O CULTO DO DIVINO HUMANO


Sermão pelo Bispo George de Charms


“E olhei, e eis, no meio do trono, e dos quatro animais, e no meio dos anciãos,
um Cordeiro que jazia como morto”.

(Apocalipse 5,6)

Pelo “Cordeiro”, no Apocalipse, é significado o Divino Humano. Esta expressão é aplicada ao Senhor Jesus Cristo no corpo glorificado com que ressurgiu do sepulcro. O Senhor assim corporificado e assim visto, é agora o único objeto de culto em todos os céus. Seu aparecimento nesta corporificação constitui o Seu Segundo Advento, de que Ele falou a seus discípulos, dizendo: “Eu virei outra vez e vos receberei em Mim Mesmo, para que onde eu estiver, estejais vós também” (João 14,3). Esta promessa já está cumprida. Ele veio no Divino Humano revelado na Doutrina Celeste da Nova Jerusalém. E assim, deve tornar-se o único objeto de culto da Nova Igreja que está sendo, neste momento, estabelecida sobre a terra.
Esta Igreja é verdadeiramente cristã. É fundada sobre a fé em Jesus Cristo e na plena aceitação do testemunho do Evangelho a Seu respeito. É, entretanto, inteiramente distinta do cristianismo anterior, porque tem uma concepção de Jesus Cristo como Deus, completamente nova. A qualidade interna de qualquer religião é determinada pela idéia de Deus que nela domina. Se quisermos compreender a diferença real entre a Nova Igreja e a dispensação religiosa que a precedeu, precisamos ver claramente o que é significado pelo Divino Humano, o Deus que agora adoramos, em contraste com a concepção de Jesus Cristo que existiu até então.
O Divino Humano nunca foi conhecido anteriormente. Não podia ser conhecido antes da vinda do Senhor ao mundo, porque ainda não existia. E nos tempos cristãos não podia ser manifestado, embora já existisse, porque a mente dos homens não estava preparada para compreendê-l’O. Pela mesma razão não podia ser revelado, mesmo aos anjos, antes do julgamento final predito no Apocalipse.
Isso pode parecer surpreendente; torna-se, entretanto, compreensível quando refletimos que os céus formados pelo Senhor por ocasião do Seu Primeiro Advento, foram povoados com as pessoas que tinham vivido na terra desde os dias do dilúvio de Noé. Eram os homens da Igreja Antiga que adoravam a Deus como Ele aparecia em visão aos profetas, sob a forma de um anjo. Sua fé era baseada na promessa do Messias que devia vir ao mundo para redimir e salvar a raça humana. Todos os que viviam nessa fé, durante sua existência na terra, continuaram nela depois da morte, e esperavam com ansiedade o Advento do Salvador.
Todos estes que acreditavam na vinda do Messias reconheceram alegremente o Senhor quando Ele veio. Cantaram cheios de alegria quando Ele nasceu. Reconheceram n’Ele o cumprimento da antiga profecia que tanto haviam esperado. Deram-Lhe as boas vindas com grande regozijo quando Ele ressurgiu do túmulo, prostrando-se diante d’Ele, prestando-Lhe culto e adorando-O como o Deus do céu e da terra, a Quem atribuíam todo o poder, toda sabedoria e toda glória. Por sua vinda, eles foram libertados da escravidão aos males e falsidades, e foram elevados ao céu conde receberam um indizível aumento de luz, de bem-aventurança e de felicidade. Reconheceram-n’O e adoraram-n’O como o Senhor ressuscitado. A sua fé, porém, era como a das crianças. Era baseada nos ensinamentos da Palavra que tinham aprendido a amar e que, por amor, aceitavam sem exame — puramente de coração. Não compreendiam, porém, a sua plena significação nem o seu profundo alcance.
Por esta razão o aumento de luz que tiveram em virtude do Advento do Senhor, ainda que realmente grande, era insignificante comparado com o que vieram a ter com a Sua Segunda Vinda quando, como foi dito: “a cidade não tinha necessidade de sol, nem de lua para que nela resplandeçam, porque a glória de Deus a ilumina, e o Cordeiro é a sua luz” (Apoc. 21,23). Antes disso, eles viam o Senhor como o Messias prometido; mas não viam o Divino Humano, e isso porque, como os dois discípulos no caminho de Emaús, “seus olhos estavam fechados” para Ele até que, no tempo próprio, Ele viesse de novo “nas nuvens do céu, com poder e grande glória”.
O mesmo se dava na Igreja sobre a terra. Os primitivos cristãos acreditavam, em sua fé simples, que Jesus Cristo, que tinha vivido no meio deles era, com efeito, Deus. Adoravam só a Ele. Sabiam que Ele tinha ressuscitado dos mortos. Pedro, Tiago e João tinham visto o Senhor no monte da transfiguração quando “Sua face brilhava como o sol, e Suas vestes eram brancas como a luz”. Ele tinha aparecido aos onze depois de Sua ressurreição e, por fim, tinham visto Ele subir do Monte das Oliveiras para o céu.
Contudo não viam o Divino Humano. Seus pensamentos sobre Ele estavam demasiado ligados às coisas da terra. Em sua memória, viam-n’O como O tinham visto no mundo. Viviam na recordação de Suas palavras e de Seus atos. Amavam Seus ensinamentos, acreditavam implicitamente neles e procuravam pautar suas vidas de acordo com os Seus preceitos. Entretanto, só muito obscuramente percebiam seu alcance mais profundo, pois interpretavam-nos de acordo com a sua significação literal. Presos no emaranhado das ilusões dos sentidos, apegavam-se à idéia de um reino terrestre. Viviam na expectativa de que o Senhor voltaria na carne, e continuavam a pensar n’Ele como um homem, em Sua corporificação humana finita. Como podia esse humano finito ser Divino e a morada de Deus Infinito, isso eles não sabiam.
A princípio não deram importância a essa dificuldade. Sua fé não era raciocinada, mas um reconhecimento perceptivo daquilo que sabiam ser verdadeiro, embora não o pudessem compreender. Com o tempo, como não podia deixar de ser, a necessidade de encarar esse problema até então sem solução, tornou-se imperiosa. E então, como não possuíam os conhecimentos necessários, como estavam imersos nas ilusões dos sentidos e como, em muitos deles, o amor do mundo e da dominação prevalecia, caíram de vez no obscurantismo. Atribuíram duas naturezas distintas a Cristo: uma Divina e a outra humana.
Nisso estariam certos se limitassem esse pensamento sobre o Senhor apenas ao tempo de Sua vinda sobre a terra, em que o humano derivado de Maria ainda não tinha sido unido ao Divino do Pai. Mas consideravam Sua natureza humana como eterna e continuavam a pensar n’Ele — depois de sua ressurreição — como um ser finito, um com Deus e, entretanto, menos do que Ele. Dividiam a Divindade em três pessoas e afastavam-se cada vez mais do culto a Jesus Cristo para o culto a um Deus invisível — orando ao Pai “por causa do Filho”. Assim, dessa forma foi falsificado o ensinamento das Escrituras; pois o Senhor disse a Felipe: “Aquele que me tem visto, tem visto o Pai; como dizes tu então: Mostra-nos o Pai? Não acreditas que Eu estou no Pai, e o Pai está em mim?” E disse também: “Ninguém pode vir ao Pai a não ser por mim”.
A Igreja Cristã foi descendo à medida que se afastava do culto único a Jesus Cristo como Deus. Nessa decadência, o pensamento concentrou-se progressivamente sobre o corpo material e a natureza humana do Senhor tal como tinha aparecido no mundo. Os olhos de todos estavam fixados na Sua suposta expiação por delegação e sobre a paixão da cruz. Os Seus ensinamentos foram sendo, pouco a pouco, interpretados como preceitos puramente morais, civis e políticos, com os quais os Seus discípulos deveriam estabelecer um reino terrestre. Sua Divindade não foi compreendida, e todo esforço para explicá-la conduzia apenas à confusão dos pensamentos e à negativa de coração. Por isso se diz a respeito do “Cordeiro” que Ele estava “morto desde a fundação do mundo”, isto é, o Divino Humano tinha sido rejeitado desde o próprio começo da Igreja.
Não obstante, em todas as épocas do cristianismo, houve muitos que se apegaram à fé simples — crendo sem compreender. Todos estes, dizem os Escritos, adoravam o Senhor como seu Deus e Salvador; e quando estavam em adoração, pensavam no Divino do Senhor sem separá-lo do Humano, e assim reconheciam de coração todo o Divino do Senhor (A. C. 4731). Com estes, por ocasião do Julgamento Final, pôde ser formado um Novo Céu cristão; porque quando o Senhor revelou a Sua qualidade interna — a qualidade interna de Sua Divindade — eles reconheceram esta verdade como alguma coisa que tinham procurado em vão, e em cuja descoberta imensamente se regozijavam. Pois, embora não tivessem a possibilidade de vê-l’O, contudo o “Divino Humano do Senhor tinha estado em seus corações”.
Quando João, com a vista espiritual “olhou, e eis no meio do trono, e dos quatro animais, e no meio dos anciãos, um Cordeiro jazia como morto”, ele predisse que o Divino Humano do Senhor seria revelado, e que com esta visão de Deus, um Novo Céu seria formado e uma Nova Igreja seria estabelecida. Era para esta verdadeira visão de Deus que o Senhor tinha estado a conduzir a raça humana desde o começo; era para esta verdadeira visão de Deus que Ele vinha preparando os homens, lentamente, através dos séculos. Toda vez que o Senhor falava aos homens, procurava conduzi-los a esta idéia verdadeira de Deus. É por esta razão que o Divino Humano está no próprio coração de toda revelação.
O Sentido Interno de toda a Sagrada Escritura nada mais é que isso. Só gradualmente, porém, os homens podiam ser preparados para ver e compreender este conteúdo íntimo da Palavra. Somente quando, afinal, o Senhor pôde “falar abertamente do Pai”, desvendando a verdadeira qualidade de Sua Divindade; somente quando Ele pôde explicar em termos racionais a relação entre o Criador Infinito e o universo finito de Sua criação; somente quando Ele pôde tornar conhecido o processo da encarnação e da glorificação pela qual a Alma Infinita da Vida tomou sobre Si um corpo finito no ventre de Maria, e por graus sucessivos tornou Divino aquele corpo, separando dele toda limitação finita, até torná-lo Infinito e um com o Pai acima dos céus, somente então foi possível aos homens compreender a verdadeira significação interna da Palavra.
Por isso se diz que o “Livro” que representa a Palavra “estava selado com sete selos” e “nenhum homem no céu nem na terra era capaz de abri-lo nem de olhar para ele”. Foi o “Cordeiro” que abriu o livro e “tirou os seus sete selos”. Só o Senhor podia explicar a significação interna de Sua Palavra e, fazendo isso, revelar aquele Divino Humano que até então tinha estado oculto das vistas tanto dos homens como dos anjos. Esta Revelação é a “Doutrina Celeste da Nova Jerusalém”. Os ensinamentos que aí são dados abrem a mente dos homens para entender a verdadeira Divindade de Jesus Cristo, para ver a verdadeira natureza de Seu Humano Glorificado e, portanto, para compreender pela primeira vez a verdadeira significação de Seus ensinamentos dados tanto no Antigo como no Novo Testamento.
Mas qual é a verdadeira idéia do Divino Humano? E de que modo ela afeta todo o nosso pensamento sobre o Senhor Jesus Cristo? Vimos que na Igreja Cristã a mente tem sido focalizada sobre o Senhor como um homem sobre a terra. Tem sido sempre salientada a Sua natureza humana. Este humano tem sido compreendido como semelhante ao dos outros homens, possuindo as mesmas limitações, fraquezas e paixões. O fato d’Ele ter sofrido e morrido para nos salvar, tem constituído o fundamento de todo amor a Ele. Esse amor tem sido uma afeição pessoal, muito semelhante à que temos por um irmão mais velho, cujo exemplo devemos imitar.
Com tal concepção, os homens foram levados: ou a negar que este ser verdadeiramente humano era Deus, separando-O, em seu pensamento, do Criador Infinito do universo que, assim, continuava para eles como um Deus invisível; ou, pior ainda, a atribuir a Deus as fraquezas e imperfeições do homem mortal e a imaginá-lo sofrendo sobre a cruz.
Em contraposição a essa idéia está o ensinamento dos Escritos: de que enquanto o Senhor não assumiu, pelo nascimento de uma virgem, um humano de carne e osso semelhante, a todos os respeitos, ao do homem mortal; enquanto esse humano de Maria estava sujeito a todas as fraquezas e males da raça decaída; enquanto isso, não era por este humano que deveríamos pensar sobre Ele ou adorá-l’O como Deus.
Pois, pelo processo da glorificação, tudo o que era de Maria — tudo o que era finito e material — foi gradualmente e sucessivamente afastado. E em seu lugar o Senhor assumiu um Divino Humano — um Humano não somente concebido, mas também nascido de Jeová —, um Humano de que tinham sido removidas todas as imperfeições e limitações, até tornar-se completamente Infinito e um com o Divino acima dos Céus. E o maior de todos os milagres foi que este Humano, embora Infinito, se tivesse tornado ao mesmo tempo visível e compreensível às mentes humanas.
Como pôde isso ser possível? O Infinito, como é em si mesmo, nunca pode ser visto ou compreendido por qualquer mente finita. Entretanto, é este próprio Infinito invisível que agora, pela primeira vez, se apresenta revelado no Divino Humano do Senhor. A Doutrina Celeste nos explica agora como essa revelação pode se realizar. Aí nos é ensinado que devemos, com efeito, pensar sobre Deus como sendo um Homem. Devemos figurá-l’O na forma humana, baseando a nossa concepção sobre a narração do Evangelho, onde Ele é descrito como um homem sobre a terra, semelhante na aparência externa aos outros homens. Sem essa figura mental o nosso pensamento sobre Deus torna-se um nada informe.
Mas não devemos pensar a Seu respeito focalizando a pessoa ou o corpo. A pessoa — o corpo — deve ser considerada apenas como um médium para as manifestações da Alma — a Vida Infinita que o anima. Nenhum homem é homem por seu corpo, mas unicamente por sua mente que consiste em amor e sabedoria, exprimindo-se por palavras e ações. Conhecer verdadeiramente um homem é conhecer a qualidade de seu amor, de seus propósitos, de suas intenções, que nos são revelados no que ele diz e faz.
O Amor ao Senhor sendo Infinito, então, para conhecê-lo verdadeiramente, devemos afastar de nosso pensamento toda limitação aparente, toda imperfeição externa de Seu humano terrestre e, através de Seus ensinamentos e de Seus milagres, procurar apanhar uma idéia daquela infinidade que se exprime neles. Por essa razão se diz que quando pensamos sobre o Senhor após Sua ressurreição, quando pensamos sobre Ele em Seu Humano Glorificado, como aparece agora nos céus, não devemos pensar n’Ele como humano, antes, porém, como o “Divino Amor em forma humana” (A. C. 4735,2).
Neste pensamento não há limitação. Nisto não há imperfeição finita. Ele é Jesus Cristo, sem dúvida; mas agora glorificado. Nós O imaginamos em forma humana, mas percebemos Seu Amor e Sua Sabedoria transcendendo essa forma. Vemos a Onipresença de Seu Amor e de Sua Sabedoria em todo o universo. Vemos o Seu Amor e a Sua Sabedoria manifestados em todas as coisas da criação. Vemos o Seu Amor e a Sua Sabedoria na ordem maravilhosa da natureza e na operação de todas as Suas Leis. Vemos o Seu Amor e a Sua Sabedoria na maravilhosa formação do homem — não só do seu corpo, mas principalmente do seu espírito. Vemos o Seu Amor e a Sua Sabedoria em todas as maravilhas do mundo espiritual que agora nos foram reveladas, na organização do céu, e na organização e governo dos infernos. Vemos o Seu Amor e a Sua Sabedoria nas operações da Divina Providência, na proteção da liberdade espiritual do homem, nas leis de sua reforma e de sua regeneração. Vemos o Seu Amor e a Sua Sabedoria em todos os ensinamentos da Escritura agora abertos quanto a seu sentido espiritual. Em tudo isso a Infinidade de Deus se torna visível como um Homem verdadeiramente Divino.
Assim, deste modo, é Ele agora visto e conhecido no Céu. Este é o “Cordeiro que estava morto” na Igreja Cristã, porque a verdadeira natureza de Sua Divindade não era compreendida. Este é Aquele a quem os anjos prestam culto e adoração, dizendo: “Digno é o Cordeiro que estava morto de receber poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória e bênção”.
E esta é a idéia de Deus que deve estabelecer entre os homens uma verdadeira religião cristã, restaurando a genuína fé em Jesus Cristo como o Único Deus do céu e da terra, o Criador do mundo, o Redentor da humanidade, um em Essência e em Pessoa com o Pai Infinito, tornado visível agora em Seu Divino Humano Glorificado.
Amém.

•   1ª Lição:     João 14, 1-21
•   2ª Lição:     Apocalipse 5
•   3ª Lição:     L. 35, 1-3