OS POÇOS DE ABRAÃO


Sermão pelo Bispo N. D. Pendleton


“E tornou Isaac, e cavou os poços d’água que cavaram nos dias de Abraão seu pai, e que os filisteus taparam depois da morte de Abraão,
e chamou-os pelos nomes que os chamara seu pai”

(Gênesis, 26,18).

A razão da vinda do Senhor ao mundo se encontra na necessidade que o homem tinha desse socorro. Esta necessidade surgiu com o começo do declínio da raça. Quando a queda se completou, o Advento do Senhor tornou-se imperativo. Contudo a sua realização foi deferida por muitas idades pelo poder da profecia. A necessidade de Sua Vinda proveu do fato de se ter tornado tão completa a queda do homem, que o seu restabelecimento só podia ser efetuado pela presença pessoal de Deus no mundo. E o Advento do Senhor realizou-se quando a queda foi levada ao extremo, isto é, quando cessou a eficácia do poder da profecia, o que ocorreu no fim da Igreja Judaica.
A consumação da Antiqüíssima Igreja marca o fim do primeiro período religioso do homem. Seguiu-se uma série de restaurações efetuadas, no primeiro momento, por uma radical alteração, tanto mental como física, do estado da criatura humana. Essas restaurações foram assinaladas por uma sucessão de Igrejas, cujo poder espiritual era devido às sucessivas promessas do nascimento do Senhor no mundo. Essas Igrejas Antigas eram, portanto, messiânicas, pois adoravam o Senhor que ainda estava por vir. A sua confiança estava nas profecias e nisso encontravam o poder de salvação. Entretanto, à proporção que essas Igrejas se sucediam, ia-se processando um decréscimo de capacidade de corresponder à influência espiritual da profecia, até que, finalmente, já não havia mais reação.
Foi então que um Homem nasceu no mundo — a semente da mulher — o qual, por Sua presença, trouxe a Face Divina para encontrar-se com o mundo dos homens. Desse fato resultou uma mudança fundamental nas relações de Deus com os homens. A comunicação tornou-se mais poderosa externamente. Esse acréscimo de poder era necessário, porque a antiga relação havia falhado. Chegara o momento em que a profecia não tinha mais as luzes da atualidade — a atualidade da presença pessoal e do contato, como de homem para homem. A profecia não era atualidade, mas um representativo dela. A representação era uma característica de todas as Igrejas pré-cristãs e era feita por mediação angélica. Mesmo a Antiqüíssima Igreja pertence à série das Igrejas representativas. Suas representações eram, contudo, da mais elevada ordem, quase puramente espirituais, eram celestialmente percebidas e não ainda transformadas em ritos externos. Essas representações de derivação celestial caíam, contudo, em formas naturais, mas naqueles que eram puramente naturais e não artificiais. Daí a regeneração espiritual dos homens daquela primeira Igreja ser figurada no arrojado esboço da criação do mundo, e isto em uma série representando a sétupla ascensão dessa regeneração.
Os Escritos nos dizem que os membros daquela Igreja falavam com Deus face a face. Na verdade, eles conversavam com Jeová Deus Angélico, isto é, com um anjo de que Deus se utilizava para comunicar-se com os homens; estes não se comunicavam, porém, face a face com o Homem-Deus, no mundo da natureza. Daí terem sido essas primeiras Igrejas antigas classificadas como Igrejas representativas.
Existia nos homens a tendência para tornar os representativos do ritual cada vez mais formais. Essa tendência ia aumentando com o declínio da raça humana. As elevadas percepções dos primeiros homens foram formuladas, não em ensinamentos racionais, mas em expressões simbólicas. Essas expressões foram herdadas pelas Igrejas sucessivas e por elas diversificadas e aumentadas, até encontrarem sua final e autêntica concentração na Lei e cerimonial judaicos. No íntimo do ritual judaico havia, entretanto, uma inovação, completamente desconhecida pelos homens da Antiqüíssima Igreja, a saber, o altar dos sacrifícios. Esse altar, em sua significação histórica, era levantado para o aplacamento de Deus, por meio de derramamento de sangue.
Embora a Vinda do Senhor ao mundo fosse o único meio pelo qual o declínio do homem podia ser anulado, as promessas pré-cristãs de Seu Advento preenchiam a história do desenvolvimento racial e davam ao mundo a Sagrada Escritura. Essa Escritura corporificava as promessas de Seu Advento e fazia possível Sua Vinda na plenitude dos tempos; habilitando-O a abranger no Humano assumido os efeitos de todas as idades passadas. Cada uma destas idades era um passo definido nessa preparação e todos eles eram exigidos pela sabedoria da Providência. Quando, por fim, Ele veio, era uma síntese da humanidade. N’Ele a totalidade dela estava corporificada; n’Ele a plenitude da vida prometida estava cumprida; n’Ele a vida foi glorificada.
As idades passadas, em seu variado e rico desenvolvimento, produziram uma vasta acumulação de verdades antigas, semelhantes à sabedoria angélica em sua natureza. Essas verdades, outrora abertas e transparentes, estavam, por ocasião do Advento, como um código e eram empregadas num ritual que não guardava conformidade com elas. Embora gradualmente fechadas, elas estavam incluídas em formas de significação esquecida, de uma perdida significação espiritual, que exigia uma reabertura da mente humana, a fim de que se pudesse ser restabelecida a ligação entre as idades passadas. Essa ligação só podia ser efetuada substancialmente, no Senhor Mesmo, e ser viria de fundamento para o pleno efeito de Sua glorificação. O corpo das antigas verdades, envolvido em palavras e em rituais de qualidade inferior e sem significação, readquiriu sua virtude e foi trazido para a luz com o Advento do Senhor que representava, Ele mesmo, esse corpo de verdades. Assim, Ele tornou-se o Divino Isaac que abriu os antigos poços de Abraão, fechados pelos filisteus.
Ele era um homem nascido de uma mulher e as coisas que aconteciam n’Ele, aconteciam, semelhantemente, nos outros homens. Os valores humanos saíam do passado e davam cor e riqueza à vida. Uma coisa em seu começo é como uma história ainda não contada. Precisa desenvolver-se até que a semente de seu começo seja transformada em uma forma completa da vida. Então o começo e o fim se encontram e se juntam, então o começo flui no fim e o fim volta a seu começo. Quando o fim é alcançado, o passado torna-se um depósito de riquezas armazenadas no seu interior. A verdade antiga é guardada no celeiro e uma festa é anunciada.
O Senhor, depois da ressurreição, expôs a dois de seus discípulos “as coisas que lhe diziam respeito em toda a Escritura” e todas as coisas da Escritura foram escritas com referencia a Ele. Esse livro, repositório de verdades das Antigas Igrejas, foi formado pela Providência para incluir tudo, de modo que uma plena representação dos mistérios Divinos fosse apresentada aos olhos dos anjos. Essa representação, entretanto, era expressa em palavras que relatavam a história religiosa externa, da raça desde o tempo em que havia comunicação íntima com Deus e uma perfeita percepção de Sua vontade até ao período das representações cegas — tão cegas, com efeito, que, embora os Divinos Mistérios fossem revelados aos anjos, ficavam escondidos à percepção dos homens.
Assim, a significação real das verdades foi sendo facilmente esquecida pelas gerações que se sucediam. Os rituais respectivos, embora não mudassem, escondiam as verdades que, na origem, eram manifestamente reveladas.
Quando os rituais sofriam mudança para que tudo quanto se passasse na história da raça fosse recordado e representado, o Senhor provia para que não somente os mistérios puramente Divinos e as elevadas percepções da Antiqüíssima Igreja estivessem contidas naqueles rituais, mas também todas as ocorrências da estranha história do homem, desde o seu primeiro estado celestial — e através de seu declínio e queda —, até o ponto revitalizante de Seu Advento e da redenção.
Essas antigas verdades, semelhantemente à sabedoria dos anjos, escondidas em mitos e, algumas vezes, em ritos triviais e em leis tradicionais, foram, por ocasião da Vinda do Senhor, abertas por Ele. Ele pôde fazer isso porque as corporificou como Sua herança racional, derivada dos cânticos e histórias, das leis e profecias de Seu povo.
Tesouros de vida sempre vieram do passado, e quanto mais profundo o passado, maior o tesouro. Uma santidade especial se desprende das eras primitivas, um elevado grau de poder deriva das primeiras impressões da vida as memórias da infância são o Santo dos santos do homem. As impressões mais desagradáveis na vida de um homem provêm da destruição de suas primeiras afeições. Se elas não puderem ser recordadas por um processo ulterior, a perda torna-se muito grave, mas se o puderem, a mente, em certos estados de rememoração, será alimentada com uma ternura peculiar e uma vivificante influência.
Quando esteve neste mundo, o Senhor punha em circulação, em Si Mesmo, a corrente da Vida integral com as sagradas memórias de Sua infância — memórias dos ritos e símbolos da Igreja em que Ele tinha nascido. O homem cujo passado fosse cortado, não gozaria da vital influência humanizadora da recordação dos dias de sua infância —, dias felizes que são dados a todos os homens, mesmo aos nascidos no meio do pecado e da iniqüidade. A lembrança desses dias é conservada pelo Senhor a despeito de todos os males que o homem venha a praticar depois. Eles constituem e corporificam a esperança do homem na vida eterna. São dias de paz e de prazer, de ternas afeições, de gratidão e de felicidade — dias puros em que a vida ainda não foi tocada pelo veneno da falsidade, em que a avidez do eu ainda não começou a borbulhar.
Os poços de Abraão são cavados nesses dias primitivos. Mais tarde, eles são tapados pelos filisteus, isto é, pelo pessimismo do homem. Entretanto esses poços de água podem e devem ser reabertos. Foi o que fez o Senhor, abrindo-os para Si mesmo e para toda a humanidade, quando revelou a sabedoria dos Antigos, contida nas memórias de Sua infância, aos homens que O ouviam. Ele passou por esses poços e relembrou os estados de Sua infância. Assim fazendo, repetiu em Si Mesmo a história viva da raça desde seu começo, glorificando-a em Si Mesmo.
Nos homens a história de Seu nascimento tornou-se a mais sagrada de todas as memórias. Em torno da história da Natividade e de suas recordações são colhidas afeições que, se não forem impregnadas por influências destrutivas, irão conosco através da vida e se tornarão fontes de onde brotarão íntimas bênçãos espirituais. Essas recordações trazem-nos alguma coisa de imortal, proveniente de nossa vida infantil. Elas são os nossos poços de Abraão, contendo águas cristalinas e doces que alimentam os campos ressecados de nossa vida adulta.
É bem verdadeira a expressão de que “a verdade está em um poço”, referindo-se àquela terna verdade que conduz à vida eterna, àquela fonte que jaz profundamente escondida no passado da raça ou do indivíduo, ou nos rituais das antigas religiões e nos símbolos da infância. Nenhuma verdade é tão sagrada em contato com o Divino, nenhuma tem produzido amores mais elevados na vida ulterior. Mas isso só se verifica quando os antigos ritos e os símbolos da infância são tocados e despertados pelo mágico poder da mente racional. Só assim aquela verdade antiga revela seus mistérios e os símbolos da infância mostram seu íntimo conteúdo de amor.
“E tornou Isaac, e cavou os poços d’água que cavaram nos dias de Abraão seu pai, e que os filisteus taparam depois da morte de Abraão, e chamou-os pelos nomes que os chamara seu pai”. A mente racional representada por Isaac, deve interpretar os representativos dos Antigos e os símbolos da infância, porém não na dura luz da razão natural. Deve interpretá-los segundo o racional espiritual, representado por Abraão. O racional espiritual interpreta os representativos perceptivamente, simpaticamente, com reverência, mantendo sua integridade e sua santidade. Só assim eles concedem o seu conteúdo da verdade antiga e sua sabedoria do começo da vida, só assim eles se tornarão poços de águas vivas no homem, como o foram no Senhor, quando Ele expunha a Seus discípulos “em toda a Escritura as coisas concernentes a Ele mesmo”.
Pois a Escritura, mesmo como um registro da história, refere-se inteiramente a Ele. Ele foi a sua concretização e ela estava circunscrita a Ele. Ele repetiu em Si mesmo o curso da Escritura desde o começo; cumpriu-a inteiramente e, por fim, transcendeu-a com Sua glorificação. Contudo a Escritura permanece, tal como a sarça do deserto que, queimada pelo fogo, não se consumia.
A letra da Escritura permanece na plenitude de sua santidade, depois que seu sentido interno foi revelado. Os vasos da antiga sabedoria não são destruídos quando sua significação se torna manifesta. A infância e a meninice permanecem com seus símbolos sagrados depois que a mente racional extrai o conteúdo espiritual. Isaac reabre os poços de Abraão e chama-os pelos mesmos nomes que seu pai lhes dera.
Amém.

Lições:   • Gênesis 26, 12-25
• João 4, 3-15