O ESTADO DA IGREJA CRISTÃ


Sermão pelo Rev. W. Cairns Henderson


“Então, se alguém vos disser: Eis que o Cristo está aqui, ou ali, não deis crédito; porque surgirão falsos cristos e falsos profetas, e farão tão grandes sinais e prodígios que, se possível fora, enganariam até os escolhidos.
Eis que vo-lo tenho predito”.

(Mateus 24, 23-25)

Quando o homem se torna tão completamente estúpido a ponto de aceitar somente o testemunho de seus sentidos, chegando por isso a negar que haja uma Divina Providência, não lhe faltam provas convincentes para se confirmar nessa negação. A existência do mal no mundo, o fato de que os maus parecem prosperar mais do que os bons e a ocorrência das guerras, servem de argumento para fortalecê-los em seu propósito de não aceitar a idéia de existência de uma Divina Providência. E se quiserem mais argumentos, para se entrincheirar em sua convicção de que a Providência é apenas uma invenção sustentada pela credulidade humana, os materialistas os encontrarão no fato de existirem muitos povos, habitando grandes regiões da terra, ainda em estado de gentilidade, ou alistados sob a bandeira do Islã.
Entretanto, não há necessidade de irem tão longe em busca de argumentos para sustentar a posição que tomaram. Um exame crítico, imparcial, dessa organização que é conhecida como a Igreja Cristã, lhes fornecerá todas as provas de que precisam para confirmar sua tese da não-existência da Divina Providência.  Esse exame ainda os levará a concluir que a religião, em si mesma, nada vale, consistindo toda sua utilidade apenas em servir de freio para os ignorantes.
Muitos daqueles que só acreditam no testemunho dos sentidos e que, portanto, não crêem na Providência, afirmam que a única conclusão que se pode tirar do estado a que chegou a Igreja Cristã é que, realmente, não existe a Divina Providência. Em relação a estes, também nada se pode fazer. Contudo, devido aos problemas que este caso envolve e, em atenção aos que continuam, apesar de tudo, a afirmar que há uma Divina Providência, é preciso esclarecer que estas aparentes confirmações contra ela, baseadas no estado atual da Igreja, devem ser examinadas à luz dos ensinamentos dados nos Escritos, para serem convenientemente compreendidas.
Se examinarmos desapaixonadamente o corpo organizado conhecido como a Igreja Cristã, o que encontramos? Em primeiro lugar, veremos que, depois de mil e novecentos anos de intensa evangelização, o cristianismo fracassou inteiramente no empenho de tornar-se a religião do mundo, embora se tenha tornado a religião oficial da Europa e do Novo Mundo, e se tenha parcialmente estabelecido na Ásia e na África. Em segundo lugar, verificaremos que esta Igreja, que pretende ser a guardiã da verdade revelada — cujo conhecimento é essencial para a salvação, por ser o único caminho para o céu —, e que pretende lhe ter sido confiada uma sagrada missão de instrução e direção, de cujo fiel desempenho depende a salvação humana, está desoladoramente dividida em sua concepção do que é a verdade.
Muito cedo ainda, a Igreja Cristã dividiu-se naqueles dois corpos que desde então vieram a ser conhecidos como a Igreja Grega Ortodoxa e a Igreja Católica Romana. Com a Reforma, formou-se um terceiro corpo geral: a Igreja Reformada (ou Protestante); esta se dividiu e se subdividiu de tal modo que, hoje em dia, conta com mais de trezentas denominações ou seitas diferentes.
Com poucas exceções, cada uma dessas comunidades proclama-se a única possuidora da verdade salvífica, e considera-se como divinamente comissionada para proteger seus crentes, opondo-se, como prejudicial à salvação, a tudo o que não está de acordo com os seus métodos de promulgar a fé e de evangelizar o mundo. Desta forma, cada Igreja entrou em acerbo conflito com todas as outras, criando um espírito de sectarismos fanático e intolerantes que levou à completa destruição da caridade e da boa vontade, que o Evangelho prega como a essência da vida cristã. As guerras mais sangrentas, as mais terríveis e criminosas perseguições, e as ações mais cruéis que o mundo tem visto, foram desencadeadas e praticadas em nome do cristianismo; por outro lado, as disputas dos teólogos têm produzido as mais amargas controvérsias.
Mas não é só nessas coisas que o investigador encontra motivos para duvidar. A Igreja Grega Ortodoxa não é mais do que um simples nome, para o homem de cultura mediana em nosso país. Nos outros dois ramos principais da Igreja — a Igreja Católica Romana e a Protestante —, se encontrará muita coisa chocante. Na primeira, encontra um sacerdócio que pretende exercer um poder divino absoluto sobre a terra, desejando, virtualmente, que seus membros sejam adorados como deuses; encontra também a prática que envolve — não importa o que se possa dizer em contrário — a invocação de homens mortos como intercessores junto a Deus.
Na última Igreja, encontra-se a crença de que tudo o que é necessário para a salvação, é ter fé em que Cristo morreu para tirar nossos pecados, e que não têm importância o modo como o homem vive, desde que tenha essa fé, visto que bem algum poderá auxiliar a sua salvação. Entre muitas seitas dessa Igreja, pode-se descobrir também várias heresias; e pode-se notar ainda que a característica principal da Igreja Cristã de hoje é que muitos dos seus membros o são apenas de nome, havendo poucos que procuram viver de acordo com os seus preceitos, ou que observam suas formalidades externas com regularidade. Somente pessoas de espírito prevenido contestariam esses fatos. O problema está em conciliá-los com a idéia da existência da Divina Providência, e mostrar que, por causa deles não se deve concluir que a religião nada vale.
Essa conciliação se faz na Doutrina Celeste, onde o Senhor explica porque permite essas coisas, e mostra que sua permissão está de pleno acordo com a operação de Sua Divina Providência, que entra até nas mínimas coisas da vida humana. Era necessário, para a salvação final da raça humana, que a Igreja Cristã fosse estabelecida e mantida. Mas o Senhor, em Sua Infinita Sabedoria, sabia que essa religião não era apropriada ao gênio de muitos povos da terra, e que não convinha atrair para o seu seio os homens de todas as raças, porque muitas dessas raças eram constitucionalmente incapazes de viver de acordo com ela, e ficariam por isso sem salvação, como se não tivessem religião alguma, pois rejeitariam a única religião que então existiria no mundo. Foi, portanto, por efeito da invisível ação da Divina Providência, que o cristianismo não se tornou a única religião sobre a terra; e o Seu propósito, nessa aparente restrição ao desenvolvimento da Igreja foi, assim, um propósito misericordioso. Para aqueles, pois, que nada poderiam fazer e chegariam mesmo a desfalecer espiritualmente, no cristianismo, se o tivessem aceitado, a Divina Providência deu outras religiões — como o maometismo, por exemplo — adaptadas a seu gênio particular, e por cuja observância, como vimos, eles são salvos.
Com efeito, só uma mentalidade muito estreita pode ver qualquer relação entre o tamanho e extensão de uma Igreja e as suas possibilidades para desempenhar, efetivamente, a função para a qual foi estabelecida. Os usos gerais da Igreja são internos e em número de dois. Quanto ao que diz respeito aos seus próprios membros, uma Igreja é estabelecida para servir como instrumento nas mãos do Senhor para a salvação das almas — uso que ela desempenha, ensinando a verdade que conduz ao bem da vida e vivendo a vida boa ensinada pela verdade da Palavra.
Quanto ao que diz respeito ao resto do mundo, ela é estabelecida para servir como um centro espiritual para a recepção da luz do Senhor e a sua disseminação pelos povos que estão fora da Igreja — a luz que, embora não a conheçam, conserva todos os povos na racionalidade e na liberdade, e lhes dá a faculdade de serem salvos na vida futura. Aquilo que recebe esta luz para disseminá-la é a Palavra, conhecida, compreendida e amada nas mentes dos membros da Igreja Específica; e como a luz e a sua disseminação são espirituais, e as coisas do espaço não entram no reino espiritual, não importa que a Palavra esteja no conhecimento de poucos ou de muitos, desde que haja, no mundo, uma Igreja em que ela seja conhecida, compreendida e amada. Assim, o fato de uma religião cristã não se tornar a única religião do mundo, não quer dizer que não haja Providência. Ao contrário, quando se conhecem os motivos, isso prova a existência de uma sempre amante e infinitamente sábia Providência cuidando da salvação de todos os homens.
Nem o fato da Igreja estar dividida indica a ausência de uma Providência supervisora. A religião cristã foi derivada da letra da Palavra, que é escrita por puras correspondências e, em sua maior parte, estas são aparências da verdade sem que, entretanto, sejam verdades genuínas. A letra da Palavra é, portanto, de tal natureza que seus preceitos podem ser torcidos desta ou daquela forma, podem ser mal compreendidos e podem ser interpretados de modo a favorecer tudo aquilo em que o homem crê. E como a doutrina da Igreja deve ser tirada da letra da Palavra, não podia deixar de surgirem disputas, controvérsias e dissensões; não com relação à santidade da Palavra, ou à Divindade do Senhor, mas sim com relação à significação desta ou daquela coisa da Palavra.
Não podia ser de outra forma, desde que era concedido aos homens o exercício daquela liberdade e racionalidade, sem as quais eles não teriam qualquer possibilidade de ser salvos. As divisões que resultaram das diferenças de interpretação eram, por conseguinte, também, permissões da Providência; permissões dadas a fim de que os homens pudessem conservar as faculdades sobre as quais repousa a única esperança de sua salvação. Ademais, devemos nos lembrar de que embora elas tivessem conduzido à falta de caridade, não era forçoso que assim acontecesse; e que, sendo perigoso confirmar heresias, todo homem que não faz isso pode ser salvo, mesmo que tenha sido levado a aceitar falsas doutrinas.
O fato de que uma grande parte da Igreja Cristã é governada por um sacerdócio que pretende ter poderes divinos absolutos, exigindo culto para seus membros, sacerdócio que incentiva a invocação de pessoas mortas é, também, quando convenientemente compreendido, uma ilustração da maravilhosa operação da Divina Providência, guardando as coisas santas da Igreja e salvando todos os que podem ser salvos, ao invés de ser uma prova de que não há Providência.
Havia necessidade da doutrina do Senhor ser pregada pela Palavra, e da Igreja Cristã ser por ela estabelecida. Isso só poderia ser feito por homens que agissem com zelo; e como não havia outros tão apropriados para isso como os que eram inspirados pelo zelo de seu amor próprio, o Senhor fez uso deles para seus propósitos. Maus como eram, seu zelo inspirou-os, primeiro, a pregar a doutrina do Senhor e a ensinar a Palavra. Mais tarde, eles viram que podiam alcançar domínio sobre as almas dos homens por meio das coisas santas da Palavra e da Igreja, e seu amor próprio desabrochou e desenvolveu-se em tal extensão que acabaram transferindo todo o poder Divino do Senhor sobre a terra, para eles mesmos. A Divina Providência não podia impedir isso, pois se o fizesse, eles proclamariam que o Senhor não era Deus, e que a Palavra não era sagrada, e teriam assim destruído toda a Igreja já estabelecida, a qual, entretanto, seja qual for o caráter desses líderes, ainda permanece entre os povos que lhes são subordinados.
Todos os católico-romanos que se aproximam do Senhor e evitam os males como pecados também são salvos, e isso não aconteceria se a Igreja tivesse sido destruída. Mas, ao mesmo tempo, para que as coisas santas não fossem profanadas, o Senhor dispôs as coisas de modo que a Igreja Romana se afastasse d’Ele para se entregar ao culto de homens mortos, proibisse a leitura da Palavra, atribuísse todo o poder de salvar às missas não compreendidas pelo público, vendesse a salvação por dinheiro e dividisse a Santa Ceia. Desse modo, o conhecimento das coisas santas foi afastado da Igreja, e aqueles que nada conhecem das coisas santas não podem profaná-las.
Acontece o mesmo com o fato de a Igreja Protestante fazer depender a salvação de certas palavras que devem ser pensadas ou faladas, e não nos bens que devem ser praticados. Isto, também está longe de provar a ausência de uma Providência Divina, pois foi permitido por ela a fim de que a Divindade do Senhor e a santidade da Palavra não fossem profanadas.
A Divindade do Senhor não é profanada quando os homens acreditam que Deus, o Pai, terá misericórdia deles por causa do Filho, que sofreu na cruz, fazendo expiação por eles; pois aqueles que aceitam essa fórmula não se aproximam do Divino do Senhor, mas de Seu Humano, que não reconhecem como Divino. E a Palavra não é profanada por eles, porque não dão atenção alguma às passagens que claramente ensinam o amor e a caridade, e a necessidade de fazer o bem; mas pensam que isto está incluído em seu conceito de fé salvífica. Realmente, eles prestam muito menos atenção à Palavra do que às Epístolas, que são uma produção inteiramente humana. Isto constitui outra salvaguarda contra a profanação.
Assim, as coisas do protestantismo, que fazem com que o homem natural se confirme contra a Divina Providência, foram permitidas pelo Senhor para que certos homens não percam toda probabilidade de salvação, caindo na profanação e para que a Divina Providência pudesse continuar a agir constantemente em prol da salvação daqueles em quem a fé separada da caridade se tornou a base da religião. Pela ação da Divina Providência, a fé só não é confirmada pelos que a ela são levados, a não ser que estejam também no fausto da própria inteligência pelo amor de si. Embora o protestantismo ensine que a fé, apenas, salva, todavia, providencialmente, ele ensina também que os males devem ser evitados. Como forma de religião, o protestantismo é, portanto, outra permissão da Providência que existe por causa da salvação.
Dá-se o mesmo em relação às heresias, cuja existência faz com que alguns se confirmem contra a Divina Providência. Por trás dessa negação está o pensamento de que, se a Divina Providência fosse universal, atuando em todas as particularidades da vida humana e se tivesse em vista a salvação de todos os homens, teria estabelecido uma religião verdadeira em todo o mundo, e não toleraria que ela fosse adulterada por heresias. Mas esse pensamento é muito fraco.
Como o homem nasce dos males, dos quais precisa ser retirado para salvar-se, e como só pode ser retirado dos males conformando-se com as leis da Divina Providência, era inevitável que se levantassem heresias, cuja permissão é feita de acordo com essas leis. Pois, de acordo com as referidas leis, não pode haver qualquer influxo imediato do céu, mas sim indireto por intermédio da Palavra de acordo com a Doutrina; e a letra da Palavra, como vimos, é escrita de tal modo que pode ser mal interpretada, dependendo essa interpretação da Doutrina que nos serve de guia.
Tornou-se especialmente inevitável que se levantassem heresias quando a Igreja começou a encarar como essencial, não mais uma vida boa, mas as coisas da Doutrina, pois quando isso acontece, o entendimento é mergulhado em trevas impenetráveis. Contudo, foi provido pelo Senhor — uma vez que não podia deixar de permitir que as heresias se levantassem — que, seja qual for a heresia em que o homem tenha caído quanto ao entendimento, ele poderá, todavia, salvar-se evitando os males como pecados e não confirmando as falsidades em sua mente.
Podemos observar, então, que o estado da Igreja Cristã, longe de provar contra a existência de uma Divina Providência, oferece prova incontestável de sua perpétua presença e ilustra as maravilhas de suas operações secretas. Que a Igreja Cristã cairia no estado que estamos considerando, não era desconhecido pelo Senhor. Era precisamente desse estado que Ele estava falando quando, antes da Igreja se estabelecer, deu a Seus discípulos a advertência contida no texto; e também porque era necessário que, até que a Nova Igreja pudesse ser estabelecida, a Igreja Específica, que é o único instrumento da salvação, fosse preservada dentro do arcabouço da Igreja Cristã. Ele previu, proveu a respeito e permitiu as próprias coisas das quais temos estado a falar, a fim de que isto pudesse ser feito, e que os homens pudessem, em todo caso, ser salvos.
Para o novo-jerusalemita, entretanto, o problema pode ser colocado da seguinte forma: por que a Igreja Cristã ainda funciona como um corpo organizado e mesmo alcança certas vantagens, quando está espiritualmente morta há cerca de duzentos anos, e não há esperança alguma de que jamais reviva? Isso é também uma permissão da Divina Providência. Como muitos homens que rejeitam o cristianismo são, entretanto, contidos por um código de ética profissional, também muitos que rejeitam a Doutrina Celeste são conservados dentro de certos limites de conduta pela Igreja Cristã. Há também homens e mulheres que são salvos, que abraçarão a Doutrina Celeste de coração alegre depois da morte, mas que não estão preparados para recebê-la neste mundo. Eles podem, entretanto, ser preparados pelo Senhor para serem recebidos como membros da Igreja Cristã, não através de falsos ensinamentos, mas segundo as leis de Sua Providência que se aplicam à Igreja Universal.
Como um obstáculo impedindo o (homem) mau de cair em males ainda piores e como um auxílio intermediário para muitos que não poderiam de outra forma ser salvos, a chamada Igreja Cristã ainda desempenha um uso, e por esta razão lhe é permitido continuar a existir, não obstante estar espiritualmente morta.
Amém.

•   1ª Lição:     Mateus 24, 1-22
•   2ª Lição:     Mateus 24, 23-42
•   3ª Lição:     D. P. 259