POBREZA E RIQUEZA


Sermão pelo Rev. Bjorn A. H. Boyesen


“Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus”

(Mateus, 5, 3).

Muitas pessoas acreditam que os pobres são salvos mais facilmente do que os ricos por causa da frase da Escritura que diz: “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus” (Mateus 19,24). O Senhor disse essas palavras a seus discípulos como um comentário sobre a conduta de um mancebo rico que lhe perguntou o que devia fazer para obter a vida eterna. Quando o Senhor o exortou a guardar os mandamentos, o mancebo respondeu que já os tinha guardado desde a juventude; em vista disso o Senhor lhe disse que, se desejava ser perfeito, devia ir e vender tudo o que tinha e depois voltasse para segui-lo. Mas quando ouviu isso o rapaz foi-se pesaroso, porque possuía muitas propriedades.
Temos aqui um exemplo frisante do preceito de que a riqueza é um obstáculo no caminho da salvação; e não é este o único episódio das Escrituras em que o Senhor exprobra a posse de riquezas. Quando enviou os seus discípulos a pregar, recomenda-lhes: “Não possuais ouro, nem prata, nem cobre em vossos cintos, nem alforjes para o caminho, nem duas túnicas, nem alparcas, nem bordão...” (Mateus 10, 9-10). Em Lucas, vemos a sua exclamação: “Mas ai de vós, ricos, porque já tendes a vossa consolação!” (cap. 6,24) E, de conformidade com esta exclamação, Ele recebeu no céu o pobre Lázaro, que mendigava às portas do rico, enquanto que este mesmo rico foi entregue aos tormentos do inferno (Lucas 16, 19-31). Aparentemente, os casos mencionados na Escritura atestam exaustivamente que a riqueza é danosa à salvação, ao contrário da pobreza, que é apresentada como altamente conveniente. E quando, ainda por cima, o Senhor declara: “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus.” (Lucas 6,20), parece não haver mais dúvida de que a pobreza é, não somente conveniente, como também um requisito essencial para a salvação.
Os Escritos da Nova Igreja ensinam, porém, que a Palavra do Senhor não trata, primordialmente, das coisas da vida natural do homem, mas das coisas de sua vida espiritual. Conseqüentemente, quando a Palavra fala de riqueza ou de pobreza não se refere à abundância ou carência de bens naturais, mas é abundância ou carência de bens espirituais. Isto, algumas vezes, está claro mesmo no sentido literal das Escrituras. Por exemplo, a frase de Lucas: “Bem-aventurados vós, os pobres porque vosso é o reino de Deus.”; em Mateus toma esta outra forma: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus”.
A razão pela qual a Palavra do Senhor trata primordialmente das coisas espiritual é que “a Divina Providência do Senhor encara, em todas as coisas que faz, o que é infinito e eterno.” (D. P. 46) e os bens materiais não são infinitos nem eternos; ao contrário, são finitos e temporais. Os Escritos nos ensinam que “coisas temporais são todas as coisas próprias da natureza; e as coisas próprias da natureza são especialmente os espaços e os tempos, ambos tendo limite e termo” (D. P. 219). “As coisas temporais se referem às dignidades e às riquezas; essas coisas perecem com o tempo ou cessam com a vida do homem no mundo”.
Destes ensinamentos podemos concluir que — no que concerne à vida eterna do homem — não importa que ele seja rico ou pobre nas coisas naturais. Por esta razão é que na obra sobre o “Céu e o Inferno” se diz que “os ricos entram no céu tão facilmente como os pobres, e que ninguém é excluído do céu por causa de sua riqueza, ou recebido no céu por causa de sua pobreza; lá tanto há ricos como pobres e muitos ricos estão lá em uma glória e em uma felicidade maior que a dos pobres” (C. I. 357 in fine). Os Escritos nos ensinam também que a pobreza pode conduzir o homem ao céu da mesma forma que a riqueza. O “Céu e o Inferno” nos diz que:
“Entre os pobres há um grande número que não está contente com a sua sorte, que tem muita ambição e crê as riquezas são bênçãos; por isso quando não as recebem se irritam e pensam mal da Divina Providência; eles invejam, mesmo, os bens dos outros; além disso, enganam igualmente os outros quando a ocasião se apresenta, e vivem ainda em sórdidas volúpias” (O Céu e o Inferno 364).
Do que ficou dito podemos concluir que não é a presença ou ausência de bens materiais que determina a admissão do homem no céu. É, antes, a qualidade de seu caráter espiritual e da vida que dele decorre. Consideradas em si mesmas, as honras e as posses mundanas não são bênçãos nem maldições, mas tornam-se bênçãos ou maldições de acordo com o caráter do homem a quem são dadas. Por isso nos foi revelado que aquelas honras e riquezas foram, no mundo, bênçãos para os que estão agora no céu, e foram maldições para os que estão agora no inferno; ou que são bênçãos para os bons e maldições para os maus.
“Todo homem, por pouco que ele pense nisso, consultando a razão, pode saber donde provém que aquelas sejam bênçãos, e donde provém que elas sejam maldições; isto é, que elas são bênçãos para aqueles que não põem seu coração nelas, e que são maldições para aqueles que põem nelas seu coração; pôr nelas seu coração, é amar a si mesmo nelas, e não pôr o coração nelas, é amar nelas os usos e não a si mesmo” (D. P. 217).
Nesse mesmo livro se diz que, no mundo, tanto o mau como o bom são elevados às honras e recebem riquezas, porque o mau, do mesmo modo que o bom preenche usos; mas no céu não é assim, pois lá as dignidades e riquezas são concedidas aos que têm mais amor e sabedoria do que os outros; e é para estes que as dignidades e os bens materiais são bens do mundo. Os maus preenchem usos por causa das honras e do proveito próprio; eles encaram os usos como instrumentos, e as honras e proveitos próprios como fins; mas por isso mesmo, o que eles colhem para si próprios, deste modo, é temporal e perecível e, portanto, uma maldição. Eles são como o homem que derrubou seus celeiros e construiu outros maiores, e que se vangloriava de todos os seus bens e frutos e disse à sua alma: “Alma, tens em depósito muitos bens para muitos anos; descansa, come, bebe e folga. Porém Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a tua alma, e o que tens preparado para quem será?” Seguem-se depois estas palavras: “Assim é o que ajunta tesouros, e não é rico para com Deus” (Lucas 12, 18-21).
Enquanto os maus preenchem usos por causa das honras para sua própria pessoa, os bons fazem isso pelas honras e proveitos para a própria obra; eles encaram as honras e os proveitos próprios como instrumentos, e as honras e os proveitos para o uso como sendo o fim visado. Estes, no céu, estão na magnificência e na glória como os reis na terra; com efeito, eles recebem honras e riquezas apropriadas à dignidade de cada um, mas as atribuem, não a si mesmos, mas aos usos; e como todos os usos são do Senhor, eles atribuem as honras e as riquezas ao Senhor de quem elas emanam. Por esta razão eles não são como os loucos que “ajuntam tesouros para si mesmos”, mas são, ao contrário, ricos para com Deus. Eles ajuntam “um tesouro no céu que nunca acaba, aonde não chega ladrão, e a traça não rói” (Lucas, 12, 33).
É claro que as dignidades e riquezas são maldição para os maus e, conseqüentemente, temporais e perecíveis; mas são bênçãos para os bons e, conseqüentemente, espirituais e eternas. Portanto a quantidade e qualidade das posses naturais do homem não determinam a sua admissão no céu, mas antes a qualidade de seu caráter espiritual, segundo o qual as honras e as riquezas lhe são correspondentemente adjudicadas. Por esta razão os Escritos dizem que “os pobres entram no céu, não por causa de sua pobreza, mas por causa de sua vida. A vida de cada um segue-o no outro mundo, quer seja rico ou pobre. A Misericórdia não é peculiar a um mais do que a outro; aquele que viveu bem é recebido no céu, enquanto que o que viveu mal é rejeitado” (C. I. 364).
Mostramos que no céu as dignidades e riquezas são dadas aos anjos segundo a medida de seu amor e sabedoria e de acordo com a utilidade de suas vidas. A razão disso é que a Divina Providência do Senhor “visa as coisas eternas, e considera as coisas temporais segundo a sua concordância com as coisas eternas” (D. P. 214). Em outras palavras, o fim que a Divina Providência tem em vista, em primeiro lugar, é que o espírito do homem seja rico de amor e de sabedoria, e depois, que as aparências das honras e das posses mundanas lhe sejam acrescentadas em direta correspondência com sua dignidade e riqueza espirituais. Aparentemente, o fim que a Divina Providência tem em vista é que o homem seja rico em espírito; no entanto, nas palavras de nosso texto se diz: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus”.
Para que possamos compreender esta aparente contradição, devemos ter em mente que o espírito do homem não é nem Divino, nem material. O espírito do homem está colocado, por assim dizer, entre o Senhor e a natureza. Conseqüentemente, ele pode, à sua escolha, tomar sobre si um caráter de acordo com o Senhor ou de acordo com o mundo.
Já vimos que coisas temporais são todas as coisas próprias da natureza, e que estas são especialmente os espaços e os tempos, tendo ambos limite e termo (D. P. 219). Na medida em que o espírito do homem toma estas coisas para constituir o seu caráter, nessa mesma medida ele se torna temporal e perecível. É por esse motivo que os Escritos dizem que “as coisas temporais não são apenas tudo o que é próprio da natureza, mas também as coisas da natureza que são próprias do homem” (D. P. 219). Estas coisas são as que pertencem à vontade própria do homem e ao seu próprio entendimento, e as que, por conseqüência, pertencem à sua afeição e ao seu pensamento, principalmente as que pertencem à sua prudência; que estas coisas sejam finitas e limitadas, é sabido (D. P. 219). Em relação à prudência do homem, vemos nos Escritos:
“que ela procede do proprium do homem, proprium que é sua natureza, denominada a alma derivada do pai; este proprium é o amor de si e, por conseguinte, o amor do mundo... Como não pode haver amor sem seu companheiro, e como o companheiro do amor ou da vontade, no homem chama-se o entendimento, quando o amor de si inspira o entendimento, que é seu companheiro, esse amor aí se transforma em fausto da própria inteligência; esta é a origem da prudência própria do homem” (D. P. 206).
Por estas coisas podemos ver que, se fosse permitido ao homem tomar sobre si, inteiramente, as qualidades da natureza, que são todas temporais e perecíveis, ele cometeria um suicídio espiritual. Com efeito, no inferno alguns estão muito perto deste estado, e por isso se diz que são “mortos” e se chama a danação de “segunda morte” (Apoc. 10,6). Pela mesma razão se diz também que eles “reconhecem a natureza somente e que só a prudência humana constitui o inferno” (D. P. 205).
Ora, o reconhecimento da prudência humana somente, nada mais é que o amor de si; e o reconhecimento da natureza somente, nada mais é que o amor do mundo.
Aqueles que estão nesses amores são como os homens de Tiro que “por sabedoria e por seu entendimento alcançaram o poder e adquiriram ouro e prata para seus tesouros; mas contra os quais foram trazidas as mais formidáveis dentre as nações que desembainharam as suas espadas contra a formosura de sua sabedoria e mancharam o seu resplendor” (Ezequiel 28, 4-7).
Pelo que foi dito, é claro que há uma diferença entre “as coisas que são próprias da natureza” e “as coisas da natureza que são próprias do homem”. As coisas próprias da natureza são as coisas materiais, e estas não interferem necessariamente na aquisição do amor e da sabedoria celestes; mas as coisas da natureza que são próprias do homem, são especialmente o amor de si e o amor do mundo e, decorrente destes amores, a idéia da prudência própria; estes, sim, interferem na aquisição do amor e da sabedoria do céu. Por esta razão, quando se diz em nosso texto: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino do céu”, isso não significa que o homem deva ser pobre nas coisas que são próprias da natureza, mas nas coisas da natureza que são próprias do homem.
Entretanto, as coisas provenientes da natureza são semelhantes às coisas da natureza, se considerarmos que elas também são temporais e perecíveis. Por isso os escritos dizem que “a prudência humana nada é; ela apenas aparece como sendo alguma coisa” (D. P. 191). Conseqüentemente, a menos que o homem adquira do Senhor alguma sabedoria espiritual no íntimo de sua prudência natural, ele nada terá do que é espiritual e eterno; e então, na “segunda morte” ele se tornará um louco. Acreditará, como os homens de Laodicéia, que é “rico e está enriquecido, e de nada tem falta, e não sabe que é um desgraçado e miserável, e pobre, e cego, e nu” (Apoc. 3, 17). “Pois que aproveita ao homem, se ganhar o mundo inteiro, e perder a sua alma?” (Mateus 16, 26). Precisa certamente aprender a renunciar ao amor de si e do mundo, ao orgulho da própria prudência e, deste modo, a ser um verdadeiro “pobre de espírito”, “porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e o que perder a sua vida por amor ao Senhor, achá-la-á” (Mateus 16, 25). Só aquele que perde o que é temporal e perecível, é que pode obter o que é infinito e eterno, e é disto que a Divina Providência do Senhor trata primordialmente.
Mas como é então — perguntamos nós — que o homem, que é uma parte da criação e, portanto, temporal e perecível, pode receber e reter o que é infinito e eterno? Pelos ensinamentos dos Escritos vê-se claramente que o Infinito e o Eterno em Si Mesmo são o mesmo que o Divino, e que este Divino está no Senhor e, portanto, que o Infinito e o Eterno em Si Mesmo é próprio do Senhor somente, e assim, que o Divino em Si mesmo nunca poderá ser considerado como sendo próprio do homem. Os Escritos, porém, fazem uma distinção entre o Divino em Si Mesmo e o Divino de Si Mesmo. Enquanto que o Divino em Si Mesmo ou o Infinito e o Eterno em Si Mesmo, é o Senhor Mesmo; o Divino de Si mesmo ou o Infinito e o Eterno de Si Mesmo, é o Divino, é o Divino do Senhor nas coisas finitas, especialmente nos homens, nos espíritos e nos anjos (D. P. 52). Este Divino do Senhor nas coisas finitas é o Divino Procedente que também se chama Divina Providência (D. P. 55). É isto que forma o céu. Portanto, quando se diz que a Divina Providência do Senhor visa, em todas as coisas que faz, o que é infinito e eterno, deve-se ter em mente que se trata do Infinito e do Eterno de Si Mesmo ou do Divino do Senhor nas coisas finitas.
Não devemos esquecer, entretanto, que nem mesmo este Divino de Si Mesmo pode jamais ser considerado como próprio do homem. Este Divino é do Senhor somente. Contudo ele é diferente do Divino em Si Mesmo sob este aspecto, a saber: o Divino em Si Mesmo nunca pode ser dado ao homem para ser como se fosse propriamente seu, ao passo que o Divino de Si Mesmo pode, por um ato da Divina Misericórdia, ser dado ao homem para ser como se fosse propriamente seu. Esta é a razão por que o homem somente, entre todos os seres criados, é imortal.
Mas esta dádiva feita aos homens, aos espíritos e aos anjos, do Divino de Si Mesmo pelo Divino em Si Mesmo, tem antes a natureza de uma adjunção do que de uma conjunção; ou, digamos assim, é uma conjunção por contigüidade ou contato (D. P. 58). Conseqüentemente, é somente pelo contato do Senhor que pode ser dada a vida eterna ao homem. Isso é representado pelo fato de que a vida humana começa propriamente com o contato do ar com o tecido dos pulmões, segundo o ensinamento da Palavra que “Deus soprou nas narinas do homem o fôlego da vida e o homem foi feito alma vivente” (Gênesis 2, 7). Pela mesma razão, também, o Senhor, quando vivia no mundo, tocava naqueles a quem queria ressuscitar da morte ou curar de sua doença. A ressurreição da morte e a cura das doenças eram atos representativos, apenas, pois o que o Senhor fazia enquanto estava no mundo, na vida natural dos homens, Ele o faz perpetuamente em sua vida espiritual.
Por um ato da Divina Misericórdia, o Senhor, que é o único infinito e o único eterno, comunica ao homem, que é finito e temporal, as coisas infinitas e eternas da verdadeira imortalidade. Estas são o amor do Senhor e do próximo, e o amor do uso pelo próprio uso. São estas, portanto, as riquezas espirituais de que a Divina Providência especialmente se ocupa. Lembremo-nos, porém, de que elas não podem ser dadas ao homem, a não ser que ele reconheça com humildade de espírito que, em si mesmo, nada mais é que mal e que, de fato, nada é de modo algum, enquanto que o Senhor, somente, é o Bem Mesmo e, de fato, é Tudo em tudo. É assim que o homem deve ser “pobre de espírito”, se quiser receber as bênçãos celestes da vida imortal.
Amém.

Lições:   • Ezequiel 28
• Mateus 5, 1-12
• D. P. 107