PROCURANDO ASILO


Sermão pelo Rev. Hugo Lj. Odhner


“Fazei com que vos estejam à mão cidades que vos sirvam de cidades de refúgio, para que ali se acolha o homicida que ferir a alguma alma por erro”.

(Num. 35,11)

A santidade e o poder da Palavra israelita são perpétuos, não só porque todo o drama humano que se desenrolou entre os judeus — os filhos de Jacó — tem um paralelo que se repete entre nós; não só porque todo estatuto que era tido como justo, naqueles dias, estava enraizado nas leis Divinas e eternas que ainda inspiram os princípios da justiça humana; como também porque a santidade e o poder da Palavra israelita residem igualmente no fato de que a mente natural do homem da Igreja é uma sociedade em miniatura — povoada de pensamentos e afeições — onde o reino da lei é da mesma forma vital para a ordem e o progresso, para a saúde e a felicidade e, ainda, para a própria salvação. E aos olhos e ao pensamento dos anjos do Céu as leis de Israel — com seu conteúdo Divino — se apresentam como leis da mente humana.
Mas a mente é dupla. A sua parte inferior é o natural, construído à imagem do mundo. Esta parte reage às circunstâncias externas quase mecanicamente, e suas atividades são governadas pelas leis de ferro da força e da necessidade aparente. Tem uma visão superficial do mundo e de sua vida; daí resulta que as leis da sociedade humana que provêm da mente natural são insuficientes para garantia da justiça de uma nação. Como a lei hebraica da retaliação, elas não consideram os motivos nem as intenções.
A fonte de toda justiça — de toda percepção do que é justo e direito — é a mente espiritual — a mente que “não nasceu do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (João 1,13). As leis da sua vida são as do amor e da caridade, que trazem o entendimento dos valores espirituais e a apreciação dos motivos e intenções. São estas leis que governam o Céu, e é para sua promulgação que existe a Igreja na terra.
O senso comum de justiça e de liberdade moral, que a Divina Providência trabalhou por manter, teria desaparecido há muito tempo, substituído pela lei da força bruta, se não fosse sustentado e fortalecido pela pregação da lei espiritual sobre a terra, e a constante alimentação das sociedades do mundo dos espíritos com almas que viveram aqui a vida da lei espiritual.
Estas duas espécies de leis — a natural e a espiritual — foram representadas no sistema legal dos hebreus. A rigorosa justiça retaliativa era aí, como é em nosso meio, um fundamento externo do Estado. “Vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé” (Deuter. 19,21). “...nenhuma expiação se fará pela terra por causa do sangue que se derramou nela, senão com o sangue daquele que o derramou” (Num. 25,33). Mas se não estivesse presente uma lei mais elevada do que esta, a Nação Israelita não poderia representar o Reino de Deus; teria representado somente o estado civil assim retratado — o estado da mente natural, não redimida, com as suas variadas paixões.
Mas espalhadas por toda a terra, em vários distritos tribais, havia quarenta e oito cidades escolhidas para morada dos Levitas — da tribo sacerdotal que ministrava no tempo e via nele que o Divino estava entre os homens. Estes, em um sentido especial, devido a seu ofício, representavam o Reino de Deus, com sua lei mais lata da caridade espiritual, e sua função de manter a conjunção entre o Céu e a terra.
Os levitas não tiveram herança propriamente sua, mas foram colocados nessas cidades espalhadas para dotarem toda a confederação de Israel com uma qualidade comum, e para moldarem o povo pelos laços da religião. Uma rede de estradas ligava entre si as cidades levíticas. A tribo teve uma denominação adequada — Levi — que significa conjunção, e no sentido espiritual caridade — estado e qualidade que unem a Igreja a despeito das diferenças de raça, de ritual e de detalhes doutrinais.
Os levitas constituíam, por assim dizer, um reino dentro do reino. Sua fidelidade se concentrava no sumo sacerdote, cuja sagrada influência algumas vezes ultrapassava a dos juízes e reis. Como os reis, o sumo sacerdote representava o Senhor. Mas enquanto os reis administravam a lei, e assim representavam o reino da verdade entre os homens, o sumo sacerdote, que implorava a Divina Misericórdia e obtinham a Divina proteção, representavam a predominante lei do amor.
Quando o reinado da verdade se torna ineficiente, quando a verdade é pervertida e mal aplicada, quando a ilustração falha, e o erro e a confusão invadem as mentes dos homens, então a caridade e o amor se tornam a última corte de apelação, e a misericórdia se torna a justiça final a ser procurada.
Isto era significado pelo costume de procurar asilo nas pontas do altar, pois as pontas do altar representavam o poder da verdade do bem. Isto também foi significado quando se providenciou para que seis das cidades dos levitas fossem designadas como cidades de refúgio, onde os homicidas encontrassem proteção contra o “vingador do sangue”, e assim obtivesse uma suspensão da execução da lei de retaliação.
Mas mesmo a justiça espiritual — mesmo a caridade — tem suas leis. A verdade mais elevada, que sustenta o estado do coração, só pode salvar o inocente. Somente o que tinha cometido um crime involuntariamente, podia implorar o direito de asilo em uma cidade de refúgio. Aí — afastado do vingador rancoroso e dos preconceitos dos parentes do morto — o caso devia ser examinado, os motivos desvendados, o grau de culpabilidade determinado à luz da lei mais elevada da eqüidade. Se nenhuma maldade ou premeditação era descoberta, dava-se ao matador uma morada temporária naquela cidade, até as paixões esfriarem e se extinguir o clamor.
Não temos necessidade, hoje em dia, dessas cidades de refúgio. Contudo, todos nós, em certo sentido, necessitamos às vezes de asilo; asilo contra um julgamento demasiado apressado, contra o desprezo dos outros que poderiam prejudicar a nossa vida com uma crítica excessiva ou a difamação. Toda ação bem intencionada é, de certo modo, um apelo à caridade dos outros, uma batida na porta de uma cidade de refúgio. Muitas vezes apelamos para a misericórdia de uma caridade que pondere com benevolência as nossas faltas e interprete as nossas intenções com entendimento. Apelamos para uma caridade que compreenda, sem censuras, a cegueira e a ignorância que — como uma noite muito escura — cerca a pequena luz de sabedoria que se pode obter aqui no mundo; uma caridade que compreenda os muitos erros que necessariamente devem existir na concepção de um homem sobre seus deveres para com o próximo. Necessitamos de asilo! E devemos conceder aos outros um asilo em nossos corações. Toda palavra e toda ação humana é acompanhada de erros; alguns erros que os homens talvez descubram facilmente; outros — em grande número — que só o Senhor vê, e que Ele encobre, mesmo, às nossas vistas até chegar o momento em que estejamos maduros para serem corrigidos.
O Senhor reúne estes erros inconscientes dos homens na corrente de Sua Divina Providência, e transforma-os para o bem final do homem e da humanidade, como um todo. Ele introduz, assim, o homem em sua cidade de refúgio — no governo universal, mas invisível, que transcende as leis da justiça natural.
A mente do homem é organizada como uma sociedade, e é governada por determinadas leis. Mesmo a lei retaliativa dos hebreus tem aí um lugar muito apropriado. O homicida da vida espiritual é o ódio. A própria presença do ódio macula a mente, que permanece estéril e infeliz enquanto o ódio não é sentenciado pela rápida justiça de uma total rejeição — uma total aversão por ele. A lei da tolerância e da misericórdia não pode ser invocada pelo mal deliberado. Os males destroem os bens e as verdades do caráter — despovoam-no e o abandonam às paixões destrutivas, como às feras da floresta.
Mas o ódio não é a única causa dos prejuízos que a mente sofre. A mente, tanto quanto o corpo, tem seus acidentes. Sofre danos em sua fé e em sua saúde mental, pelos quais as verdades são assassinadas sem intenção real. Há estados da mente que podem se prejudicar um ao outro — estados de ignorância ou de cupidez confirmada. Aqui está um campo de justiça virtualmente inexplorado! E poucos são capazes da auto-análise necessária mesmo para começar a regular as relações destes estados, por algum esforço consciente. Nem isso pode ser feito de um modo apropriado, porque o homem é consciente somente dos estados mais ativos — é consciente somente do efeito geral criado por grupos de pensamentos, por ondas de afeições. Tem apenas um ligeiro controle dos impulsos simples que formam suas intenções, ou das idéias individuais que compõem seus pensamentos. Estes elementos internos de sua vida parecem agir quase completamente à parte do seu controle. Pela Doutrina ele pode saber somente que as coisas que sente e pensa são realmente inspiradas pelo mundo espiritual, e são pontos focais dos raios da influência de sociedades secretas de espíritos e de anjos.
Por isso a lei da Providência é que o homem — que é consciente apenas das regiões externas do seu pensamento — deve cooperar com o Senhor em expulsar os males do homem externo, ou do externo do seu pensamento (D.P. 102/ff). Isso ele deve fazer, arrependendo-se dos males particulares que reconhece. O Senhor, então, limpará o interior do pensamento, e assim arrancará do inferno as raízes de sua mente e as transplantará para o solo celeste e as alimentará com o influxo do Céu.
É este então o motivo porque os estados de fé do homem sofrem muitos danos — danos que ele lamenta, mas que não sabe remediar. Entra em estados de dúvida ou de indignação que não reconhece como tendo provocado, mas que nem por isso perturbam menos os seus usos — estados que o chocam e assustam, e parecem levá-lo à condenação, fazendo-o temer por sua salvação espiritual. Considera-se culpado pelos pensamentos e estados nocivos de sua mente que, entretanto, não tem o desejo de manter. Sente-se desnorteado porque aquilo que parece ser sua própria ação — talvez a sua própria lealdade à verdade da Doutrina — tem dado maus resultados, tem produzido desastrosos efeitos e estados que não previa.
Na realidade a tragédia não estará confinada à sua própria mente. Se pelo errado zelo de uma falsa crença religiosa um homem — agindo segundo uma consciência espúria — traz dúvidas sobre a fé de outro — sobre a verdade em que seu próximo confia, e assim prejudica a sua vida espiritual, então é como se houvesse cometido um homicídio, embora sem intenção. Isso é comparável ao caso de um homem que entra no recesso de uma floresta para cortar lenha com um companheiro, e o ferro de seu machado escapa do cabo e mata o seu amigo (A.C. 9011; Deut. 19,4-5).
Esse zelo deve ser perdoado, mesmo quando prejudica aos outros — perdoado quando não há malícia no coração, quando o zelo provém do desejo de fazer prosélitos para a sua fé, que é tida como verdadeira. As tragédias desse zelo devem ser toleradas sem levar em conta as conseqüências que poderá ter para os estados simples. Em vez de aplicar aqui a lei retaliativa deve-se, ao contrário, fazer um apelo à misericórdia.
O arrependimento do mal começa com a admissão da culpa. Mesmo quando não se tem a sensação do mal intencional, deve haver horror pelos resultados do próprio erro. A ignorância realmente excusa, mas não afasta o mal — não o impede de reincidir. O arrependimento é necessário mesmo quando não há malícia. Não devemos descansar enquanto os males da ignorância ou do erro não forem ilimitados.
Esta espécie de arrependimento é descrita na lei hebraica do asilo. Aquele que matava alguém por acidente, devia fugir, dirigindo-se para uma das cidades sagradas dos levitas a fim de procurar uma justiça mais elevada.
Em nossa própria mente o homicídio acidental das verdades da fé se dá mais freqüentemente do que se pensa. Pela ignorância, pela obscuridade ou pelos preconceitos, nós deixamos de lado muitas verdades espirituais que acontecem estar na trajetória do machado da verdade aparente que se escapa do cabo de nossas boas intenções. Se por argumentos cegos ou pela dúvida nós prejudicamos a fé de outrem ou, por assim dizer, matamos uma verdade, o único recurso é fugir do estado que foi responsável por isso. Não há tempo para defender-se; não há tempo para apanhar isto ou aquilo no caminho. O que conduz ao mal, não pode ser verdadeiro. Devemos deixar para trás as nossas opiniões interiores, a nossa suposta sabedoria.
Os Escritos revelam que há dois estados em todo o homem que está se regenerando. O primeiro é o estado em que ele obedece às verdades da Doutrina que conhece; por esta obediência é implantado o bem da verdade, que é a vida da fé. Em tal estado ele age pela verdade, mas sem percepção; age toscamente, embora com sinceridade; age por um sentimento do dever e por um zelo fortificado por toda espécie de afeições naturais. É leal à verdade, mas não possui uma percepção muito clara do que é a verdade, ou de como aplicá-la. Por isso acha que nem sempre o bom resulta do que faz, não obstante lhe parecer que está seguindo sua consciência em sua conduta em relação aos outros e no seu modo de agir. É este o estado descrito aqui; estado além do qual muito poucos, realmente, conseguem ir, quanto à mente natural. O natural é o último a ser regenerado, e devido à maldade hereditária, ele se torna a causa da obscuridade e do erro.
O nosso texto indica, entretanto, como o homem pode deixar esse estado em que está tão sujeito ao erro. Para isso basta procurar o asilo provido pelo Senhor, não apenas para alcançar perdão, mas também para obter instrução.
Toda cidade de Israel significa alguma doutrina específica. De todas essas cidades havia estradas para as cidades de refúgio. Isto quer dizer que, como conhecimentos abstratos no interior da mente, nenhuma doutrina da Igreja pode ser inteiramente verdadeira para o homem, a não ser que tenha ligação com a Doutrina da Caridade, com o amor da verdade e com a misericórdia e, através desta, com a Justiça Divina manifestada no plano celestial pelo Senhor! Esta Doutrina da Caridade interior é representada pelas cidades dos levitas.
A única proteção possível contra o zelo de uma fé errônea é fugir por essas estradas; pois de outro modo os espíritos infernais acabarão por confirmar os nossos erros insuflando-nos o orgulho da própria inteligência. O homem deve deixar pai e mãe — deve separar-se das afeições naturais —, arrancar-se livremente dos velhos hábitos, tornar-se um estranho do lar e da família! Sim, deve tornar-se um estranho dos maus hábitos, dos maus sentimentos e dos falsos pensamentos que constituem a sua família espiritual no estado mau em que se encontra. Seu único recurso é procurar proteção naquele amor da verdade que brota da caridade para com o próximo — amor de encontrar a verdade de uma vida sábia, não propriamente para sua salvação, mas para poder evitar prejudicar o próximo.
Esta nova caridade é representada pelas cidades levíticas de refúgio. Aí o homem deve começar de novo, com paciência e com a sabedoria da humildade que a confissão de seu fracasso gerou — deve começar de novo a reconstrução de sua fé imperfeita e preparar-se para uma vida de utilidade mais verdadeira. Com isto começa o segundo estado da vida regenerada — estado de agir, não como anteriormente, pela verdade, mas pela caridade; e a caridade é um estado em que as verdades da doutrina são vistas na luz do amor.
Quando se apela para o direito de asilo, não se pode voltar atrás. O homem deve permanecer na cidade de refúgio “até a morte do sumo sacerdote que existia naqueles dias”. Só então pode voltar para casa. A morte do sumo sacerdote claramente representa o fecho de um estado espiritual. A morte marca o fim da obscuridade e a elevação dos fins da vida ao plano eterno. A morte traz a abertura da mente espiritual, e é a entrada na morada final da alma depois de terminada a sua tutelagem e o exílio.
No sentido supremo, o Senhor é o nosso Sumo Sacerdote. Sua morte e ressurreição marcam a redenção da humildade transviada. Ele fez voltar para a sua herança a ovelha perdida de Seu reino espiritual, a quem Ele tinha preservado na terra inferior — as cidades de refúgio do mundo espiritual.
Pelo poder da Doutrina moral e racional do Divino Humano do Senhor no natural, as confusas impressões espirituais das mentes naturais dos homens podem ser clareadas por meio da iluminação. Conseqüentemente, a regeneração das mentes naturais não precisa mais ser demorada como era antes da redenção.
A mente natural do homem constitui a sua própria herança — a base de sua própria individualidade adquirida durante a sua vida na terra. E é ao trabalho de cultivar esta terra de sua herança que o homem deve retornar — com a bênção dos filhos de Levi — quando chegar o momento oportuno, ou seja, quando ele estiver maduro para isso. O homem não pode encontrar plena felicidade em estados emprestados, nem mesmo na cidade de refúgio, por mais sagrada que seja! É no campo de seus erros, de seus defeitos e pesares anteriores que ele deve reconquistar e regenerar o seu passado.
É conveniente que o homem possa fugir de si mesmo, de vez em quando, para procurar inspiração nos mananciais da vida religiosa. Mas a mente natural e seus campos de uso são a fundação sobre a qual é construída a sua morada eterna.
Tudo o que ele redime dela, levando-a à correspondência com os estados espirituais de amor e de paz que adquiriu na cidade de refúgio, constitui a medida da abundancia de sua vida angélica.
Amém.

Lições:   • Números 35, 6, 15, 20-34
• Mateus 5, 38-48
• D. E. 4645m e 4646m