RETENÇÃO DE VERDADES ESSENCIAIS


Sermão pelo Rev. W. Cairns Henderson


“A vós é dado saber os mistérios do reino de Deus, mas aos que estão de fora todas estas coisas se dizem em parábolas, para que, vendo, vejam, e não percebam; e, ouvindo, ouçam, e não entendam; para que se não convertam,
e lhes sejam perdoados os seus pecados”.

(Marcos 4, 11-12)

Embora a Palavra contenha muitas coisas que, tomadas literalmente, são difíceis de conciliar com o conceito de uma Providência beneficente, muito poucos homens se confirmam contra ela por causa dessas coisas. Quando, porém, se tornam tão insensatos nas coisas espirituais a ponto de só crer no testemunho de seus sentidos — e, portanto, já negam de coração Deus e a Sua Providência —, ficam inteiramente inflexíveis em seu ateísmo por causa de certas coisas que acontecem diante de seus olhos, ou que sabem existir no mundo ao redor deles. A existência do mal humano, o fato dos maus muitas vezes prosperarem mais do que os bons, a ocorrência das guerras, o fato de muitos povos estarem fora do manto da cristandade, e o estado atual da Igreja Cristã; tudo isso parece oferecer, aos olhos de tais homens, prova incontestável de que a Divina Providência é simplesmente um mito que vem sendo sustentado simplesmente pela credulidade humana através das idades, desde que foi inventado em era remota.
São essas, realmente, as coisas pelas quais os homens podem, geralmente, quando desejam, confirmar-se na negação da existência da Divina Providência. A Doutrina Celeste admite que há ainda outras coisas que apesar de não servirem propriamente para confirmar essa negação podem, entretanto, conduzir a dúvidas sobre a existência da Divina Providência. Essa Doutrina nos revela agora que o conhecimento do Senhor como o único Deus do céu e da terra, a confissão da santidade da Palavra e o afastamento dos males como pecados contra Deus, são indispensáveis para a salvação dos que se chamam cristãos e têm a fé cristã, e que a crença de que o homem continua depois da morte é também essencial a uma verdadeira religião.
Entretanto, toda a Igreja Cristã reconhece três deuses, pois não sabe que Deus é Um em Pessoa e Essência, e que esse Deus é o Senhor. Como não sabe também que a Palavra é santa, porque não percebe que em cada uma de suas particularidades há um sentido espiritual que constitui a sua santidade. Devido às suas falsas doutrinas, ela ignora também a importante verdade de que a vida da religião consiste em evitar os males como pecados; pela mesma razão, não sabe também que o homem vive como homem depois da morte do corpo.
Assim a Igreja Cristã não possui os conhecimentos que a Doutrina Celeste declara indispensáveis a uma verdadeira religião e, por isso, foi incapaz de desenvolver uma religião genuína. O ponto que nos interessa no momento não é tanto a ausência dessas verdades essenciais, mas o fato de que talvez elas não pudessem ser conhecidas antes de ser dada a Doutrina Celeste, cerca de mil e setecentos anos depois da Igreja Cristã ter sido estabelecida. O homem natural, tomando conhecimento desse fato, fará certamente a seguinte pergunta: se o ensino da Doutrina Celeste sobre esses quatro assuntos é verdadeira, e se também é verdade que este ensino é indispensável a uma religião verdadeira, por que a Divina Providência só nos veio revelar esses conhecimentos no décimo-oitavo século?
Parece que houve uma retenção propositada de verdades essenciais, privando os homens da oportunidade de serem salvos; e, como os homens naturais têm a tendência para confirmar as aparências como realidades, imediatamente se levantam dúvidas em suas mentes. Quando, porém, as razões dessa retenção são convenientemente compreendidas, vê-se que se trata de outra justificação da existência da Divina Providência. Para que isso possa ser visto assim, entretanto, é necessário que cada uma dessas possíveis bases para dúvida seja examinada separadamente.
A despeito de sua alegação de conhecer um único Deus, a Igreja Cristã, realmente, adora três pessoas e, portanto, três deuses, pois se cada uma das três pessoas é um Deus por si mesmo, há de fato três deuses. É impossível conceber um Deus que não seja também uma Pessoa, e o mais que se pode pensar em relação à trindade tripersonal é que as três pessoas que a formam são unânimes, mas ainda não deixam de ser três deuses. Na realidade, porém, a Essência Divina não pode ser dividida porque é Infinita; e é a crença em um Deus Único, em quem está a Trindade Divina, e que esse Deus Único é o Senhor, que faz a Igreja no homem.
Entretanto, a Igreja Cristã não somente considera o Senhor simplesmente como uma das três pessoas Divinas, como também separa Seu Divino de Seu Humano, concebendo o último como sendo inteiramente semelhante ao de outro homem. Cada vez mais, a Igreja pensa a respeito do Senhor como sendo um simples homem — o mais nobre, o mais bondoso e o mais sábio homem que jamais viveu sobre a terra, mas, ainda assim, um homem finito. E é para o homem, Jesus, que as suas afeições e os seus pensamentos se têm voltado. E chegou a esse estado porque caiu, primeiro, no amor da dominação derivado do amor de si, e depois na falsa idéia de que os homens são salvos simplesmente pela fé intelectual na suposta expiação por delegação do Senhor.
Essa é a razão porque a Igreja Cristã não sabe que há um único Deus e que o Senhor é esse Deus. Quando refletimos que, para permanecer intacta a possibilidade de sua salvação, os homens precisam ter liberdade e racionalidade, que eles só podem ser instruídos por meio da Palavra e que devem ser impedidos profanar o Divino Humano, vemos então que sua ignorância não é incompatível com a existência de uma Divina Providência. A Divindade única do Senhor é realmente ensinada na Palavra, mas não foi compreendida.
Quando a Igreja mergulhou em males cada vez mais profundos, deixou de percebê-la de modo absoluto. E a razão pela qual a verdadeira doutrina do Senhor não foi percebida antes de ser dada a Doutrina Celeste é que ela não podia ser recebida, por não ter sido feito ainda o Julgamento Final. Antes desse Julgamento, o poder do inferno prevalecia sobre o poder do céu nas mentes dos homens sobre a terra. O equilíbrio tinha sido rompido, e se a Doutrina tivesse sido revelada em qualquer tempo durante o período anterior ao Julgamento, teria sido rejeitada e profanada. Conseqüentemente, estava no propósito da Divina Providência que ela não fosse aceita antes que, com a realização do Julgamento Final, o equilíbrio fosse restabelecido e os homens ficassem por fim livres para aceitá-la.
Dá-se exatamente o mesmo com o segundo ponto que provoca esta interrogação: se o conhecimento da santidade da Palavra é essencial para a salvação, e se é a existência do sentido espiritual que faz santa a Palavra, por que não foi esse sentido revelado senão depois de passados sobre a Igreja Cristã cerca de dezessete séculos?
A resposta dada pela Doutrina Celeste é, em primeiro lugar que, se o sentido espiritual tivesse sido conhecido antes da época em que o foi, a Igreja o teria profanado e, desse modo, teria sido profanada a santidade da Palavra; e, em segundo lugar, que a verdade genuína, em que consiste o seu sentido espiritual, não podia ser revelada antes que o Julgamento Final fosse realizado e a Nova Igreja estivesse a ponto de ser estabelecida.
O vinho novo da verdade espiritual não podia ser dado àqueles que estavam tão confirmados no seu paladar do vinho velho da falsa doutrina, os quais, se tomassem o novo, o rejeitariam e voltariam ao velho. Nem podia esse vinho novo ser colocado nos odres velhos constituídos pelas formas de pensamento tradicional da Igreja Cristã. Exigia os novos vasos da nova Revelação, que só podiam ser dados depois do Julgamento Final, quando então os homens já estariam livres para recebê-los, sem o perigo da profanação.
Pouco tempo depois do seu estabelecimento, a Igreja Cristã degenerou de tal forma que, ou reconhecia a Palavra só para perpetuar o poder que se tinha arrogado, ou considerava-a como não tendo qualquer valor intrínseco no que dizia respeito à salvação, conforme tratava de afirmar sua autoridade sobre as almas dos homens, ou de defender o conceito da salvação pela fé somente. Entre si, as Igrejas Romana e Protestante adulteraram todo o bem e falsificaram toda verdade da Palavra, para confirmar suas respectivas pretensões, levando assim ao extremo a blasfêmia contra o Filho do Homem.
Se o sentido espiritual tivesse sido revelado a essas Igrejas, elas o teriam tratado exatamente como trataram a letra da Palavra; com a diferença que as conseqüências teriam sido ainda mais desastrosas para elas, pois que profanariam a própria santidade da Palavra, cometendo assim a dita blasfêmia contra o Espírito santo, o que é um pecado imperdoável. Foi, portanto, pela ação da Divina Providência que o sentido espiritual ficou escondido do mundo, e preservado no céu, até que estivesse preparado, pela execução do Julgamento Final, um estado em que esse sentido pudesse ser recebido sem o perigo de uma inevitável profanação.
Com relação ao terceiro ponto, sabemos que, antes de ter sido dada a Doutrina Celeste, a Igreja não tinha conhecimento de que a essência da religião cristã é evitar os males como pecados contra Deus, devido à predominância da doutrina da salvação somente pela fé. É verdade, sem dúvida, que, a todos os que são educados de acordo com a fé da Igreja Protestante, se ensina que devem evitar os males e fazer o bem; mas se ensina também que a abstenção do mal e a prática do bem nada tem a ver com a salvação que é garantida, em vez disso, por uma mera crença intelectual e o reconhecimento de que Cristo morreu na cruz para tirar os pecados do mundo. Esta doutrina tem um grande atrativo para o homem natural, pois parece oferecer-lhe o melhor de ambos os mundos: a possibilidade de condescender com os seus desejos, aqui, e não obstante, a segurança da salvação na vida futura. Daí resulta um estado em que os homens não pensam mais em termos de má ou de boa conduta, não se preocupando mais com as condições de suas próprias vidas.
Conseqüentemente, não se tem mais o entendimento de que evitar os males como pecados é a própria essência da religião cristã, a despeito de ser isso claramente ensinado na Palavra. As razões pelas quais a Divina Providência não podia deixar de permitir que a Igreja se conservasse nessa ignorância eram as seguintes: os homens precisam ser mantidos na liberdade de agir de acordo com o que parece ser direito, mesmo quando não o é, para que lhes seja conservada a possibilidade de serem salvos; que ninguém é instruído imediatamente pelo céu, mas indiretamente por intermédio da Palavra. E que mesmo os males devem ser permitidos por causa do fim Divino que é a salvação de todos os que podem ser salvos. Assim, era mais uma vez, uma permissão da Providência a ignorância das Igrejas, sendo o objetivo dessa permissão um fim misericordioso.
Há uma conexão muito estreita entre este e o fato do qual não era conhecido antes da Doutrina Celeste ter sido dada, de que o homem vive depois da morte. Pois a razão pela qual isso também era desconhecido é que, naqueles que não evitam os males como pecados, permanece inteiramente escondida a crença de que o homem não vive absolutamente depois da morte e que, portanto, ele não ressuscitará no dia do Julgamento Final.
Se através de instrução e educação um certo homem adquiriu uma crença externa na ressurreição depois da morte, ele anula simplesmente os seus efeitos com o pensamento de que não estará em pior situação do que qualquer outro, uma vez que, quer vá para o inferno ou para o céu, terá muitos companheiros para compartilhar a sua sorte. Contudo, os que têm em si alguma religião, possuem um conhecimento, por assim dizer, inato, de que o homem vive depois da morte, como se pode ver quando se reflete sobre o que se diz a respeito da morte, e sobre a maneira pela qual os homens pintam sua própria sorte e a sorte daqueles a quem amam, depois da morte, quando pensam segundo o senso comum e não segundo a teologia de sua Igreja.
Podemos ver, então, que as coisas que estamos examinando, embora possam fornecer aos homens naturais argumentos para duvidar da existência da Divina Providência, todas elas são permissões dessa Providência e foram consentidas a fim de que o caminho da salvação se conservasse aberto para os que ainda pudessem ser salvos, e também para que a sorte dos que não o pudessem mais, não se tornasse pior do que já era. Não há sorte mais terrível na outra vida do que a que espera o profanador, ou seja, aquele que primeiro aceitou a verdade de coração, na fé e na vida, e depois a rejeitou. Esse não está preparado nem para o céu nem para o inferno, por isso tem que ficar aparte e acaba, finalmente, por perder toda qualidade humana.
E como a Igreja Cristã, antes do Julgamento Final, não podia deixar de profanar a doutrina do Senhor e o sentido espiritual da Palavra, a Divina Providência só consentiu na sua revelação depois de efetuado esse Julgamento. Foi para preservar a liberdade e a racionalidade dos homens que se lhes permitiu mergulhar no mal, e como por outro lado eles só podem ser instruídos pela Palavra para que haja esperança de salvação, foi permitido à Igreja cair num estado em que ela não conhecia mais nem as próprias coisas que são essenciais a uma verdadeira religião. Tudo isso aconteceu pela ação da Divina Providência, e não pelo fato dela não existir e, por mais paradoxal que pareça, isso aconteceu para que a esperança de salvação continuasse a existir.
Estas coisas estão compreendidas nas palavras do texto: “A vós é dado saber os mistérios do reino de Deus, mas aos que estão de fora todas estas coisas se dizem por parábolas, para que, vendo, vejam, e não percebam; e, ouvindo, ouçam, e não compreendam; para que se não convertam, e lhes sejam perdoados os seus pecados”.
Estas palavras foram ditas a Seus discípulos e a outras pessoas depois do Senhor ter dado a parábola do semeador. A referência aos que estão de fora se dirigia aos judeus, parecendo que o Senhor não desejava que os seus pecados fossem perdoados, nem que eles fossem salvos. Mas é evidente que isso é uma simples aparência e que a significação real de Suas palavras é muito mais profunda. Em Suas pregações, enquanto Ele estava no mundo o Senhor falava na maior parte das vezes aos membros de uma Igreja consumada.
Ele sabia, visto que sabe todas as coisas, que muitos dos seus ouvintes não deixariam de profanar as verdades que Ele pregava, se elas fossem proferidas claramente. Sabia que, se eles fossem convertidos, não poderiam suportar a vida cristã e em breve cairiam na profanação. Esse estado não lhes tinha sido imposto à força. Tinham entrado nele voluntariamente. Mas como é muito melhor para o homem ir para o inferno do que sofrer as terríveis conseqüências da profanação, o Senhor ensinou que os maus não podiam compreender e perceber as coisas que Ele dizia e que eram Verdades Divinas, e também não podiam ser compelidos a aceitar aquilo que mais tarde certamente profanariam. O Senhor não desejava que os judeus permanecessem em seus pecados, mas desejava que aqueles que permanecessem neles não entrassem num estado pior, e por esta razão Ele falava, como o fez, em parábolas. Contudo, Ele falava de tal modo que os bons podiam se inspirar em Suas palavras para procurar mais instrução, como fizeram os discípulos naquele momento.
Assim aconteceu também quando a Igreja Cristã decaiu por sua vez. Houve, por muitos séculos, uma retenção das verdades agora reveladas na Doutrina Celeste, verdades que são essenciais a uma religião verdadeiramente viva. Mas o propósito Divino, retendo essas verdades, era um propósito da mais profunda misericórdia; era para que a Igreja fosse preservada do imperdoável pecado da profanação.
Não devemos esquecer, porém, que a salvação não era negada aos que podiam ser salvos pelo fato da verdade ser retirada deste mundo para que não a profanassem os que não podiam mais ser salvos. É verdade que eles tinham que esperar pela salvação no mundo dos espíritos, alguns durante centenas de anos; tinham que esperar até que o Julgamento Final fosse efetuado, e a verdade genuína da Palavra pudesse ser revelada. Mas quando isso aconteceu, eles foram salvos; e mesmo séculos de espera são de pouca importância, depois que passaram, quando comparados com a vida eterna e a felicidade no céu. Era, realmente, por sua causa, também, que a verdade foi retida, pois do contrário a profanação se espalharia de tal modo que poria em perigo a própria preservação da raça humana e dos céus.
Quando, portanto, são convenientemente compreendidas as coisas que fazem surgir na mente do homem natural, essas coisas vêm, ao contrário, fortalecer o homem espiritual em sua fé na Divina Providência, desvendando maiores maravilhas de suas secretas operações. Isto é verdade a respeito de todas as permissões da Providência — quando são corretamente e afirmativamente compreendidas. Os únicos obstáculos à crença na existência de uma Divina Providência são os obstáculos que o próprio homem coloca em seu caminho, seja pensando que se houvesse uma Divina Providência ela devia agir segundo os errôneos pontos de vista que sustenta, seja insistindo na idéia de que as suas operações deviam ser executadas de um modo claro para ele. Isto, entretanto, é impossível.
A Divina Providência não pode ser vista nas particularidades de sua ação, nem por quaisquer olhos, salvo os do amor e da fé. Mas a Doutrina Celeste dá uma visão universal de suas operações sobre a qual a fé pode repousar.
Amém.

•   1ª Lição:     Isaías 62
•   2ª Lição:     Marcos 4, 1-20
•   3ª Lição:     D. P. 262 e 263