O MAL HUMANO


Sermão pelo Rev. W. Cairns Henderson


“Ele faz que o seu sol se levante sobre os maus e os bons,
e a chuva desça sobre os justos e os injustos”.

(Mateus 5, 45)

Um dos mais difíceis problemas com que se defronta a mente humana é, sem dúvida, conciliar a existência do mal com a idéia de um Deus Onipotente que é puro Amor e cuja Providência governa todas as coisas. Nenhum homem, por menos inteligente que seja, pode acreditar, hoje — como acreditavam os que viviam numa época de trevas — que Deus produz ou nos manda o mal. Esta afirmação, porém, longe de resolver o problema parece, ao contrário, agravar a sua dificuldade, pois a história do mundo é, em sua maior parte, uma narração dos males humanos e, nos acontecimentos do presente, temos a impressão de que estamos presenciando uma super onda da maré do pecado, ocasionando sofrimentos que não têm paralelo no passado, onda que parece crescer desenfreada e impunemente.
Por que foi permitido que o mal entrasse no mundo ainda na infância — mundo que o Criador tinha formado só de coisas boas? E por que existe ainda o mal e continua a amadurecer a sua horrenda colheita de doenças e de morte, de miséria e de pavor, de pobreza e de desdita, de suspeitas e de enganos, de injustiças e de perseguições cruéis?
Será que o mal existe porque Deus não é suficiente forte para impedi-lo? Se assim fosse, teríamos que alterar todas as nossas idéias a respeito de Sua Onipotência. Mas, se pode impedi-lo, porque permite que continue a existir?
Para o homem de mentalidade natural não esclarecida, o problema se apresenta da seguinte forma: é o mal uma força que está fora do controle de Deus e com a qual está sempre em luta para disputar-lhe o predomínio sobre a humanidade? Ou é a existência do mal uma prova decisiva de que a Divina Providência não passa de um mito inventado pela Igreja para conservar os homens submissos à sua vontade? Ou então é um sonho de idealistas procurando fugir aos males do passado e aos que o cercam a cada passo, no presente?
Só na Doutrina Celeste, revelada para a Nova Igreja, podemos encontrar uma resposta racional e convincente para tais perguntas. No que se trata ao mal humano, essa Doutrina rejeita as alternativas acima apresentadas e nos dá a solução verdadeira. Ela nos ensina que o mal está fora de Deus e nunca foi criado por Ele estando, entretanto, sob seu controle, pois o inferno, de onde procedem todos os males, está inteiramente sujeito às Suas leis. Ensina-nos também que existe uma beneficente Providência — universal e particular — isto é, que governa não só os grandes acontecimentos do universo, como as suas mínimas particularidades, segundo as leis da Divina Sabedoria, entre as quais se encontram as chamadas “Leis de permissão”. O mal, que existe por permissão do Senhor, é governado por estas leis. O Senhor não quis que o mal começasse a existir e não quer, nem determina, a sua continuação, agora; mas apenas permite a sua existência — e sem essa permissão ele não poderia existir — de acordo com aquelas leis, que são também leis da Sua Divina Providência, destinadas a salvar aqueles que ainda não estão de todo perdidos.
A salvação do homem é a única razão pela qual o Senhor permite a existência do mal; essa finalidade está, porém, escondida às nossas vistas. Parece-nos que do egoísmo, da avareza e da crueldade, por exemplo, não resultam senão males; mas por trás de tudo isso está a Divina Providência, trabalhando pela salvação final dos que podem ser salvos. Sem esse objetivo nenhum daqueles males teria possibilidade de existir. Ademais, tudo aquilo que tem por escopo tornar possível a salvação dos homens não pode ser impedido pelo Senhor, porque isso corresponderia a agir contra o Seu próprio amor Infinito que tem como fim principal essa salvação.
Só há um meio de o Senhor nos salvar: é afastando-nos do mal e, depois, conduzindo-nos ao bem. Como veremos adiante, não pode haver afastamento do mal sem que, primeiro, seja consentido o seu aparecimento. É para que os males apareçam e possam, então, ser combatidos que o Senhor permite as suas manifestações que, entretanto, ficam sob seu estrito controle, pois, a despeito de toda aparência em contrário, as leis que os governam são leis de Sua Divina Providência. Só os males que podem ser utilizados para provocar a produção de algum bem é que têm permissão para se manifestar.
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O problema que nos ocupa nesse momento tem, porém, um duplo aspecto. O primeiro é o da existência atual do mal, que já abordamos de um modo geral e do qual trataremos adiante com mais detalhes. O outro é o da própria origem do mal, como ele surgiu, e por que foi permitido que aparecesse.
Este aspecto do problema encontra solução também na Doutrina Celeste, que começa por nos afirmar que o mal não foi criado pelo Senhor nem existe desde o início da Criação, não podendo assim ser atribuído a Ele a sua origem. Nem tão pouco foi o bem a origem do mal, pois o mal é uma completa negação do bem, não sendo possível, portanto, originar-se dele. Conseqüentemente, o mal, em hipótese alguma, veio de Deus, nem direta nem indiretamente. Contudo, não devemos supor, por isso, que o mal nada é, o que não passa de mera ilusão da mente humana. Em si mesmo, realmente, o mal nada é, visto que nada tem de bem; mas não deixa de ser uma força, tal real e tremenda que só o Divino Poder é capaz de vencê-lo. O bem e o mal são amores opostos; sendo que o mal é um amor que não provém de Deus, que não começou a existir com a criação e que é contrário a ela. Mesmo assim não temos o direito de dizer que ele nada é pelo fato de nada ter de bom.
Como o Senhor — e tudo que é d’Ele, está excluído como fonte do mal —, surge, naturalmente, a pergunta: de onde, então, se originou o mal? Esta questão se desdobra em três outras: 1ª) Como pôde começar a existir um amor que, não sendo de criação, é ainda contrário a ela? 2ª) Não sendo o homem a vida, mas apenas um receptáculo da vida, de onde veio o primeiro impulso de que resultou a origem do mal? 3ª) Por que permitiu o Senhor, a quem o mal é odioso, que essa origem existisse? A Doutrina Celeste nos oferece a verdadeira solução para essas questões.
Ela nos ensina que antes da origem do mal, só o bem existia no mundo. Este bem, entretanto, tinha vários graus que se sucediam em ordem, do bem mais alto possível aos homens, até o mais baixo. Quando o bem mais baixo foi ultrapassado, levantou-se o mal do lado oposto — mal que, semelhantemente, se distinguia em vários graus, descendo do mais moderado, gradativamente, até o mais mortal. Os homens daquela época primitiva não eram anjos ao nascer, mas as condições em que nasciam eram de molde a lhes permitir ascender na escala do bem, por um processo de desenvolvimento normal, até alcançar o grau mais elevado. Podiam elevar-se dessa forma porque tinham sido dotados pelo Senhor com a liberdade de escolher o que preferissem no âmbito das possibilidades oferecidas à raça humana. A sua escolha, diferentemente da nossa, não se fazia entre o bem e o mal, mas entre um bem mais alto e um bem mais baixo do que aquele em que estavam; e para isso tinham intera liberdade. Durante anos sem conta, esses mesmos progrediram, avançando na escala ascendente do bem; mas, afinal, houve entre eles quem preferisse um bem inferior.
Iniciou-se assim uma imperceptível e lenta descida através dos vários graus do bem até chegar-se ao que podemos chamar: o não-bem, surgindo então o mal em sua origem. Não se sabe quanto tempo levou esse processo de involução; sendo certo, porém, que consumiu um longo período e que a origem do mal não é o resultado de um simples ato como se acredita, por uma literal e errônea compreensão da Escritura.
Para alcançar uma idéia mais clara dessa origem, é necessário saber em que consiste, essencialmente, o bem para os homens daquelas épocas remotas e o que veio a ser para eles o mal. A essência do bem é procurar o Senhor como Deus único, e a única fonte do bem é querer ser guiado por Ele somente. O mal, ao contrário, é afastar-se do Senhor e querer guiar-se por si próprio com a crença de que se pode fazer o bem por si mesmo. Por conseguinte, o mal começa quando o homem começa a se afastar do Senhor, e a querer guiar-se a si mesmo, fugindo à Sua direção. Entretanto, é necessário ter me mente que, embora seja isso a origem do mal, não foi esse o primeiro passo para a sua criação sendo, ao contrário, o último de uma longa jornada que teve início quando os homens começaram a preferir bens inferiores em vez de continuarem a procurar, sempre, alcançar bens cada vez mais elevados.
Eles não passaram instantaneamente do desejo de serem guiados unicamente pelo Senhor para o de se guiarem exclusivamente por si mesmos, nem passaram de uma vez a encarar as coisas deste mundo como mais importantes do que as do céu. Por muito tempo ainda continuaram a querer ser conduzidos pelo Senhor, embora esse desejo fosse gradualmente decrescendo. Esse decrescimento era produzido pela escolha que iam fazendo de bens cada vez mais baixos, o que tornou decrescente o seu interesse pelas coisas do céu. Depois, continuando ainda a desejar o bem, queriam, entretanto, alcançá-lo guiando-se a si mesmos por meio da verdade. Já não procuravam mais o bem pelo amor ao bem, mas por amor à verdade, cujo conhecimento passou a ser a sua preocupação principal.
Finalmente, começaram a querer adquirir esses conhecimentos por si mesmos e a pensar que as coisas deste mundo eram mais importantes do que as do céu. E chegamos assim à origem mesma do mal. As más ações, proibidas nos Dez Mandamentos, ainda não eram conhecidas, nada tendo que ver com a origem do mal. São conseqüências do prosseguimento por essa vida descendente que só vieram muito mais tarde.
A verdadeira origem do mal surgiu quando o último vestígio da submissão à Divina Direção foi substituído pelo princípio que levou os homens a quererem dirigir-se por si mesmos — o que ainda hoje constitui a fonte originária de todo mal. A verdade, portanto, é que o homem foi e é a única origem do mal. Não se deve pensar, porém, que essa origem foi implantada nele por criação, mas que o homem, afastando-se do Senhor e votando-se para si mesmo, produziu o estado de que resultou essa origem.
A possibilidade desse afastamento era, sem dúvida, uma conseqüência da liberdade com que o homem foi dotado pelo Senhor quando o criou. O Senhor desejava que todos os homens correspondessem ao Seu amor, mas sabia que o amor não pode ser constrangido. Assim sendo, ao dar-lhes a faculdade de corresponderem ao Seu amor, dera-lhes também a liberdade de rejeitarem-no, de modo que depois do impulso original para afastar-se do Senhor, o homem conservou a liberdade de prosseguir nesse caminho, o que explica que o Senhor não podia impedir a origem do mal. E acreditamos que a causa profunda daquele impulso deve ser procurada na tendência, inerente a todas as coisas finitas, para cair. Conquanto o homem tivesse sido criado com a possibilidade de elevar-se, não deixava de ter essa tendência, como finito que é. Podia assim afastar-se do Senhor, embora estivesse num mundo ainda sem pecado. Isso não quer dizer que ele estava predestinado a cair. Entretanto, só uma criatura que tinha a possibilidade de cair, é que podia ter a possibilidade de levantar-se depois.
Quando o homem preferiu cair, o Senhor o permitiu para que continuasse a ser livre e conservasse a possibilidade de ser salvo, escolhendo uma outra forma de segui-lo que lhe era indicada para sua salvação.
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Vê-se então, que o mal veio ao mundo pelo homem, que não veio por predestinação e que o Senhor não podia impedir a sua vinda a não ser destruindo a liberdade humana e, por conseguinte, o que havia de humano no homem. Isso seria contrário à própria essência do Divino Amor. E é por essa razão que o mal continua também existindo desde o momento de sua origem.
O Senhor permite agora as manifestações do mal porque os homens são maus e precisam ser retirados do mal para serem salvos; ora, os males não podem ser afastados se não aparecerem. Portanto, a permissão do mal tem por fim a salvação do homem.
Como conseqüência da queda, todas as pessoas nascem com um hereditário mau, cheio de cobiças por males de várias espécies. Este hereditário não se deriva do primeiro homem — como pensa a velha teologia —, mas é uma transmissão à prole, em forma de simples tendências, dos males em que se tinham confirmado os pais, os avós e outros antepassados mais remotos. Nenhum homem pode escapar a isso, embora pela educação possa aprender boas maneiras a ter, em sua conduta, uma aparência decorosa. Nenhum homem deixa de transformar pelo menos algumas dessas tendências em males seus, e até de acrescentar novos males às tendências recebidas por herança e que transmitirá aos seus descendentes, a não ser que venha a regenerar-se.
É então um fato que, atualmente, todo homem está no mal e que precisa ser retirado de seus males para poder ser salvo pelo Senhor; pois do contrário, permanecerá no mal depois de sair do mundo, porque depois da morte o homem permanece como estava no momento de morrer — a árvore como cai, assim fica. E irá ser julgado por seus atos, que se reproduzirão no outro mundo, porque a sua natureza continua lá a mesma que era aqui, no momento da partida.
Os males, por conseguinte, devem ser removidos enquanto o homem ainda está neste mundo, se ele quiser ser salvo. Mas, como já vimos, eles só podem ser removidos quando se mostram. Isso não significa, entretanto, que devemos deliberadamente praticar atos maus só para que os nossos males apareçam. O que isso quer dizer é que devemos nos examinar não só quanto às ações, como também quanto aos pensamentos e afeições, procurando saber como procederíamos se os freios externos fossem suprimidos ou se não os temêssemos. Especialmente, precisamos descobrir que males consideramos como lícitos em nosso espírito, porque esses são efetivamente males nossos. Só assim os males aparecem e podem ser removidos, pois desse modo haverá um arrependimento sincero que nos levará a desistir deles porque são então reconhecidos como males realmente existentes em nós.
A salvação humana depende, pois, da remoção do mal em que o homem está, sendo que essa remoção só pode ser efetuada quando os males aparecem claramente — nos pensamentos, senão nos atos —, e esta é a razão profunda deles serem permitidos pelo Senhor, pois à medida que os males vão sendo removidos, vão sendo também remidos. Isso não quer dizer que eles são separados e expulsos de tal modo que o estado da vida humana se transforme num instante. Não; eles são apenas removidos, por assim dizer, para os confins da mente, ficando então o homem defendido contra eles. A completa erradicação dos males do homem nunca tem lugar. A remissão dos pecados não é instantânea, mas, ao contrário, vai se processando gradualmente; daí ser a regeneração um processo de longa duração. O Senhor faz a remissão dos pecados de acordo com as leis de Sua Divina Providência.
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De tudo que precede concluímos que o mal só existe porque o Senhor o permite e que Ele o permite para um determinado fim, que é a salvação humana — salvação dos que podem ser salvos e sua proteção contra os que não o podem, e ação moderadora do mal para impedir que os maus se afundem em males cada vez piores, o que certamente aconteceria, se fossem inteiramente abandonados a si mesmos. Esta dupla operação da Divina Providência do Senhor — salvação dos que podem ser salvos e contenção dos maus para que não se tornem piores — está descrita no sentido espiritual de nosso texto: “Ele faz com que seu sol se levante sobre os maus e os bons, e a chuva desça sobre os justos e os injustos”.
Os ensinamentos que essas palavras nos trazem são grandes e reconfortadores, especialmente agora, quando vemos o mal avassalando o mundo e parecendo triunfar sobre o bem. Aquelas palavras nos revelam que a Divina Providência do Senhor nunca está inativa e que esses males só existem porque Ele o permite para que afinal sirvam a um fim bom. Mostram também que, por secretos caminhos dos quais nada sabemos, o Senhor está agindo por trás desses males terríveis, tendo em vista retirar os homens para fora deles, nunca se afastando do objetivo de Sua Divina Providência — o estabelecimento de Seu Reino eterno na mente dos homens sobre a terra. Estes ensinamentos nos habilitam a apreciar convenientemente os nossos próprios males, a enveredar pelo caminho da salvação e a compreender porque a regeneração é um processo necessariamente lento, evitando, assim, que o desanimo se apodere de nós.
O mal, desde que começou a existir pelo abuso que o homem fez de sua liberdade, não pode deixar de ser permitido; não só para a sua salvação como para preservação de sua sabedoria. Se a possibilidade de fazer o mal fosse suprimida antes da regeneração, o homem ficaria sem vida e perderia a faculdade de salvar-se. O Senhor poderia fazer o saneamento instantâneo do entendimento de todos os homens, mas isso de nada valeria sem o saneamento paralelo da vontade, o que só se pode realizar com a cooperação livre do próprio homem.
Em conclusão, mesmo quando, em casos particulares, não podemos atinar com a razão, podemos ter a certeza de que a permissão do mal é sempre um ato de misericórdia.
Amém.

•   1ª Lição:     Salmo 139
•   2ª Lição:     Mateus 5, 33-48
•   3ª Lição:     Amor Conjugal 444, 3-5