OS TRABALHADORES DA UNDÉCIMA HORA


Sermão pelo Rev. João de Mendonça Lima


“Assim os derradeiros serão primeiros, e os primeiros derradeiros;
porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos.”

(Mateus 20,16)

O homem, atualmente, nasce com inclinações hereditárias para o mal; nasce com uma vontade má; porque é um fruto de sua árvore genealógica, toda ela constituída de antepassados mais ou menos maus que, por isso, lhe transmitem essa tendência inata para o mal.
Podemos ter uma confirmação dessa verdade, observando as crianças. Todas elas manifestam, desde muito cedo, um acentuado sentimento de egoísmo e de rebeldia. Querem tudo para si e não gostam de repartir o que lhes pertence. Somente quando são compelidas pelos mais velhos é que se decidem, por exemplo, a dar a um irmão algumas balas do pacote que receberam ou um pedaço da fruta que ganharam. São, em sua quase totalidade, avessas à obediência. É preciso corrigi-las constantemente para impedir que pratiquem maldades ou digam coisas inconvenientemente.  Recorrem com a maior facilidade à mentira para encobrir mesmo as menores faltas, e não têm o menor escrúpulo em se apoderarem do que não lhes pertence. Há muitas que sentem prazer em maltratar os animais. São voluntariosas, prepotentes, e gostam de impor a sua vontade aos companheiros de brinquedos. Muito longe de serem uns “anjinhos”, como se diz comumente; são, ao contrário, demônios em miniatura.
A obra educativa dos pais e professores tem que ser uma obra de constante repressão e de combate aos males que as crianças vão manifestando desde seus primeiros anos. Não fosse o aspecto de inocência com que o Senhor as reveste, para protegê-las, e seria muito difícil suportá-las pelas constantes manifestações de sua maldade hereditária.
No começo de sua vida, o Senhor as mantém em uma esfera de influxo celeste, por intermédio de anjos que impedem a aproximação dos maus espíritos correspondentes a suas más tendências hereditárias. Desta forma, essas tendências, em sua totalidade, ficam como que adormecidas e quiescentes, e a criança apresenta então esse doce, suave e atrativo aspecto da inocência que lhes empresta o influxo celeste com que o Senhor as protege.
É nesse período, isto é, nos sete primeiros anos de vida, que o Senhor implanta no íntimo da criança as relíquias celestes. Essas relíquias são estados de amor e de bondade; estados muito suaves e puros armazenados pelo Senhor no coração das criancinhas por intermédio do amor e do carinho de seus pais. Na segunda infância — entre os sete e os catorze anos, mais ou menos —, quando a criança já começa a fazer uso da razão e desperta nela o desejo de aprender, o Senhor, valendo-se de sua curiosidade, por assim dizer, instintiva, e da camaradagem e amizade que se estabelece entre companheiros de brinquedos e de estudo na escola, implanta em suas mentes as relíquias espirituais. Estas relíquias são constituídas por estados de amor ao próximo e por conhecimentos do bem e da verdade oriundos da letra da Palavra. No período seguinte — mais ou menos entre os 14 e os 21 anos — são implantadas as relíquias naturais, que consistem em sentimentos de obediência à lei e do cumprimento do dever.
No primeiro ano de sua vida as criancinhas são protegidas por anjos dos céus celestiais mais elevados. À medida que a criança vai crescendo e as suas tendências para o mal vão sendo gradativamente despertadas, esses anjos vão sendo substituídos por outros de céus celestiais menos elevados, passando depois para os dos céus espirituais e naturais, sempre em graus decrescentes de elevação; até que, por fim, quando atingem, na mocidade, o pleno desenvolvimento de sua razão, os anjos se retiram, ficando em seu lugar os espíritos do mundo dos espíritos que concordam com os sentimentos que então começam a se manifestar. O homem, com o seu intelecto já formado, está então em pleno exercício de sua personalidade, e as suas tendências hereditárias começam a arrastá-lo para o mal, fazendo com que comece a confirmar em sua conduta, tornando-os propriamente seus, os males que existiam em sua vontade apenas como simples tendências, pelas quais não era responsável.
É a existência dessas tendências hereditárias para o mal que faz com que seja muito mais fácil levar uma vida má do que uma vida boa. Para praticar o bem é preciso lutar contra a força da hereditariedade que procura nos arrastar para o mal. Para seguir um mau caminho só temos que ceder, sem luta, ao impulso dessa força. A atração que o mal exerce sobre nós é semelhante à ação da gravidade sobre os corpos da superfície da terra. Todos eles tendem a cair sempre mais para baixo. Todos nós, também, sob a ação da hereditariedade, temos a tendência para nos precipitarmos em males cada vez mais profundos.
Se o Senhor não nos amparasse, quando cessa a proteção que Ele nos dava na infância por intermédio dos anjos, não haveria possibilidade de salvação para homem algum, no estado em que a humanidade se encontra. Esse amparo Ele nos dá por meio das relíquias que armazenou em nosso íntimo. Graças a elas, não são apenas espíritos maus que se encontram em comunicação com o nosso ser espiritual. As relíquias — esses estados de bem e de verdade com que o Senhor nos dotou — permitem a aproximação de bons espíritos e de anjos, por intermédio dos quais recebemos o influxo espiritual superior, que equilibra o influxo espiritual inferior, vindo do inferno por intermédio dos maus espíritos que, por assim dizer, habitam em nossos maus sentimentos hereditários. É esse estado de equilíbrio espiritual em que o Senhor nos mantém constantemente, que nos assegura a plena liberdade de escolha entre o bem e o mal, entre a verdade e a falsidade.
É despertando as nossas relíquias, fazendo com que, de tempos em tempos, elas surjam em nossa memória consciente, que o Senhor nos faculta fazer uma comparação entre os estados bons que elas nos revelam e os estados maus de nosso hereditário. Esse despertar das relíquias se processa no sentido inverso de sua implantação.
Primeiro, são as relíquias naturais que começam a agir, suscitando-nos o sentimento do cumprimento do dever e da obediência às verdades que aprendemos na letra da Palavra. Por meio delas podemos fazer a reforma de nossa conduta, realizando a regeneração no grau natural. Nesse grau, o homem obedece à verdade, não propriamente por amor ao próximo e ao Senhor, mas porque está convencido de que esse é o seu dever. Nesse estado ainda há muito do egoísmo primitivo. O seu sentimento do dever ainda está misturado com muito orgulho, com muito amor próprio, com muita presunção, que o leva a se julgar com muito mais mérito do que realmente tem.
Possuindo muitos conhecimentos tirados da letra da Palavra e esforçando-se por aplicá-los na sua conduta, o homem regenerado no grau natural, se julga superior aos outros e critica com demasiado rigor os males alheios, sendo, entretanto complacente com os seus próprios defeitos. Depois, pouco a pouco, se persistirmos em aplicar a verdade à vida, o Senhor vai despertando as relíquias espirituais, sempre na ordem inversa de sua implantação. Começa assim a regeneração propriamente dita. Nesse período começam também as tentações espirituais, os combates encarniçados contra os nossos maus sentimentos. Passamos então por uma longa série de estados alternados de bem e de mal.
As nossas más paixões não se deixam vencer facilmente. Os maus espíritos que as excitam, aproveitam todos os nossos momentos de fraqueza ou de descuido para insuflá-las e levar-nos à prática do mal. E assim caímos muitas vezes em males de que já nos julgávamos libertados. Depois dessas quedas o Senhor desperta novas relíquias que nos fazem ver a hediondez dos males a que fomos arrastados, travando-se então no campo de batalha de nossa mente lutas tremendas entre as influências boas e as influências más, que recebemos através dos espíritos com que estamos inconscientemente consociados.
Essas lutas espirituais, que se denominam tentações, são sentidas apenas como estados de tristeza, de ansiedade, de mal-estar interno que não sabemos explicar porque não atinamos com as suas causas. Esse período é quase sempre muito longo e, hoje em dia, raramente se completa neste mundo. O homem que chega a completá-lo atinge o grau espiritual da regeneração e é movido principalmente pela fé na verdade espiritual e pela caridade ou amor ao próximo. Ninguém pode atingir esse grau da regeneração sem o conhecimento das verdades espirituais do sentido interno da Palavra, ensinadas na Doutrina Celeste da Nova Igreja.
Se persistirmos no estudo e aplicação dessas verdades, chegará um momento em que o Senhor pode começar a despertar as nossas relíquias celestiais; as que recebemos em primeiro lugar. Quando essas relíquias despertam, inicia-se então a regeneração no terceiro grau, o grau celeste. Nesse estado somos movidos, não pelo sentimento do cumprimento do dever (como no estado natural) e nem pelo amor do próximo apenas (como no estado espiritual), mas pelo amor ao Senhor e, conseqüentemente, também pelo amor do próximo e pelo sentimento do dever.
O homem celestial compreende o amor do Senhor por suas criaturas e deseja ardentemente corresponder a esse amor. Ele sabe que o Senhor tem como supremo objetivo de Seu Amor fazer a felicidade de todos os homens, tendo criado a todos para a bem-aventurança eterna no Seu Reino Celestial. Sabe também que, para realizar esse objetivo, o Senhor se utiliza dos anjos e dos homens, usando-os como instrumentos para promover a felicidade de todos. Sabendo tudo isso, o homem celestial se empenha por ser um instrumento útil nas mãos do Senhor, e em tudo o que faz visa a cooperação com Ele na obra de redenção da humanidade. Infelizmente, como nos dia Swedenborg, no estado atual da humanidade, é quase impossível encontrar na terra, um homem que tenha levado a sua regeneração até esse grau. Mesmo o grau espiritual da regeneração muito poucos são os que , hoje, conseguem atingir.
A alimentação dos céus superiores — o celeste e o espiritual — se faz, presentemente, quase que só com os que morrem na infância. A Doutrina nos ensina que todos os que vão para o mundo espiritual como crianças são criados e educados pelos anjos e, quando atingem a idade adulta vão para um daqueles céus — o celeste ou o espiritual — de acordo com o seu temperamento. A grande maioria dos adultos que consegue ir para o céu, precisa completar a sua regeneração no mundo dos espíritos porque, em geral, aqui na terra apenas lançaram os alicerces de sua estrutura espiritual. Muitos, porém, nem isso quiseram fazer e chegam ao mundo dos espíritos sem possuir bem algum, nem verdade alguma, realmente incorporados à sua vida. Esses estão irremediavelmente perdidos e terão no inferno o seu destino final.
Mas se, chegando lá e verificando que a vida continua, quiserem se emendar e alcançar a vida do céu, isso não lhes será permitido? Sim, certamente, que isso lhes seria permitido. Qualquer demônio do inferno que viesse a se arrepender e a desejar a vida do céu, seria imediatamente elevado à mansão dos justos. Ninguém é mantido no inferno contra a vontade. Não há, porém, a menos possibilidade de que um demônio venha a se arrepender. Os habitantes do inferno se encontram no estado que mais lhes agrada, no meio que mais se harmoniza com os seus sentimentos e os seus pensamentos, por conseguinte nunca lhes ocorreria pensar em trocá-lo por outro diametralmente oposto que, muito longe de lhes dar prazer, iria acarretar-lhe terríveis sofrimentos.
Assim, também, aqueles que passaram para o outro mundo, sem nunca terem querido combater os seus males enquanto viviam na terra; não terão probabilidade alguma de vir a querer mudar de vida, só porque passaram para o mundo espiritual. Eles levam consigo todos os sentimentos e pensamentos que tinham na terra. E como aqui nunca quiseram combatê-los, preferindo os imundos e grosseiros prazeres do mal, aos puros e delicados prazeres do bem, não encontrarão motivo para mudar, justamente quando passam a ter uma liberdade muito maior para gozar aqueles prazeres. Aqui, ainda havia o constrangimento da educação, dos preconceitos sociais, da reputação a zelar, e mais, o da polícia para impedi-los de dar franca expansão às suas ruins paixões. Sá esses constrangimentos externos desaparecem, deixando-os com inteira liberdade para agir como bem entenderem, desde que não prejudiquem os outros.
As relíquias naturais que despertam e começam a agir em nós, em primeiro lugar, são representadas na parábola dos trabalhadores da vinha — que tomamos como segunda lição da Palavra para esta prédica —, pelos assalariados da primeira hora cujo estado, eivado de egoísmo e presunção, não lhes permitiu compreender porque os assalariados da undécima hora receberam tanto quanto eles. A remuneração do homem que se regenera é o prazer que ele sente na prática do bem e da verdade. Em cada grau da regeneração recebemos a remuneração integral desse grau, que é o máximo de prazer que ele nos permite gozar. Assim, espiritualmente falando, a remuneração dos que se regeneram é igual para todos; porque qualquer que seja o grau que tenhamos atingido, receberemos sempre o máximo de bem-aventurança compatível com esse grau.
As relíquias do grau espiritual são representadas pelos assalariados das horas terceira, sexta e nona. Esses números são todos múltiplos de três e representam, por isso, estados da verdade ou da fé e, conseqüentemente, da caridade; porque o número “três” simboliza um sistema completo de verdades ou de conhecimentos da fé que nos levam ao amor do próximo ou à caridade. O trabalho executado por esses assalariados vem a ser os vários estágios da regeneração no grau espiritual.
Os trabalhadores da undécima hora representam as relíquias celestes implantadas nos primeiros anos da infância, as quais são despertadas pelo Senhor em último lugar. Depois de completada a regeneração no grau espiritual é que se torna oportuno o despertar das relíquias da primeira infância, pelas quais seremos conduzidos à regeneração no último grau — o grau celeste.
É por meio destas relíquias que, pouco a pouco, se desenvolve no coração humano o amor ao Senhor. São as últimas a serem despertadas e, no entanto, são as que nos levam mais longe na estrada da regeneração, colocando-nos entre os primeiros na hierarquia espiritual. A recompensa dos que alcançam esse grau da regeneração é a plenitude da bem-aventurança celeste. “No processo de nossa regeneração o Senhor vem de cima para baixo, implantando em nossos corações, de modo absolutamente inconsciente para nós, primeiro, as relíquias celestes, depois as espirituais e, por último, as naturais”.
Quando nos decidimos a empreender a obra da regeneração, temos que fazer a marcha em sentido oposto, sendo conduzidos pelo Senhor por intermédio das relíquias naturais, ao grau natural da regeneração. Depois, por meio das relíquias espirituais, ao estado espiritual e, por último, utilizando as relíquias celestes, Ele nos leva ao estado celeste da regeneração.
Vemos assim que as últimas relíquias a serem implantadas em nosso coração são as primeiras a serem empregadas no processo de nossa regeneração, e que as primeiras são as últimas a serem utilizadas, confirmando-se desse modo o que diz o Senhor no versículo final da parábola dos trabalhadores da vinha: “Assim os derradeiros serão os primeiros e os primeiros derradeiros”.
Na escada que Jacó viu em sonho, com os anjos subindo e descendo, temos outra aplicação das palavras deste versículo. Os anjos que subiam representam as verdades da Palavra que, introduzidas em nossa memória, ascendem gradualmente ao nosso entendimento racional e depois à nossa vontade. Quando isso se dá, as verdades que, a princípio, tinham sido recebidas na memória como simples conhecimentos, transformam-se em princípios de vida racionalmente compreendidos e amados; descendo então à nossa mente externa onde são aplicados na reforma de nossa conduta. Os anjos que desciam representam assim aquelas verdades baixando do íntimo de nossa vontade aos nossos atos externos.
E o Senhor estava no topo da escada porque Ele é que dirige todo o processo de nossa regeneração, fazendo que as verdades, primeiramente recebidas na memória, se tornem por último os princípios vivos de nossa vida prática. Subiram como “primeiros” e desceram como “derradeiros” para executar a nossa redenção espiritual.
O Senhor conclui a parábola, dizendo: “porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos”. São “chamados” todos os que recebem conhecimentos da verdade; é a verdade que nos chama para a prática do bem, elevando-se pela escada interior de nossa mente, até o topo de nosso amor por ela. São “escolhidos” apenas aqueles que escolheram o bem que a verdade ensina. Só aqueles em quem as verdades, tendo atingido a sua vontade, o seu amor, desceram depois ao seu homem externo para serem aplicadas à vida.
São muitos os chamados porque a verdade alcança a quase todos os homens sobre a terra. São poucos os escolhidos porque em relação ao número dos que recebem conhecimentos da verdade, é pequeno o número dos que aplicam os seus ensinamentos à vida.
No processo da regeneração somos, primeiramente, chamados pela verdade e, por último, escolhidos pelo bem que adquirimos com a aplicação da verdade à vida. Depois de escolhidos pelo bem, este assume em nossa mente o papel preponderante que, a princípio, cabia à verdade. Esta que foi “o primeiro” a atuar, chamando-nos para a regeneração, torna-se depois o “derradeiro”, cedendo o seu lugar ao bem pelo qual somos realmente escolhidos para o céu. “Assim os derradeiros serão primeiros, e os primeiros derradeiros; porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos”
Amém.

•   1ª Lição:     Gênesis 28, 10-17
•   2ª Lição:     Mateus 20, 1-16