O SAL DA TERRA


Sermão pelo Rev. João de Mendonça Lima


“Vós sois o sal da terra.”

(Mateus, 5,13)

A água e o azeite não se podem ligar, formando uma mistura homogênea se, antes, não tivermos dissolvido sal na água. Sem o sal, a água e o azeite não permanecem unidos, separando-se inteiramente logo que cesse a influência que momentaneamente os misturou. O sal é, pois, o elemento conjuntivo que une a água ao azeite, tornando permanente a sua mistura. Devido a essa propriedade, o sal representa, na Palavra, a afeição da verdade pelo bem.
Quando aprendemos a verdade, a sua afinidade pelo bem faz nascer em nós o desejo de praticá-lo. Essa afinidade provém de sua origem, que é o Senhor, no Senhor esses elementos estão indissoluvelmente unidos e assim emanam d’Ele para as Suas criaturas. Para recebê-los, o homem dispõe de dois receptáculos: um apropriado à recepção da verdade, que é o entendimento, e o outro apropriado à recepção do bem, que é a vontade. De modo que a verdade e o bem, emanando unidos do Senhor, na recepção pelo homem, são separados; sendo a primeira recebida pelo entendimento, e o segundo pela vontade. A sua reunião se fará, depois, na conduta ou na vida do homem, sob a forma de boas ações, onde o bem e a verdade aparecem novamente em seu casamento celeste.
De acordo com a ordem de sua criação, à medida que fosse recebendo as verdades no entendimento, o homem devia ir recebendo, paralelamente, os bens na vontade; e em sua vida deveriam ir aparecendo as boas ações resultantes da união do bem com a verdade em seu homem externo. Como, porém, essa ordem foi profundamente alterada pelos homens, eles nascem agora com uma vontade hereditária má, que transforma os bens em males; e o seu entendimento sob o domínio dessa vontade má transforma as verdades em falsidades, resultando daí as más ações de sua conduta.
Para que os homens assim decaídos pudessem se regenerar, o Senhor tornou o entendimento independente da vontade durante a permanência deles no mundo material. De modo que, hoje, eles podem receber a verdade no entendimento, raciocinar sobre ela e compreendê-la, não obstante terem a vontade cheia de males de toda espécie.
As verdades assim recebidas e compreendidas habilitam o homem a conhecer a natureza má de seus sentimentos; e ele poderá, então, se quiser, impedir que esses maus sentimentos se transformem em más ações. Se, fazendo bom uso da liberdade espiritual, impede a manifestação externa dos males de sua vontade, por serem pecados contra Deus, então, o Senhor irá criando nele uma nova vontade apropriada à recepção do bem. Mas para isso é necessário que, recebendo a verdade, o homem receba também o desejo que a verdade possui de se unir ao bem. Não basta receber e compreender a verdade; é preciso, além disso, que queiramos realmente seguir os seus ensinamentos, que queiramos trilhar o caminho que ela nos aponta. E esse caminho conduz necessariamente ao bem, porque a verdade não pode viver sem estar unida a ele. Para que a verdade tenha vida duradoura em nós é indispensável que se uma ao bem em nosso coração e em nossa vida. A verdade que permanece simplesmente na memória ou no entendimento, sem que façamos qualquer esforço para aplicá-la aos nossos atos, é uma coisa inútil, de nada adianta senão “para se lançar fora, e ser pisada pelos homens”.
A verdade, que é representada pela água, precisa ter sal para poder se unir ao bem, representado pelo azeite. O sal é o interesse que a verdade desperta em nós, pelo bem. Sem esse interesse, sem esse sal, a verdade fica insípida, não desperta o nosso apetite pelo bem, não serve para salgar, isto é, não serve para facilitar a assimilação do bem. Quando recebemos a verdade, precisamos nos interessar por ela; e não recebê-la por mera curiosidade apenas. Devemos recebê-la no seu próprio espírito, isto é, com o desejo de que ela nos leve ao bem.
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O homem natural, o homem externo, é representado na Palavra pela “terra”, enquanto que o homem interno ou espiritual é representado pelo “céu”. O homem interno é regenerado quando recebemos e compreendemos a verdade, mas a nossa regeneração só se completa quando o homem externo está regenerado também. Para que este seja regenerado é indispensável que apliquemos a verdade à nossa conduta, combatendo os seus males como pecados contra Deus. Isso só se realiza quando desenvolvemos em nós o interesse pela verdade, quando as verdades — como os discípulos do Senhor — se tornam “o sal da terra”, estimulando o apetite de nosso homem natural pelo bem. “Vós sois o sal da terra”, disse o Senhor aos seus ouvintes.
É preciso que este “sal”, este interesse, esta afeição pelo bem, permaneça vivo em nossa mente; porque se o nosso sal se tornar “insípido, com que se há de salgar?” com que estimularemos a prática do bem em nossa conduta? As verdades insípidas, as verdades que não despertam o nosso interesse pelo bem, “para nada mais prestam” e nestas condições são lançadas fora de nosso entendimento, sendo “pisadas pelos homens”. As verdades que não aplicamos acabam por ser esquecidas, saindo assim de nossa mente.
Os homens aqui representam os maus sentimentos e os erros de nosso homem externo que “pisam” as verdades quando as adulteram para fazê-las servir às suas más paixões. Os pés, sendo a parte inferior do corpo, representam o que há de mais baixo em nossa mente; representam o que a tecnologia dos Escritos denomina de sensual-corporal, onde residem as nossas paixões mais vis. O homem sensual-corporal vive pela matéria  e para a matéria. Os homens dessa espécie calcam a verdade com os pés, pisam as verdades que recebem, não tendo por elas interesse algum. As verdades para esses homens são sempre insípidas e por isso não despertam neles o apetite pelo bem.
A única utilidade que a verdade tem para eles é servir de apoio às suas más paixões, de justificativa para a sua conduta pecaminosa. Para isso, porém, é preciso adulterá-las, é necessário calcá-la com os pés, pisando-a, isto é, profanando-a. para não chegarmos, pois, a esse estado miserável de que não há salvação, precisamos nos esforçar para despertar em nós o interesse pelo bem que a verdade nos ensina, temos que fazer com que a verdade tenha sal, para estimular o nosso apetite pelo bem. O Senhor nos diz, em Marcos: “Bom é o sal; mas se o sal se tornar insulso, com que o adubareis? Tende sal em vós mesmos, e paz uns com os outros”. (Cap. 9,50)
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Quando temos “sal em nos mesmos”, isto é, quando as verdades que recebemos começam a despertar em nós os interesse pelo bem, então passamos para um outro estado mais elevado em que as verdades se tornam a luz de nosso mundo interior, iluminando a nossa mente. Nesse estado vamos edificar a nossa cidade mental sobre a montanha de nosso amor ao Senhor.
Uma cidade, na Palavra, significa uma doutrina. A cidade em que residimos espiritualmente é a doutrina que construímos com as verdades tiradas da Palavra. Esta cidade está construída sobre o monte quando tem por fundamento o amor ao Senhor. Na Palavra os montes ou as montanhas representam o amor ao Senhor. Uma doutrina nessas condições não é para ficar escondida em nosso homem interno, mas para ser aplicada e vista em nosso homem externo, isto é, em nossa vida prática no mundo. E, por isso, o nosso texto diz: “Vós sois a luz do mundo, não se pode esconder uma cidade edificada sobre um monte”.
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Quando a verdade se tornou a luz de nosso mundo interior e edificamos com ela a cidade de nossa doutrina de vida, baseada no amor ao Senhor, esta doutrina nos leva a um novo estado em que ela aparece como uma candeia acesa para dar luz a todos que estavam na escuridão de nossa casa mental. Uma candeia é um recipiente que se enche de azeite e que tem uma mecha para permitir a combustão do azeite e a conseqüente produção de luz. Representa uma doutrina em que há amor ao Senhor — o azeite — e que o nosso amor pela verdade acende, nos estados de dúvida ou de obscuridade mental, para nos guiar no estudo da Palavra. É a luz dessa candeia, dessa doutrina, que iremos descobrindo na Palavra, as verdades de que necessitamos para iluminar “a todos que estão na casa”.
A casa, espiritualmente falando, significa a nossa mente, isto é, a nossa vontade e o nosso entendimento, em que residem os nossos sentimentos e os nossos pensamentos. São esses sentimentos e esses pensamentos que a doutrina, representada pela candeia, ilumina, desfazendo as trevas da noite em que estavam mergulhados antes da regeneração. Não devemos, porém, colocar a nossa candeia acesa “debaixo do alqueire, mas no velador”.
O alqueire, sendo uma vasilha de capacidade determinada, que servia para medir cereais e, especialmente, o trigo, representa a doutrina com que examinamos ou medimos o valor dos conhecimentos que vão servir de alimento à nossa mente. Todos nós depois que entramos no pleno uso da razão, vamos formando com os conhecimentos que adquirimos, um conjunto de princípios ou de regras que, por assim dizer, nos servem de padrão para avaliar a importância ou a utilidade de tudo que vamos sabendo ou que vai sendo trazido ao nosso conhecimento. Esse conjunto de princípios ou regras constitui a nossa doutrina, o nosso “alqueire”.
É muito comum, em uma discussão, ouvir-se dizer: “Isso está em desacordo com os meus princípios”. Esses princípios que norteiam a nossa vida e que utilizamos para medir o valor ou a importância das palavras, dos sentimentos e das ações dos outros, formam a nossa doutrina de vida, o nosso “alqueire”.
Esse “alqueire”, geralmente, é constituído por uma mistura de princípios verdadeiros e de princípios falsos em que, quase sempre, predominam os últimos. Na sua composição entram também os preconceitos do meio em que vivemos, os pontos de vista errôneos que adotamos e as regras de conduta que estabelecemos. Entra também como fator preponderante aquilo a que enfaticamente chamamos “a minha religião”. Quantas vezes ouvimos dizer: “Eu tenho a minha religião própria”, ou então: “Não sigo uma religião determinada, mas aquela que eu mesmo fiz para me orientar na vida”. Essa religião própria é o alqueire com que essas pessoas avaliam ou criticam a religião dos outros. Outros dizem: “Eu sou livre pensador; guio-me pelos “meus próprios princípios”. Esses têm também o seu “alqueire” próprio.
Antes de conhecermos a verdade, antes de possuirmos uma doutrina tirada da Palavra, os nossos princípios, a nossa religião própria, o nosso alqueire são formados por um amontoado de erros e falsidades que se harmonizam com o nosso egoísmo e servem às nossas más paixões. Os chamados “meus princípios” são falsos princípios com que procuramos justificar a conduta egoística ou viciosa que levamos. A chamada “minha religião” é uma doutrina falsa que arquitetamos insuflados pelo amor de si e pelo amor do mundo.
Quem constrói uma religião própria não o faz por amor à verdade e ao bem, por amor ao próximo ou por amor a Deus, mas por amor a si mesmo, por amor aos seus vícios e prazeres puramente sensuais de que não se quer privar. Essa “religião própria”, esses “princípios próprios” não passam de miseráveis andrajos com que procuramos cobrir a vergonhosa nudez espiritual em que vivemos. São alqueires falsificados com que pretensiosamente nos arrogamos o direito de julgar as palavras e a conduta dos outros e justificar as nossas próprias palavras e a nossa própria conduta.
Em um bom sentido, o “alqueire” representa os princípios ou a doutrina tirada da Palavra que nos guia na avaliação do valor ou da importância de tudo aquilo que os outros nos transmitem, quer pela palavra falada, quer pela escrita. A doutrina que formamos com as verdades tiradas da Palavra para servir de guia à nossa conduta, não deve ser posta “debaixo do alqueire”, dos falsos princípios que nos guiavam anteriormente. Não devemos deixar que esses falsos princípios escondam a luz da verdadeira doutrina. Esta não deve ser posta “debaixo do alqueire”, mas no velador para dar “luz a todos os que estão na casa”.
O velador era um suporte em que se colocava a candeia para iluminar a casa e, por isso, significa, no sentido espiritual, o nosso amor pela verdade. É o amor pela verdade que suporta ou sustente em nós a doutrina da verdade formada com os conhecimentos tirados da Palavra.
“Nem se acende a candeia e se coloca debaixo do alqueire, mas no velador e dá luz a todos que estão na casa”. Isto é, quando se acendo em nós a luz de uma verdadeira doutrina para nos guiar no estudo da Palavra, não devemos permitir que os nossos falsos princípios anteriores abafem essa luz; mas, ao contrário, sustentando-a com o amor à verdade, devemos fazer com que ilumine todos os sentimentos e pensamentos de nossa casa mental.
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Vimos que tanto a cidade como a candeia e o alqueire representam a doutrina. Trata-se, entretanto, de três espécies diferentes de doutrina. A primeira, representada pela cidade, é a doutrina de vida, a doutrina em que vivemos espiritualmente. É a doutrina pela qual pautamos os nossos atos, a nossa conduta de cada dia. A segunda, representada pela candeia, é a doutrina que nos ilumina o espírito quando meditamos sobre a verdade. É a doutrina que nos serve de guia no estudo da Palavra, e pela qual interpretamos os ensinamentos de sua letra. A terceira, representada pelo alqueire, é a doutrina segundo a qual examinamos e criticamos tudo o que nos vem dos outros. Constitui, por assim dizer, o nosso senso crítico.
Essas três doutrinas para serem verdadeiras, e úteis ao nosso progresso espiritual, precisam ser tiradas da Palavra e confirmadas pela sua letra. A doutrina de vida, representada pela cidade, para nós da Nova Igreja e, primordialmente, a Doutrina Celeste da Nova Jerusalém, contida nos Escritos que o Senhor nos deu por intermédio de Swedenborg. Essa doutrina constitui o sentido espiritual da Palavra do Senhor. A doutrina representada pela candeia é constituída pelos princípios fundamentais da ciência das correspondências que aprendemos na Doutrina Celeste e confirmamos pela letra da Palavra.
O nosso senso crítico, representado pelo alqueire, para ser justo precisa se inspirar nos conhecimentos da verdade hauridos na letra da Palavra e também na Doutrina Celeste. “Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens para que vejam as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus”.
A nossa luz é a luz das verdades que amamos e praticamos. Aqueles que praticam a verdade, aqueles que agem sempre de acordo com os ensinamentos da Palavra, aqueles cuja conduta é uma modelo de retidão, de honestidade e de sinceridade; aqueles cuja vida é um padrão de amor ao próximo e de amor ao Senhor, fazem com que a luz da verdade, que é a sua luz, resplandeça diante dos homens.
Quando a nossa luz resplandece diante dos homens, quando damos àqueles com quem convivemos o exemplo de uma vida impecável, dedicada ao bem público e ao próximo, quando a nossa ação se manifesta diante dos outros em uma série contínua de boas obras — boas obras que não são nossas, mas feitas pelo Senhor por nosso intermédio —, então estamos glorificando o nosso Pai Celeste e contribuindo para que os outros também O glorifiquem.
Dando aos outros o exemplo da prática do bem, despertamos neles o desejo de nos imitar. Todos aqueles que têm conhecimentos da verdade, mas ainda não os praticam, sentem despertar em si o desejo de aplicá-los à vida, de modificar de acordo com eles a sua conduta, quando presenciam atos de bondade, de caridade e de amor ao próximo.
Quando assistimos, por exemplo, a exibição de uma boa fita, em que o protagonista desempenha um papel nobre, apresentando-nos uma conduta inspirada em sentimentos elevados, saímos do cinema com o coração satisfeito e cheio de bons propósitos. Quando lemos um livro em que o autor nos apresenta personagens dotados de sentimentos puros e delicados, em que o mal acaba por ser vencido e castigado, essa leitura nos faz bem à alma, fortalece o nosso desejo de ser bons, inspira-nos pensamentos sadios, desperta o nosso apetite pelos alimentos espirituais. Assim também quando fazemos a nossa luz resplandecer diante dos homens, para que vejam as nossas boas obras, estamos estimulando-os a glorificar o Senhor, estamos agindo como o sal excitando o seu apetite pelo bem; e então, se aplicam a nós as palavras do Senhor: “Vós sois o sal da terra”.
Amém.

•   1ª Lição:     Mateus 5, 13-16
•   2ª Lição:     Lucas 9, 33-36
•   3ª Lição:     Salmo 96