A TENTAÇÃO DE GETSÊMANI


Sermão pelo Bispo George de Charms


“Então chegou Jesus com eles a um lugar chamado Getsêmani”.

(Mateus 26, 36)

Durante Sua vida sobre a terra, o Senhor sofreu contínuas tentações. Começaram na primeira infância e estenderam-se em série progressiva de intensidade crescente, até culminar na paixão da cruz. Sem conhecer a natureza dessas tentações é impossível compreender como o Senhor glorificou o Seu Humano e redimiu a humanidade; pois elas constituem o meio pelo qual esta obra Divina se realizou. Contudo, o fato do Senhor ter sido tentado durante toda a Sua vida na terra, não está claramente exposto nos Evangelhos, e era inteiramente desconhecido da Igreja Cristã.
A razão disso é que Suas tentações eram conflitos da mente e do espírito, silenciosamente suportados. Produziam, no mundo espiritual, julgamentos de formidáveis conseqüências, mas, na terra, em sua maior parte, não apresentavam efeitos visíveis que pudessem ser reconhecidos pelos homens. Mesmo os discípulos, que estavam mais perto do Senhor, não tinham delas senão uma escassa compreensão. Os Evangelistas, relatando o que ouviram e viram, dão testemunho somente da tentação do deserto, no começo da ministração do Senhor, e da que Ele sofreu, por fim, em Getsêmani e na cruz. Providencialmente, porém, a narração destas duas tentações está redigida de modo a envolver todas as demais. Dizemos estas duas, porque a do Getsêmani está tão intimamente ligada à paixão da cruz que constitui, por assim dizer, uma parte dela.
Há duas espécies de tentação completamente distintas, denominadas, respectivamente, intelectual e voluntária. A tentação intelectual é preliminar e menos severa. Consiste na tristeza da mente, sentida quando alguma verdade que prezamos é posta em dúvida, isto é, quando os meios para atingir um fim desejado não são claramente vistos. A vitória nessa tentação se obtém como resultado do estudo e da meditação; quando o caminho é encontrado, as dúvidas são dissipadas e a confiança na verdade é restabelecida.
Primeiramente, deve ser estabelecida uma fé intelectual assim, a fim de que nos preparemos para poder dar efetivo cumprimento a nossos propósitos elevados. Quando estamos empenhados nisso e encontramos dificuldades com que não contávamos, a nossa fé sofre uma nova prova. Só quando persistimos através de todos os desapontamentos e fracassos, é que conseguimos alcançar sucesso. Esta última tentação vai além de uma mera tristeza da mente; ela experimenta a força de nossa vontade com provações externas de várias espécies a que se associam, muitas vezes, tentações espirituais e sofrimentos naturais. O Senhor sofreu tanto as tentações intelectuais como as voluntárias, semelhantes a todos os respeitos, às dos homens, exceto que tinham uma gravidade muito superior ao que poderia ser suportado pela resistência humana.
A angústia do Senhor em Getsêmani foi, de fato, o começo de Sua paixão. Foi a tentação intelectual que necessariamente precedeu e preparou o caminho para a crucificação. Por ela, o Senhor estabeleceu o interior de Seu Humano a fé Divinamente racional que O habilitou a suportar calmamente todos os sofrimentos da cruz e a dar voluntariamente Sua vida para a salvação dos homens.
Para compreender o que aconteceu em Getsêmani precisamos saber que o Senhor, por meio de Suas tentações, realizou duas coisas distintas: venceu os infernos e reordenou os céus. Para que pudesse vencer os infernos, o Senhor permitiu que os maus espíritos se aproximassem e O atacassem, tendo por base o Seu hereditário materno. Mas para reordenar os céus era necessário que Ele fosse tentado até pelos anjos. Nos Evangelhos, o conflito com os infernos é representado pela tentação no deserto. A luta contra os anjos, porém, é especialmente descrita pelo que se passou em Getsêmani. Aí o Senhor não estava em um deserto, mas em um jardim. Não estava em contato com os estados desordenados dos que estão em revolta declarada contra a vontade Divina e, por isso, mergulhados nos males e falsidades. Achava-se na presença de anjos que estavam no amor e na caridade celestes — cujas mentes, sob a direção do Senhor, tinham sido formadas como jardins de inteligência e sabedoria altamente cultivadas.
Contudo, esta sabedoria angélica era insuficiente para as necessidades do Senhor. Estava sujeita a limitações finitas. Era delimitada por aparências de verdade que deviam ser ultrapassadas e removidas, a fim de que o racional do Senhor pudesse ser glorificado e levado a uma completa união com a Divina Verdade. Somente assim o Senhor podia instruir os anjos em novas verdades, que eles não tinham visto antes, e inundar os céus com uma nova luz.
Poucos ensinamentos diretos, entretanto, são dados nos Escritos a respeito da tentação do Senhor em Getsêmani. Achamos, contudo, no Antigo Testamento, na história de Abraão e do sacrifício de Isaac, um paralelo notável. Aí se diz que Abraão levantou-se e tomou Isaac, seu único filho, levando-o para um lugar na terra de Meriah que lhe tinha sido indicado por Deus para aí oferecê-lo em holocausto sobre uma montanha. É digno de nota que o Monte das Oliveiras onde estava situado o Jardim de Getsêmani fica nessa mesma terra de Meriah. Sabemos claramente que Abraão representa o Senhor e que Isaac, aqui, representa a mente racional do Senhor antes da glorificação. Nesta mente havia aparências celestes da verdade semelhantes às aparências existentes na mente dos anjos. Este racional deve ser sacrificado. Estas aparências devem ser dissipadas para que o Humano do Senhor possa se unir completamente com o Divino.
Na continuação da história se diz que Abraão levou consigo dois moços aos quais, quando viu o lugar que lhe tinha sido indicado, disse: “Ficai com o jumento, e eu e o moço iremos até ali; e havendo orado, tornaremos a vós”. Assim também o Senhor quando foi a Getsêmani, disse a Seus discípulos:
“Assentai-vos aqui enquanto eu vou além a orar. E levou consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, e começou a entristecer-se e a angustiar-se muito. Então lhes disse: ‘Minha alma está cheia de tristeza até a morte; ficai aqui e velai comigo’. E indo um pouco mais para diante, prostrou-se sobre Seu rosto, orando e dizendo (...)”. (Mateus 26, 36-39)
O paralelismo das duas narrações é marcante, e é claro que a significação interna da história do livro da Gênesis se aplica, com alguma variação, à narração de Mateus.
A significação geral é que o Senhor desfez-se de todas as falácias externas do mundo. Focalizou Sua mente sobre coisas puramente espirituais e eternas, vindo assim à imediata presença e associação com os anjos. Fazendo isso, Ele se colocou, por assim dizer, no lugar dos anjos, entrando no seu estado, tomando sobre si as suas aparências de verdade, percebendo suas limitações e as dificuldades e dúvidas a que davam lugar. Desta forma estava Ele completamente imerso na esfera dos anjos, de modo que era como se as imperfeições deles fossem Suas.
Assim acontecia em todas as tentações do Senhor. Por meio do humano de Maria, Ele tomou sobre Si, como propriamente Seus, os estados dos homens e dos anjos, sofrendo as dúvidas e ansiedades a que eles, em razão de sua ignorância e de seus erros, estavam sujeitos; e então, pela Divina percepção da Palavra, Ele corrigia Seus pensamentos, dispersando as nuvens da dúvida, transpondo todas as aparências e estabelecendo em Sua mente racional a Verdade Infinita. Assim, gradativamente, Ele despiu o humano de Maria e revestiu o Divino Humano, um com o Pai e Infinito.
A natureza de Sua tentação em Getsêmani, entretanto, é muito mais claramente perceptível nestas palavras: “Isaac falou a Abraão, seu pai, e disse-lhe: Meu pai! E ele disse: Eis-me aqui, meu filho! E ele disse: eis aqui o fogo e a lenha; mas onde está o cordeiro para o holocausto?”
As dúvidas dos anjos provêm de sua ignorância. Eles não podiam prever o futuro. Não podiam conhecer a verdadeira qualidade daquele novo poder que o Senhor estava exercendo por meio de Seu Humano glorificado. Informados sobre o estado de depravação a que a humanidade havia atingido, percebendo o poderoso domínio do amor de si e do amor do mundo sobre as mentes humanas — domínio que foi se enraizando através de inúmeras gerações em uma acumulação hereditária —, parecia-lhes impossível que o homem pudesse ser levado, livremente, a reconhecer o Senhor de coração e aceitar as verdades internas da Palavra na fé e na vida.
Eles sabiam que o Senhor estava presente com Infinito amor para alcançar esse fim; mas onde encontrar na raça humana quem quisesse sujeitar seu amor próprio a obedecer à Verdade revelada? Nos Seus estados de tentação, estas dúvidas eram sutilmente insinuadas na mente do Senhor. Era por isso que Sua alma estava “cheia de tristeza até a morte”. Para que os estados dos anjos fossem mudados sem prejuízo para eles, para que a sua fé não fosse destruída, mas protegida e renovada; esta nuvem devia ser dissipada suavemente, gradualmente, levando misericordiosamente em consideração a sua finita capacidade. Foi para isto que o Senhor assumiu os seus estados como se fossem propriamente d’Ele. Teve que suportar o sofrimento da tentação como se fosse um deles, vencendo como eles também podiam vencer, mostrando-lhes assim o caminho e guiando os seus passos para Ele.
O homem vence na tentação não por seu próprio poder, mas pela confiança no poder do Senhor e pela obediência aos ensinamentos de Sua Palavra. O Senhor, sim, ao contrário do homem, vence por Seu próprio poder. Mas nos estados de tentação, o Divino estava como que afastado d’Ele. Aparentemente, Ele era então um homem mortal. E era nesses momentos que Ele orava ao Pai como se fosse um outro. Em conseqüência desta impenetrável aparência, Ele venceu mesmo como os homens vencem — pela confiança no Divino e pela obediência à Palavra.
Por isso em Getsêmani Ele orou: “Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice; porém, não como eu quero, mas como Tu queres”. E isto Ele fez três vezes enquanto seus discípulos dormiam. Nesta prece se vê tanto a tentação como a vitória. E com a vitória veio a resposta que está mencionada no Livro da Gênesis: “Deus proverá para si o cordeiro para o holocausto”, e é significativamente acrescentado: “Assim caminharam eles juntos”.
“Eles caminharam juntos” quer dizer que assim — avançando lentamente, passo a passo pela estrada do progresso espiritual do homem — o Senhor conduziu os anjos com Ele, preservando sua fé, protegendo sua vida espiritual, ensinando-os e conduzindo-os de acordo com as imperfeições do seu estado — exatamente como está previsto em Isaías: “Ele alimentará Seu rebanho como um pastor; agarrará o cordeiro em seus braços, e conduzi-lo-á em Seu seio, e suavemente guiará aqueles que são jovens” (Isaías 40,11).
Pela mesma razão não foi permitido a Abraão matar seu filho. Sua mão foi detida pelo anjo do Senhor; e olhando em torno ele achou um carneiro preso pelos chifres em um espinheiro. A verdade do céu não podia ser destruída. Nos anjos ela devia ser aperfeiçoada pela instrução Divina, e no Senhor devia ser exaltada até ao infinito. O carneiro, preso no espinheiro, representa as imperfeições, as cegas limitações que deviam ser removidas.
Se mesmo os anjos estavam na obscuridade quanto à possibilidade dos homens serem levados a uma fé genuína no Senhor sem perder a liberdade espiritual, não é de estranhar que nós também sejamos perturbados pela dúvida em relação à possibilidade de estabelecer-se o Reino do Senhor em um mundo tão afastado dos pensamentos e do amor espirituais. E se olharmos para os nossos próprios corações onde, a despeito dos conhecimentos da verdade agora revelados do céu, o amor de si e do mundo mantêm um domínio tão completo sobre nós, podemos bem dizer com Isaac: “Eis o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto?”
A redenção é um milagre que está além da nossa compreensão. A regeneração do homem — que é a execução da redenção no indivíduo — só pode ser conhecida pelo Senhor. Como diz o Salmista: “Tal conhecimento é demasiado maravilhoso para mim; é elevado, eu não posso atingi-lo”.
Mas se de coração pomos nossa confiança no Senhor, se mantemos firme nossa fé na verdade revelada em Sua Palavra, fazendo um permanente esforço para tornar essa verdade uma viva realidade em nossas intenções e pensamentos, em nossas palavras e atos, então o Senhor dissipará lentamente as nuvens da dúvida e, na medida em que pudermos recebê-la, Ele nos dará a resposta do céu em um dilúvio de luz: “Meu filho, Deus proverá para Si mesmo um cordeiro para o holocausto”. Porque então o Senhor — pelo Infinito poder de Seu Divino Humano, vencerá em nós exatamente como venceu por todos os homens, no Jardim de Getsêmani.
Amém.

•   1ª Lição:     Gênesis 22, 1-14
•   2ª Lição:     Mateus 26, 36-46
•   3ª Lição:     A. C. pág. 485