MORALIDADE SEM RELIGIÃO


Sermão pelo Rev. Homer Sinnestwedt


“Contra Ti, contra Ti somente pequei, e fiz o que era mau à tua vista”.

(Salmo 51,4)


“Sara a minha alma porque pequei contra Ti”.

(Salmo 41,4)


“Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos Céus”.

(Mateus 5,20)

Nas lições da Palavra que lemos hoje, nos é ensinado por meio de vários símbolos, que há necessidade de alguma coisa mais do que uma mera afeição e bondade naturais, se quisermos ser perfeitos no sentido de imitar o nosso Pai Celeste que “faz o Seu sol levantar-se sobre o bom e sobre o mau e manda a Sua chuva sobre o justo e o injusto”. Quem não vê que todo o contexto de Mateus é um protesto contra o bem puramente natural, mostrando que ele nada mais é que um egoísmo? Pois não é verdade que amar aqueles que nos amam é apenas uma outra forma do amor de si? O Senhor deseja, porém, que amemos os outros e os sirvamos; pois este é o verdadeiro amor cristão, a espécie de amor que faz o Céu. Nenhuma outra espécie de amor — como, por exemplo, o que se atribui aos publicanos — pode levar o homem ao Céu, ou construir a Igreja ou o reino de Deus na terra. E é das duas espécies de bem aqui descritas que desejo falar.
“E se saudardes unicamente os vossos irmãos, que fazeis demais? Não fazem os publicanos também assim?” (Mateus 5,47). É o uso que devemos procurar ter — o uso pelo próprio uso —, porque é este amor do uso que faz o Céu, que é essencialmente o Céu, e que traz consigo toda verdadeira recompensa e felicidade. Somente isso está de acordo com o Divino Amor e traz o influxo Divino aos nossos corações.
No entanto, podeis perguntar: Será que o homem que não tem crença alguma, não pode amar a sua função, o seu uso? Que diremos, por exemplo, de homens que parecem os mais nobres e abnegados, que fazem mais bem no mundo do que muitos outros e que, entretanto, perderam a sua fé na religião, ou a sua crença em Deus, no Céu e na Palavra, ao menos na forma pela qual essa crença lhes foi ensinada? A morte recente de um grande estudioso da vida das plantas trouxe este assunto à baila, provocando grandes discussões. Alguns diziam que, em todos estes casos, tinha sido formado um plano de verdades religiosas no começo da vida, e que este plano moldou o caráter e o sustentou daí por diante. Outros dizem que a influência da atmosfera religiosa que ainda cerca esses homens é bastante poderosa para mantê-los corretos.
Acrescenta-se, entretanto, que em um ou dois séculos essa atmosfera religiosa virá a faltar, a não ser que venha a ser renovada e reforçada; e temos a história familiar de uma nação que se tornou decadente. Em nenhuma outra parte se ensina com mais clareza que toda obrigação religiosa é principalmente uma obrigação para com Deus do que nas palavras de Daniel: “Contra Ti, contra Ti somente pequei e fiz o que é mau à tua vista”.
Conquanto o agnóstico moderno negue que o declínio sucessivo de cada idade ou de cada era seja produzido pelo fracasso da fé ou da vida religiosa, é, não obstante, uma singular coincidência que o referido declínio, em cada caso, tem seguido passo a passo uma linha paralela ao declínio religioso. O argumento contra isso é que pode haver uma grande ascensão do zelo religioso, atingindo o fanatismo, juntamente com a política mais selvagem e práticas religiosas intolerantes e cruéis. O zelo religioso e a caridade não andam de mãos dadas, de modo algum. A perseguição dos Quakers na primitiva Nova Inglaterra é um caso desses a ser mencionado, como também as perseguições anteriores da Inquisição e o terrível tratamento dado aos huguenotes na França do século XVI. Vê-se assim que, quando dizemos com os Escritos que o declínio da religião é sempre a causa primária do declínio da política e da moral, devemos tomar isso como significando a verdadeira religião, e não qualquer perversão emocional, como é comum nos desdobramentos entusiásticos ou histéricos da religião. São estes que provocam a má reputação da religião entre os estudiosos da história.
A verdade a respeito deste assunto da existência de bons e belos caracteres fora do campo de qualquer credo definido ou de qualquer Igreja se encontra no ensinamento de que todos os seres humanos têm um plano íntimo ou uma faculdade que os faz, pelo menos, procurar uma crença ou expressão religiosa. O Senhor nos criou à Sua própria imagem e, principalmente, para nos amar e ser, por Sua vez, amado, inteligente e livremente, por nós. Por isso todos nós temos um certo instinto religioso. É por essa razão que não há raça alguma que tenha decaído tanto a ponto de não ter mais qualquer espécie de religião — algum sentimento do maravilhoso, algum temor do sobrenatural, nem que seja apenas de um tabu ou totem. Para o novojerusalemita, o ponto a ser assinalado é que essas emoções religiosas, por si mesmas, não são salvadoras.
Uma religião, para ser realmente uma religião, que nos faça voltar ao bem, precisa utilizar as duas faculdades do homem conjuntamente, a saber, a emoção e a inteligência. É somente a conjunção da vontade com o entendimento que forma uma decisão e produz um estado completo pertencente realmente ao homem. A religião que consiste apenas de sentimento é tão inútil como a que consiste apenas de crenças e teorias que tratam de religião. As duas coisas precisam estar juntas.
Em Arcanos Celestes, no 3310, lê-se o seguinte: “Sem as doutrinas há, é verdade, o bem da vida, mas não é ainda o bem da Igreja, assim como não é ainda verdadeiramente espiritual, está apenas em potencia para se tornar tal”. Há uma descrição muito completa dessa diferença no no  4988 da mesma obra, que constitui a nossa terceira lição da Palavra.
Há, hoje em dia, um número crescente de homens proeminentes e úteis que negam francamente que haja qualquer vida fora da natureza e que asseveram que não há Deus, a não ser no sentido de assim se denominar a forças íntimas da natureza. Nos Escritos, esses homens são denominados materialistas. Eles estão no mesmo plano dos antigos pagãos da Grécia e de Roma. Mas como é que alguns homens desse tipo são aparentemente tão racionais e morais, e até mesmo mais racionais e morais do que a média dos religiosos entusiastas? Aqui voltamos outra vez à nossa primeira questão, sobre a qual os Escritos não nos deixam dúvidas. Vejamos o que diz a Verdadeira Religião Cristã:
“As obras da caridade que são feitas por cristãos, e as que são feitas pelos pagãos, se apresentam semelhantes na forma externa, pois tanto os primeiros como os últimos, fazem em relação aos concidadãos os bens da civilidade e da moralidade que, em parte, são semelhantes aos bens da caridade em relação ao próximo; e tanto uns como outros podem dar esmolas aos pobres, socorrer os necessitados, e ouvir as instruções dos templos, mas quem é que pode por isso julgar se estes bens externos são semelhantes na forma interna, ou se esses bens naturais são também espirituais? Sobre este ponto, não se pode concluir senão pela fé, pois a fé os qualifica, a fé faz com que Deus esteja nesses bens e os une a Ele no homem interno, donde resulta que os bens naturais se tornam interiormente espirituais”. (V. R. C. 654)
Há duas espécies de bens: a) bem natural não espiritual, e b) bem natural-espiritual; ou a) bem instintivo, e b) bem religioso; ou a) bem cego, e b) bem inteligente ou clarividente; ou a) bem pagão ou gentio, e b) bem cristão.
O bem natural, mesmo hereditário, é realmente uma boa coisa, pois aqueles que o possuem, estão em condições de poderem convertê-lo — pelas derrotas e tentações — em bem natural-espiritual. Enquanto isso, ele serve a muitos usos externos no mundo. Mas o homem que é dotado desde o nascimento com muitos bens naturais está correndo o risco de iludir-se por isso, e deixar-se levar por uma falsa sensação de segurança. Imagina-se uma boa pessoa e, por isso, talvez deixe de reconhecer sua necessidade de provação e correção.
Essas pessoas são estimadas e aceitas em toda parte, e estão aptas a serem bem sucedidas em determinados tipos de negócios, porque podem alcançar a boa vontade dos clientes ou fregueses. Podem também obter o que desejam e desbravar o seu próprio caminho mais facilmente do que lhes seria conveniente. Isso acontece especialmente quando tratam com o sexo oposto. Porém, pela mesma razão, ficam em situação de menor segurança. Tornam-se pachorrentos e condescendentes consigo mesmos, obstinados e descuidados do próprio controle.
A pachorra das pessoas naturalmente boas, se não for sujeitada com as rédeas do julgamento e da verdade racional, é capaz de se tornar excessivamente teimosa e renitente. São facilmente seduzidos por pessoas astutas que exploram os seus sentimentos naturais, levando-os ao ódio contra o bem que, para atender às necessidades da ordem e de um julgamento sadio, é obrigado a usar de dureza e de severidade. Estas pessoas naturalmente boas podem ser induzidas a condoer-se de criminosos e a auxiliá-los a fugir da justa punição a que estão necessariamente sujeitos.
Muitas das “reformas” mal feitas dos dias que correm são inspiradas por esta espécie de caridade ou piedade espúria. Elas socorrem mesmo os indignos e preguiçosos e até a malfeitores conhecidos, simplesmente porque não podem suportar vê-los passando necessidade, embora seja melhor, em muitos casos, que sofram privações para que sejam levados a se ocupar de um trabalho honesto. Discriminação e autocontrole são essencialmente necessários em assuntos dessa espécie, pois se os instintos naturais não forem corrigidos e mantidos em sujeição pelo julgamento e a consciência, é certo que farão muito mais mal do que bem (vide A. C. 3470).
O bem natural não espiritual é comparado nos Escritos ao mosto ou vinho não fermentado. Está muito sujeito a azedar ou estragar-se quando submetido aos embates das duras lutas da vida. Os que estão nele são muito amáveis e muito doces enquanto as coisas lhes correm bem e quando são bem sucedidos em seus desejos. Mas quando chega a hora das provações com os desapontamentos e desgostos, vede então como os recebem! Muitos se tornam cínicos, e outros se lamentam. Têm, além disso, pouca paciência para economizar ou para praticar uma prudente renúncia que encara o futuro e privam-se dos prazeres presentes para assegurar uma provisão para as necessidades futuras. No fim, voltam-se para os outros implorando auxílio porque fracassaram no desempenho de seus usos e sentem-se sem forças para prover a manutenção da família, nos momentos mais críticos.
O caso torna-se pior se os homens da Igreja confiam nessa espécie de bem ou caridade, para a constituição de sua sociedade. Se o sucesso da Igreja e da organização de seus usos fica na dependência exclusiva desta espécie de bem, ela está às portas do fracasso. Esta espécie de bem natural com as aparências que o apresentam como o ideal mais elevado é o que é significado pelo Egito no mau sentido. Quando submetido pelas provações e pelas tentações às verdades da religião, na mente racional do homem, torna-se imensamente útil. Mas enquanto não está submetido e controlado é como uma cana que verga e se dobra ao menor sopro do vento. “E saberão todos os moradores do Egito que eu sou o Senhor, porquanto se fizera um bordão de cana para a casa de Israel” (Ezequiel 24,6). Essas pessoas concorrem para a manutenção da Igreja e de seus usos, mas somente quando gostam dela, e não por princípio.
Mas a acusação que pesa sobre elas é muito pior, pois em seguida se diz: “Tomando-te eles pela tua mão te quebrantaste, e lhes rasgaste todo o ombro, e, encostando-se eles a ti, te quebraste, e lhes fizeste estar imóveis a todos os lombos”.
“Tomar-te pela tua mão” é apoiar-se fortemente sobre ele. Oh! que doloroso desapontamento o daqueles que confiam nessa boa vontade para levar por diante os seus próprios usos, assim como aqueles usos comuns e organizados de que depende o progresso da sociedade! É como se todo uso, mesmo os da Igreja, dependesse de gorjetas, ou de propinas. A sociedade civil tomou providências para não ficar nessa dependência e gravou com instrumentos de ferro a palavra “dever” tanto sobre o bem como sobre o mal, tanto sobre o querer como sobre o não querer. Mas nos usos da Igreja não é assim; pois para que sejam de alguma utilidade, precisam ser feitos de coração. Está realmente nos Escritos que as taxas para a manutenção da Igreja devem ser cobradas pelo Estado e pagas de boa vontade pelos cristãos leais, mas isso não pode ser feito sem grandes dificuldades em uma terra onde há muitas religiões diferentes.
A sustentação de tal bem ou amor não somente se quebra, mas ainda “nos rasga todo o ombro”. Ora, “o ombro” significa o poder de compreender e de fazer as verdades interiores. E este é “rasgado” ou gravemente ferido quando uma pessoa ou uma sociedade confia neste bastão de cana — neste bem natural não espiritual —, nisto que brilha, mas não é ouro — nesta vaga impetuosa de mero sentimentalismo que passa e fica como se nunca tivesse existido —, que falha e nos abandona quando é mais necessária.
Enquanto dura, pode realmente produzir alguns efeitos naturais, mas é ruinoso para o poder de executar ou produzir qualquer verdade interna. “Rasga o ombro de Israel” — a Igreja espiritual. É por isso que é perigoso para o conveniente desenvolvimento do caráter realmente estar sempre apelando para estes instintos meramente naturais para alcançar usos importantes. Acabam por ferir “o ombro” ou o poder da Igreja de fazer estas coisas como sendo um assunto da vontade interna ou da consciência.
Como acontece em todos os assuntos de maior importância, é em seus efeitos sobre a vida matrimonial, ou o conjugal mesmo, que o mal da confiança em tão traiçoeiro bem é, finalmente, posto em evidência; pois em seguida se diz: “E, encostando-se eles a ti, te quebraste, e lhes fizeste estar imóveis a todos os lombos”. Os “lombos” aqui, como em toda parte na Palavra, representam o conjugal. Aqui, mais do que em todos os outros lugares, nos é apresentada a falta de confiança e a completa traição desta espécie de amor natural.
Enquanto o amor do sexo é apenas um assunto do instinto cego, não se deve de modo algum confiar nele. Os modernos egípcios, com efeito, exaltam as paixões elementares, e ensinam que o homem e a mulher que seguem os impulsos de seus instintos naturais são fiéis à sua melhor natureza, e são os únicos que vivem a vida que a natureza indica. Mas isto é uma infeliz ilusão, como os seus resultados mostram frequentemente. Pois embora esse amor ou paixão tenha, realmente, o seu lugar próprio, contudo, se não for subordinado à consciência e às leis da ordem que nos foram reveladas, acabará por arrastar o homem somente para os usos animais.
No estado pervertido em que estamos, que é único em todo o reino animal, ele costuma ser sucedido por um estado de frieza que “fará com que os lombos de Israel fiquem imóveis”, isto é, deterá todo progresso para o mais verdadeiramente humano de todos os amores, o amor que se torna eterno, sobrevivendo mesmo à decrepitude e à dissolução final do corpo — o amor verdadeiramente conjugal, o supremo dom do Senhor à Nova Igreja.
Mas não devemos dar por terminado esse assunto antes de dizermos mais alguma coisa sobre ele. Todo amor, mesmo o mais elevado, o mais santo e o melhor, vem primeiro como uma coisa natural e instintiva, inteiramente espontânea. Não é um amor antinatural que os Escritos advogam. O contraste não se faz entre um amor natural concreto e um amor espiritual abstrato, mas entre duas espécies de amor natural. O amor que fracassa é o que é natural sem ser ao mesmo tempo espiritual. O que é necessário é que, quando este amor natural se manifesta, seja sujeito ao controle e direção do espiritual; seja vergado, mas não destruído; e seja útil aos fins para os quais o Senhor o criou em primeiro lugar. Somente assim pode ele ser trazido à sua verdadeira ordem e redimido da corrupta deformação que sofreu com a queda do homem.
O amor conjugal e a vida matrimonial não podem prosperar se não forem alimentados pelos prazeres tanto internos como externos. Por isso nos foi ensinado que “o bem natural é o prazer que flui da caridade e da fé” e que “o bem natural é o prazer que é percebido pela caridade e pela amizade que é da caridade; deste deleite decorre o prazer que é propriamente do corpo” (A. C. 2781 e 2184).
Na Igreja, portanto, como no lar, os prazeres não devem faltar e nem as delícias do corpo. Estas, quando usadas apenas para a satisfação momentânea, tornam-se ignóbeis e efêmeras; são como uma simples cana quebrada; mas quando dirigidas e subordinadas ao controle e ao serviço do Senhor por meio da consciência formada pelas verdades de Sua Palavra, são enobrecidas, purificadas e exaltadas a ponto de não sentirmos que possa haver prazer maior do que aquele que o Senhor nos dá na esfera de Seu Reino.
Amém.

•   1ª Lição:     Ezequiel 29, 1-16
•   2ª Lição:     Mateus 5, 17-30
•   3ª Lição:     A. C. 4988


Pachorra: Falta de pressa ou de aplicação; calma excessiva, paciência embotada. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.