ORGULHO HUMANO


Sermão pelo Rev. Hugo Lj. Odhner


“Os olhos altivos dos homens serão abatidos, e a altivez dos varões será humilhada; e só o Senhor será exaltado naquele dia. Porque o dia do Senhor dos Exércitos será contra todo o soberbo e altivo,
e contra todo o exaltado para que seja abatido”

(Isaías 2, 11-12).

O espírito da religião é o de humilhação do eu e exaltação do Divino. Não pode haver vida religiosa nem regeneração sem um profundo sentimento de nossa incapacidade espiritual e da nossa completa dependência do Senhor, assim como o reconhecimento de nossa desvalia e de nossa culpabilidade. E não é suficiente reconhecermos isso cegamente, lamentando partilhar de uma condição geral herdada por toda a espécie humana; mas cada um de nós precisa descobrir o seu mal particular e esforçar-se por evitá-lo como pecado contra Deus.
A religião não se originou no homem, mas vem do Senhor através de Suas Divinas Revelações. Por si mesmo, o homem não pode ver o seu próprio estado — não pode ver que aquilo que faz tendo o eu em vista, ou tendo em consideração a si mesmo, é mau. Toda criança, sem dúvida, nasce na inocência, e não está em falta porque não pode refletir sobre o seu estado, agindo simplesmente de acordo com a sua natureza. Acontecia o mesmo com o povo mais antigo da terra, antes dos males terem sido confirmados na raça humana. Viviam na inocência, de acordo com a ordem da criação. Não tinham conhecimento de qualquer desejo oposto à vontade de seu Criador. Com efeito, embora tivessem consciência de sua própria individualidade, compreendiam que a vida era do Senhor unicamente, e a sua felicidade estava nessa percepção, sabendo que a aparência de que viviam por si mesmos lhes era dada pelo Senhor para que pudessem agir como de moto-próprio.
Mas, com o decorrer do tempo, os homens foram se inclinando, gradualmente, para acentuar os seus sentimentos de vida própria e desprezar tudo o que não fosse propriamente seu ou não proviesse de sua própria escolha, desconfiando de tudo que não fosse confirmado por sua própria experiência ou decidido por seu próprio julgamento. É isso que significa “comer da árvore do conhecimento do bem e do mal”. A serpente que os inspirou era o amor de si, que acabou por fazer com que a sua inocência e humildade primitivas fossem substituídas pela confiança no eu. Pela primeira vez, então, conheceram a vergonha e o medo, que perverteram a sua sabedoria, fazendo com que se transformasse em uma prudência vigilante e astuta que procurava encobrir as manifestações do mal. Gradativamente, foram assim levados às fantasias e falsidades persuasivas que sustentavam seus sentimentos de amor próprio e os ensoberbeciam até a arrogância e à intolerância, e ao desprezo pelos outros, chegando, por fim, a considerar-se “como deuses, sabendo o bem e o mal”.
Foi desse modo que nasceu o orgulho humano que, daí por diante, tornou-se insto no proprium do homem por hereditariedade, sempre acrescido do que ia sendo adquirido pela vida do mundo. Logo que o proprium — o sentimento de vida própria — se levanta na criança, e ela sente a luta entre a sua própria vontade e a vontade dos outros, e o seu entendimento começa a se tornar consciente, ela então começa a sentir prazer em experimentar a sua própria importância e em engrandecer-se a seus próprios olhos e, se possível, aos olhos dos seus companheiros também. A princípio isso é feito em puras fantasias, tornadas inofensivas, e até úteis, por uma esfera de inocência  que desce do Céu para protegê-la contra a confirmação do mal.
Esta inocência é insinuada nos brinquedos infantis em que as crianças se imaginam grandes e tendo já as preocupações e honras dos adultos. Isto se prolonga, de certo modo, na jactância pueril dos rapazes sobre a sua força física e sobre os seus conhecimentos, e na afetação das meninas com o empenho de mostrar uma sedução ainda não amadurecida.
Os Escritos nos mostram que os prazeres da competição e da proeminência, que dá à criança o sentimento do mérito e da própria importância, são elementos necessários ao desenvolvimento da mente natural, e servem como bens mediatos para a introdução das verdades e dos bens genuínos, podendo, depois, ser separados, embora isso, às vezes, seja difícil (A. C. 3986).
Se esses estados não forem, porém, separados em tempo para abrir caminho aos bens e verdades genuínos da vida regenerada, que se funda na humildade e no arrependimento, eles se levantarão contra o Senhor e contra a inocência e a verdade, que são os únicos meios de salvação do homem; e então aquele velho orgulho humano que atraiu o julgamento de Jeová.
O profeta Isaías, em sua visão, viu uma Jerusalém restaurada, no futuro — Jerusalém a que se congregariam todas as nações para aprender os caminhos do Senhor — uma cidade de que procederia a lei, onde as espadas se transformariam em enxadas e onde não se falaria mais em guerras. Mas viu também, mais próximo dele, uma outra terra, rica e poderosa — uma terra cheia de ídolos — onde os descendentes de Jacó se misturavam com os pagãos para cultuar as obras de suas próprias mãos. E o profeta advertiu-os que o dia de Jeová viria, quando então o orgulho do homem seria dobrado e a altivez dos varões seria humilhada; quando todos os que estavam exaltados sofreriam o julgamento que cairia sobre todos os cedros do Líbano e sobre os carvalhos de Bashan, e sobre todos os navios de Tarshish, e sobre todas as altas torres e muros e montanhas, e sobre os ídolos e as pinturas desejáveis, até que os homens, com medo e vergonha, procurassem refúgio nas cavernas e lançassem fora os seus preciosos ídolos — quando o Senhor se levantasse para sacudir a terra.
Este terrível julgamento, indispensável para que a sonhada Sião de paz pudesse se tornar uma realidade, não é um mito — um distante dia de desgraça — como muitos pensam. Ele vem a cada um de nós, certamente, ele vem repetidamente ao nosso espírito sempre que a nossa imaginária segurança é despedaçada pela quebra das frágeis escoras que sustentam o nosso orgulho.
Para o homem não há tragédia mais pungente do que um golpe em seu orgulho. Pois o orgulho é a muralha que erguemos para proteger o nosso proprium a fim de que coisa alguma nos arranque o sentimento de nossa dignidade pessoal. Não há pessoa alguma desprovida desse orgulho, por mais pobre ou ignorante que seja; porque o proprium é o amor próprio do homem que está sempre na defensiva e pronto a se voltar para tudo que julga útil à sua própria estima. Dá grande importância a todos os dotes que recebeu de seus antepassados, e a tudo o que a riqueza ou a posição, ou as circunstâncias de seu nascimento lhe trouxeram. Torna-se vaidoso da beleza de seu corpo ou de sua força mental; orgulha-se de sua ambição natural e dos talentos que herdou. Com profundo desrespeito pela lógica, procura desenvolver a arrogância racial e o desprezo pelos fracos, pelos incultos e pelos desprotegidos, e jacta-se mesmo de sua boa fortuna como se ela fosse uma conquista sua.
Aos olhos do homem cheio da própria estima, suas pequenas virtudes são ridiculamente engrandecidas acima de tudo que seria razoável, pois o orgulho nada quer saber da verdade. É, essencialmente, uma satisfação com o seu eu, seja ele justo ou injusto. Não é restringido por lei alguma, nem delimitado por qualquer obrigação. O seu ancestral é, com efeito, aquela velha serpente, que é o pai da mentira, e de quem o Senhor disse: “Quando ele fala mentira, fala do que é seu próprio” (João 8,44). O orgulho engendra a presunção. Presunção de conhecimentos e de experiência, e também de poder. Presunção de posição, de classe e de cultura. Presunção de beleza ou de finura. Ampara a nossa ignorância e defende as nossas loucuras, mesmo quando nós as reconhecemos. Disfarça a nossa corrupção interna aos nossos próprios olhos, de modo que nos tornamos incapazes de examinar os nossos motivos reais e os nossos erros de julgamento. Impede o nosso arrependimento genuíno e se satisfaz dando explicações que justifiquem os males e falsidades a que o amor de si está ligado.
O orgulho toma a aparência de força e coragem, e de uma firme convicção; mas na realidade é uma forma de covardia moral e espiritual. Provem do temor de reconhecer as fraquezas ocultas da natureza humana, temor de assumir a responsabilidade de examinar os nossos males e encetar a longa luta pelo arrependimento. E quanto mais tempo for protelado o nosso próprio exame, mais difícil ele se tornará; o orgulho do amor de si leva suas raízes até ao fundo — até ao interior subconsciente — da mente. Se os males se manifestam, a despeito da prudência do homem; se ele se convence de erro, de engano ou de falsidade de opinião, o orgulho lança a culpa sobre os outros, em vez de procurar as causas reais em si mesmo.
O proprium do homem tem medo de qualquer coisa que ameace o governo do amor de si, que é o seu centro e a sua verdadeira vida. É sensível a qualquer observação ou crítica, e é lento em procurar conselho ou em aceitar advertências. O (seu) orgulho amarra a língua do homem para que não admita que está em dúvida ou na ignorância. O orgulho enche-nos de constrangimento ou de ressentimento quando outros nos excedem em alguma competição, e nos faz exultar e alardear quando alcançamos sucesso. Leva-nos a repelir com violência qualquer provocação, mesmo quando a razão e a paciência seriam suficientes.
Os Escritos falam de dois tipos de orgulho insidioso, ambos nascidos do proprium — o da vontade e o do entendimento.
A vontade dá nascimento a um orgulho pelas nossas realizações ou pelo nosso caráter; orgulho que é o sentimento do mérito de nossa própria bondade, de nossa própria habilidade ou de nosso próprio estado. Daí resulta inevitavelmente o desprezo pelos outros e também a intolerância religiosa proveniente da presunção de nossa superioridade espiritual. Secretamente, talvez subconscientemente, o orgulho do mérito próprio anseia por bajulação e por exaltação, e também por ascendência sobre as almas dos outros homens. O Divino do Senhor não pode influir em um coração orgulhoso desta espécie. Contudo a atribuição do mérito a si mesmo é, de fato, desculpada e mesmo encorajada por muitos credos religiosos, e pela idéia comum de que a salvação é alcançada pelo cultivo das boas obras, sem qualquer renúncia prévia dos males como pecados contra Deus.
Mas o entendimento também tem o seu orgulho — o fausto da própria inteligência. Este fausto ou presunção é um grande estímulo para o cultivo da inteligência; mas é também um grande obstáculo para a fé e o progresso espirituais, porque limita o homem às suas próprias opiniões, formadas por sua própria experiência, e cega-o para qualquer verdade que não tenha sido descoberta por seu próprio raciocínio. Essa presunção ufana-se em parecer original. Na leitura da Palavra de Deus, procura sutilmente torcer a sua significação para favorecer as próprias opiniões, e quando não o pode fazer, rejeita-a inteiramente. Confia só em si mesmo. É, portanto, um mal terrível que o homem deve evitar e detestar quando passa da infância para a idade adulta e começa a pensar por si mesmo (A. E. 803-3).
Esta exaltação interna de seus próprios poderes intelectuais deve ser evitada, como nos ensina a Doutrina, como um pecado contra a Palavra. Ela destrói a possibilidade de receber a luz espiritual, pois a luz do Céu vem somente para os humildes de coração. Swedenborg nos diz que certos espíritos que forçaram a entrada do Céu, ficaram incapazes de ver qualquer anjo e qualquer das habitações angélicas, porque os seus olhos tinham sido fechados pelo orgulho (S. D. 4916). E isso acontece mesmo na vida humana: o orgulho e a presunção fecham os nossos olhos às boas qualidades dos outros, e aos dons de sabedoria que o Senhor nos oferece por meio do próximo.
O orgulho é uma barreira, não somente contra o Senhor, mas também contra os homens. Assim é que, como nos ensina a Doutrina, o homem não pode verdadeiramente receber o amor de sua esposa, enquanto está no fausto da própria inteligência. Pois o orgulho do proprium não tolera um igual, e nunca pode tornar-se amor conjugal, permanecendo sempre escortatório (C. L. 351). Semelhantemente, a mulher que, por vaidade, deseja a admiração de outros homens além do seu marido, passa do amor conjugal para o amor do sexo (C. L. 330). O orgulho é também a causa da emulação ou esforço para alcançar o predomínio ou a dominação que tão freqüentemente produz o frio espiritual entre os cônjuges, transformando seu amor em amizade servil em que a conjunção interior é impossível (C. L. 248 e 250).
Dá-se o mesmo com outras relações humanas. O orgulho e a presunção levantem-se como um frio e alto muro em torno do proprium de cada homem, de cada nação, de cada raça, impedindo o entendimento, a cooperação e o amor mútuo.
Esse muro precisa ser derrubado. Para que a Nova Igreja possa ser construída entre os homens é indispensável que tal muro não permaneça de pé. Pois nesta Nova Jerusalém — a morada da paz espiritual —, “os homens não estarão no conhecimento, concernente a Deus, pela luz natural que provém de sua própria inteligência, e da glória emanada do orgulho”, mas gozarão da clara luz da Divina Revelação dada pelo Senhor mesmo (A. R. 940). Os homens não podem reclamar participação ou crédito algum no que o Senhor revelou, ou encarar como obra propriamente sua a bênção que lhes advém por seguirem Sua Doutrina. “Os reis da terra” devem assim “trazer sua glória e honra” à Cidade Santa atribuindo toda glória e todo mérito ao Senhor (A. R. 921 e 923).
“O orgulho do homem deve ser destruído”! O muro do orgulho deve ser demolido — e demolido pelo próprio homem. É inútil tentarmos auxiliar o próximo, nesse assunto, assumindo, sem autoridade para isso, o encargo de derrubar o seu orgulho, escarnecendo-o ou maltratando-o com ataques indiscriminados. Pois isso constituiria uma invasão nos domínios privados que cada um de nós tem o dever de respeitar nos outros. Essa invasão indébita resultaria apenas em hostilidade e desconfiança do proprium eriçado e ofendido. A instrução e a disciplina são realmente necessárias, não somente na educação da juventude, mas também em toda sociedade humana, pois sem elas o proprium se tornaria de tal modo imperioso e absorvente que poria em perigo os usos comuns. Mas a caridade respeita a liberdade dos outros e protege os seus tão queridos sentimentos de responsabilidade individual, que estão de tal modo ligados a seu orgulho que os homens muitas vezes não podem distingui-los. Os Escritos nos ensinam que, às vezes, aquilo que aparece como orgulho e altivez, é apenas um hábito externo contraído na mocidade e que pode ser extirpado, escondendo, freqüentemente, uma modéstia profunda (A. C. 2219). Por outro lado, um orgulho interno pode esconder-se por trás de uma falsa humildade.
É a confiança interna e a auto-suficiência que deve ser quebrada, e quebrada com o nosso próprio consentimento racional. A nossa preciosa auto-importância, que afasta o nosso espírito do Céu e do Senhor, precisa ser destruída. Um coração quebrantado e contrito! Eis o supremo sacrifício! E nada menos do que somente isso será bastante para a nossa salvação! Quando abandonamos o orgulho, desprezamos tudo para seguir o Senhor; e não podemos ser Seus discípulos de (qualquer) outro modo.
Como pode isso ser exigido de um homem? Se o respeito próprio desaparecer, o que resta? Essa humildade não é um sinal de fraqueza, uma ofensa à dignidade da vida humana?
Aqui a Doutrina e o senso comum se combinam para responder que a dignidade e a honra da vida humana pertencem, não à pessoa ou ao proprium do homem, mas aos usos que ele desempenha, aos usos da caridade que ele assumiu. É no uso que ele humildemente desempenha para o próximo e a sociedade, para a Igreja e o Céu, que o homem se eleva acima dos animais e vem compartilhar a glória refletida do Senhor. Nenhum poder, nenhuma riqueza, nem o renome da família, nem títulos de espécie alguma, constituem padrão dessa dignidade interna sobre a qual o homem nem ousa refletir, quando não a reclama como propriamente sua, embora ela não lhe possa ser retirada, nem mesmo depois da morte.
Essa dignidade pode ser alcançada pelo homem naqueles momentos felizes em que se esquece de si mesmo no amor do uso; mas só pode ser conservada pelos pobres de espírito, isto é, pelos que não têm mais orgulho. Não é medida pelas honras ou cargos concedidos pelos homens, nem pelas aclamações da multidão. Essa dignidade é medida pela maneira que o homem emprega para discernir os propósitos espirituais do Senhor, e pelo amor com que consagra a sua vida em servir a esses propósitos, em vez de cuidar só de si mesmo.
Amém.

Lições:   • Isaías 2, 1-17
• Lucas 14, 7-14; 25-33
• H. H. 389-390


Não se deve pensar que a palavra proprium seja algum termo técnico de teologia; pois proprium significa simplesmente o eu próprio — um sentimento da individualidade humana, o sentimento da vida própria, o sentimento do domínio e do controle com que o homem reveste a sua mente, reclamando direitos inatos à sua própria vontade e presumindo como verdadeiro tudo o que em conseqüência possa pensar em seu entendimento.