja ao nos prevenir de que o viver neste plano natural implica em passar por desventura de toda sorte, infortúnios e desassossegos, aflições que todos nós conhecemos muito bem e que, muitas vezes, não temos como evitar.
De fato, neste mundo natural, num instante podemos estar tranqüilos e sem maiores cuidados e, no momento seguinte, somos assaltados por enfermidades, acidentes, dissabores e pesares ou outra complicação qualquer que altera a normalidade e boa marcha das coisas. Assim é a vida neste mundo.
Mas as palavras do Senhor não se limitam ao entendimento meramente literal. Seriam demasiadamente óbvias se assim fosse. Mas o sentido desta exortação do Mestre vai mais além, referindo-se especialmente à marcha da vida de nosso espírito. Examinando, portanto, o sentido interno deste versículo, verificamos que o Senhor está nos alertando quanto às perturbações de ordem espiritual, que elas são inevitáveis, mas podem ser superadas e sanadas pelo Divino Poder.
Segundo sabemos pelas Doutrinas Celestes e pelas correspondências, o Senhor, enquanto estava no mundo, era a Divina Verdade, e Sua Alma ou o Pai era o Divino Bem. Assim, quando Ele proferia os ensinamentos, eram ensinamentos da Divina Verdade, ou a Divina Verdade mesma instruindo-nos. "Tenho-vos dito isto" é, pois, a instrução da Divina Verdade; o "mundo" referido neste versículo é a mente externa do homem ou o homem externo; as "aflições" são as tentações espirituais; e "ter paz no Senhor" é estar na caridade, protegido contra os infernos e em repouso quanto às falsidades.
Assim, a instrução que a Palavra nos dá nesta passagem, em seu sentido interno, é que haverá, sim, as lutas espirituais chamadas combates de tentação, e que o homem externo as sentirá como perturbações ou aflições. Mas o Senhor oferece o consolo e a paz nessas perturbações.
Já vimos algumas vezes, mas nunca é demais repetir, que existe uma diferença entre as aflições materiais e as aflições espirituais. As materiais, comuns a qualquer criatura humana, podem não produzir nenhum benefício ou nenhum avanço na regeneração do homem, enquanto as perturbações espirituais se chamam tentações, e só são suportadas por aqueles que se deixam regenerar pelo Senhor. A diferença entre umas e outras é determinada pelo fim ou objetivo que se tem em vista. "São distinguidas pelo fato de as ansiedades naturais terem por objeto coisas mundanas, e as ansiedades espirituais as coisas celestes" (NJDC 187).
Por causa dessa distinção entre as aflições naturais e as espirituais, diante de uma mesma situação negativa, a pessoa que está sendo regenerada pode ter um sofrimento maior ou mais profundo do que teria a pessoa que não cuida na regeneração. Porque a pessoa que busca a caridade para sua regeneração pensa nos fins que estão por trás dos atos, pensa no conteúdo, pensa nas intenções e se aflige se estas coisas não são boas, ao passo que o homem meramente natural cuida apenas dos efeitos, dos atos, da forma externa e das aparências, e nem se preocupa com a qualidade interior, se é boa ou má. Por exemplo, o homem irregenerado se preocupa apenas em parecer bom e honesto diante do mundo, ainda que em seu interior seja mau e desonesto. Mas o homem que está sendo reformado pelas Verdades se aflige especialmente quanto a ser ou não interiormente bom e honesto. Assim, suas aflições são de outra espécie, desconhecidas do homem irregenerado.
É dessa espécie de aflição interior que o Senhor fala neste versículo. Aqui ele previne o homem que está regenerado de que ele terá que passar por essa espécie de perturbação, se deseja ser reformado e criado de novo. "No mundo tereis aflições", disse-nos o Senhor. Ele jamais nos disse que no mundo estaríamos livres de dificuldades e de lutas, nem prometeu que nos afastaria das tentações espirituais. Na verdade, quando oramos diariamente, pedimos: "E não nos induzas à tentação", mas esta é apenas uma aparência, aparência de que é Ele quem provoca as tentações e aparência de que Ele pode evitá-las em nossa regeneração. Esta é uma das coisas que o Senhor não pode fazer.
Sabemos que o Senhor não poderia desviar de nós as tentações, porque elas são o único meio de nossa regeneração. A prata e o ouro precisam passar pelo fogo para serem refinados. A panela que o oleiro faz do barro fresco precisa ser cozida no fogo para que se torne dura e utilizável. O lavrador precisa escavar e revolver a terra, removendo as ervas daninhas, para que o campo seja plantado. O cirurgião precisa fazer a incisão na pele e nos tecidos do corpo para remover tumores que põem em risco a saúde de todo o organismo. E assim se dá com os males ou pecados, que são cânceres ou doenças da alma. As tentações acontecem justamente quando e porque os males precisam ser extirpados de nossos espírito. E como as tentações são sentidas como aflições, por isso o Senhor disse que elas são inevitáveis, se quisermos a cura de nossas almas.
Há crenças que ensinam o erro de que a vida cristã é pura alegria, satisfação e tranqüilidade. Há as que ensinam que a regeneração ou salvação do homem se dá imediata e instantaneamente, sem nenhum esforço da parte do homem, porque, eles dizem, é por obra da graça Divina. Há as que pregam que basta a fé, sem qualquer necessidade de se lutar por adquirir vida espiritual. Mas a própria razão e a até a experiência nos dizem que nenhuma cobiça nem mau hábito pode ser erradicado de nosso dia a dia a não ser com um esforço obstinado e com certa dificuldade, dependendo do grau em que o mal estiver enraizado em nossos costumes e nossa conduta. "No mundo tereis aflições", diz o Senhor.
Não que o Senhor queira nos causar essas aflições. As aflições naturais existem como mera conseqüência de nossa presença neste plano material. Até os seres irracionais, animais, pássaros etc., passam por aflições quanto à luta pela sobrevivência. E as aflições espirituais existirão como conseqüência da obra da remoção dos males de nosso proprium. Não vem do Senhor, portanto, a causa de sermos afligidos. Os próprios males que herdamos em nossa natureza e, sobretudo, os males que nós mesmos acumulamos por nossa ação individual e deliberada é que afligem e desgastam nossas almas (ver AR 640). Por causa de nossa natureza humana corrupta e corruptível, nosso ser real nada mais é do que uma massa de cobiças aos olhos do Senhor, e é por isso que Ele nos manda que rejeitemos a esse ser que é morto e infernal e adotemos um ser novo, criado de novo por Ele. "Quem quiser vir após Mim", Ele diz, "renuncie-se a si mesmo, tome a cada dia a sua cruz, e siga-Me".
De onde vêm, então, as aflições que teremos no mundo, ou, mais exatamente, de onde vêm as perturbações em nossa vida espiritual durante a regeneração? Vem dos maus espíritos que residem nas cobiças do homem. No princípio, antes da regeneração, quando o homem é esse caos ou nada mais que essa massa obscura de cobiças, os maus espíritos o governam e repousam tranqüilos, comandando a vontade do homem. Os males que o homem quer e faz, e as falsidades que ele pensa e profere são a própria base em que esses espíritos se sustentam e em que vivem. Quando o homem, nessa condição, dá lugar à cobiça de sua vontade em seu pensamento, ele atrai espíritos diabólicos e satânicos que concordam com aquela determinada cobiça. Eles vêm para o homem, entram em sua memória e de lá retiram todos os elementos que condizem e convêm às suas vidas. Eles e o homem, cada um em seu plano de existência, compartilham assim a mesma miséria espiritual.
Ora, enquanto o homem ignora o que é o mal que condena e o bem que salva, ele permanece como instrumento dos espíritos infernos, ainda que inconscientemente, e por isso vive em acomodação com os males e, conseqüentemente, em uma relativa inércia que ele chama de paz, pois sua mente só quer admitir o que convém à sua vida, e rejeita o que é contrário. Mas quando o homem, tendo aprendido o que é o bem e o vero, decide-se a mudar seu modo de pensar e de agir por causa do que é bom e justo e por temor a Deus, então faz-se uma grande mudança em seu interior. Dá-se um alvoroço entre os maus espíritos que coabitavam tranqüilos com ele. É como um terremoto, prenunciando a mudança de estado que no mundo, ou no homem externo natural. Porque os maus espíritos não querem de modo alguma abandonar os elementos nocivos de que se nutrem na mente do homem.
Os maus espíritos reagem ao primeiro lume da luz da verdade na mente e investem contra essa verdade. Eles atacam por meio das falsidades, enquanto os anjos e bons espíritos defendem por meio das verdades. É desse combate, então, que resulta para o homem o desassossego, a aflição, a perturbação, enfim, que se chama tentação, porque ele ora se inclina para o bem por meio das verdades, ora para o mal, por causa das falsidades, e nesse inconstância ele se aflige, preso pelas mais diversas dúvidas ou pelas cobiças que inflamam como fogo.
Mas o homem não está sozinho. O Senhor ordena a luta por meio de anjos e, através destes, por meio de bons espíritos que mais se identifiquem com o caráter do homem. E, além dessa presença mediata, o Senhor se acha presente também imediatamente, Ele mesmo junto ao homem, encorajando-o a vencer. Em meio a toda perturbação, o Senhor oferece ao homem uma paz interior que vem dos íntimos do homem desde os céus e desde o Senhor mesmo. Porque a luta não está no homem interno, e tampouco na mente externa, mas numa região intermediária, chamada homem interior, que poderíamos chamar de consciência. Nos externos há a perturbação, no meio a luta, mas nos internos há a paz e a consolação Divina.
O influxo do Senhor insinua a certeza de que o homem pode vencer, pois Ele mesmo, o Senhor, já venceu lutas semelhantes e infinitamente mais graves. Ele venceu o mundo.
Que diremos mais? Sabemos que há aflições espirituais e que elas são inevitáveis na nossa regeneração. Sabemos que o Senhor é Vencedor e quer que o homem vença, para que Ele assim opere a obra de regeneração. E sabemos que, em meio a essas lutas e suas perturbações, o Senhor nos dá uma segurança interior que resulta em paz. É assim que as coisas se processam, e o Senhor nos revelou para que soubéssemos, de antemão, como seriam, de que maneira Ele agiria para nos regenerar. E sabendo tudo isto, podemos e devemos exercitar nossa confiança n`Ele, para que, conhecendo e crendo nestas verdades, tenhamos paz mesmo em meio à aflição. "Tenho-vos dito isto para que em Mim tenhais paz".
Não nos esqueçamos de que as lutas e as aflições que elas produzem não são fins em si mesmas, mas somente meios de nossa regeneração. Lembremo-nos de que os males de nosso caráter, se se manifestam, é para que sejam expulsos. E as aflições e infortúnios, se são permitidas, é para que delas o Senhor extraia um bem que as supere. Depende, pois, de nós mesmos, saber encarar as aflições e lutas: como formas de tratamento de nossa vida espiritual e não como nossa destruição. Cabe a nós encarar as dificuldades como resultados da permissão ou da Providência Divina em nosso benefício, ainda que não compreendamos.
Tenhamos, pois, coragem em nossas lutas. Confiemos no Senhor. Tenhamos bom ânimo, que Ele é fiel e poderoso para nos conduzir até à vitória sobre os males do mundo e de nosso próprio ser. Se acreditarmos nisso, teremos paz n`Ele. "Tenho-vos dito isto para que em Mim tenhais paz; no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, Eu venci o mundo". Amém.

Lições: Salmo 73; João 16:20-33; AR 306 (partes).
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