MARTA E MARIA


Sermão pelo Rev. Williard D. Pendleton


“E respondendo Jesus, disse-lhe: Marta, Marta, andas cuidadosa e fatigada com muitas coisas, mas uma só é necessária; e Maria escolheu a boa parte,
a qual não lhe será tirada”

(Lucas 10, 41-42).

O sentimento do dever é uma força que nos impulsiona, que nos impele, como um aguilhão, no cumprimento das obrigações decorrentes da vida no mundo natural. Obrigações que não podem ser descuradas porque as relações humanas repousam sobre elas. Não podemos servir ao próximo só com boas intenções. As nossas intenções espirituais, para terem valor, precisam exteriorizar-se em realizações, trabalhos e serviços.
Assim é que a vida no mundo impõe-nos muitas responsabilidades que não podemos descurar, se quisermos que a sociedade se mantenha. Os nossos dias estão, com efeito, sobrecarregados de deveres a cumprir. Como Marta, acreditamos que a nossa tarefa é excessivamente grande. Embora não desgostemos de nossa sorte, estamos sempre inclinados a achar que a vida é cheia de complicações demasiadas.
De certo modo, isso é verdade; pois um sistema social altamente organizado impõe uma multidão de encargos. Mas o peso das responsabilidades não decorre do tempo que nos tomam. O que nos acabrunha o espírito é a ansiedade que delas provém. Diferentemente dos anjos, geralmente não estamos satisfeitos com o presente, e em nossos corações tememos pelo futuro. Como nos falta uma confiança completa na Divina Providência, ficamos sujeitos às inquietações e aos cuidados. Atormenta-nos freqüentemente o pensamento desanimador de que não temos vocação para as funções de que estamos incumbidos. Desta forma as nossas responsabilidades se tornam pesadas, parecendo-nos uma carga difícil de suportar. Sentindo-lhes o peso, desejamos nos desvencilhar delas. Não o fazemos, porém, porque o nosso sentimento de dever não o permite.
Quer o queiramos ou não, temos que continuar. Somente os fracos ou os inconscientes põem de lado as obrigações assumidas. É bom que isso seja assim, porque o reino dos céus, do mesmo modo que o mundo dos homens é um reino de responsabilidades; isto é, um estado fundado sobre a dedicação, o trabalho e os serviços mútuos. Se essas coisas fossem rejeitadas, o reino do céu não poderia se estabelecer. Não imaginamos, porém, que o simples cumprimento do dever é suficiente para a salvação. Se os deveres não forem encarados como responsabilidades espirituais, ou o que é o mesmo, como usos de Deus, eles perderão inteiramente o seu valor. Lembremo-nos do que disse o Senhor: “Marta, Marta, andas cuidadosa e afadigada com muitas coisas, mas uma só é necessária; e Maria escolheu a boa parte, a qual não lhe será tirada”.
De acordo com a narração da Escritura, o Senhor tinha entrado na casa das duas irmãs, e Marta, sendo uma mulher prática, ocupava-se com os preparativos da festa. Maria, porém, aparentemente despreocupada de suas responsabilidades domésticas, sentou-se a Seus pés. “Marta andava distraída em muitos serviços e, chegando, disse: Senhor, não se te dá de que minha irmã me deixe servir só? Dize-lhe pois que me ajude” (Lucas 10, 40). Falando assim, Marta dava expansão ao ressentimento próprio dos que julgam pesar injustamente sobre seus ombros a maior parte da carga. Mas o Senhor, embora louvando a sua diligência, repreendeu-a, fazendo-lhe ver que “uma só coisa é necessária”, e esta era justamente a parte que Maria escolhera.
Como aquela outra Maria que deu à luz o Filho Divino, a irmã de Marta representa a afeição da verdade. Este amor, inicialmente, é o médium pelo qual o Senhor nasce no mundo escuro da mente. É ainda este amor que, por assim dizer, senta-se aos pés da Divina Verdade para que possamos receber a Palavra. Com efeito, se não houvesse Maria dentro do homem, o Senhor não encontraria morada nele. Sem a afeição pela verdade, mortal algum pode ser salvo. É esta afeição que sustenta os restos celestiais de inocência que foram implantados na infância. É ela que, na vida subseqüente, governa esses restos, no sentido mais elevado da palavra. Aparentemente, Maria tinha sobrecarregado sua irmã com todo o peso do trabalho, mas, na realidade, estava desempenhando o uso mais elevado. Enquanto Marta se fatigava no serviço da casa, Maria pesava cada palavra que o Senhor pronunciava.
Como Maria, devemos trabalhar nos prementes problemas da vida. Precisamos, indiscutivelmente, devotar grande parte dos nossos esforços à rotina da existência diária. Mas “uma coisa é necessária”, a saber, aqueles momentos de repouso espiritual em que, como Maria, nos assentamos aos pés do Senhor. Entretanto é justamente nisso que falhamos com demasiada freqüência. Como Marta, somos inclinados a descurar esta obrigação mais elevada. As nossas relações com o Senhor não são tão visíveis como as nossas relações com o próximo; sendo menos sensíveis os deveres decorrentes daquelas situações. Não há por isso a mesma força impulsora.
É verdade que, quando servimos ao próximo, estamos servindo ao Senhor, pois Ele disse: “Portanto tudo quanto fizerdes a um destes meus irmãos, a mim o tendes feito”. Não esqueçamos, entretanto, que a qualidade de nossas relações com o próximo é determinada pela qualidade de nossas relações com o Senhor. Nos estados irregenerados não é possível um ato desinteressado. Em tudo o que fazemos está presente o amor do eu, roubando o que, de outra forma, seria uma oferenda espiritual ao próximo. E não podemos nos libertar desse flagelo a não ser na medida em que nos aproximamos do Senhor em Sua Palavra — a não ser no grau em que cultivamos a afeição espiritual pela verdade. Exatamente como o Senhor disse a Marta: “Uma só coisa é necessária”. E sem ela o nosso labor será em vão.
Devemos procurar o Senhor por nossa própria vontade, e só podemos achá-l’O na Palavra. Quando ainda somos crianças, achamos um encanto especial naquelas verdades simples que a Palavra na letra nos oferece. E isso por duas razões: a primeira, é que a criança está estreitamente ligada aos restos celestiais da inocência; a segunda, é que a mente infantil ainda não está arruinada pelo orgulho da própria inteligência. Mas este estado de recepção relativa não pode durar muito, porque não pertence propriamente à criança. É um estado emprestado pelos céus celestial e espiritual. Quando o homem atinge maturidade se torna, por assim dizer, ele mesmo, isto é, entra na posse de sua verdadeira herança. Esta, sendo má, é baseada no amor do eu, e este instintivamente resiste a tudo que se opõe a seu desenvolvimento.
É por meio de Sua Misericordiosa Providência que o Senhor entra em contato com este estado de resistência interna. Forçosamente o homem deve assumir as obrigações externas que a sociedade lhe impõe. A marca de Caim está sobre ele; precisa, pois, trabalhar, se quiser continuar a existir. Além disso, o homem irregenerado reconhece as possibilidades que decorrem do desempenho de sua tarefa cotidiana, pois aí residem as oportunidades para seu próprio engrandecimento. Os empreendimentos humanos são sempre cheios de fortes incentivos. Muito poucos, porém, conseguem realizar as suas ambições pessoais. Isso só é permitido até onde não prejudique o equilíbrio espiritual do homem. Assim, a Providência exerce uma influência constante sobre nossas vidas. Em algumas coisas somos desiludidos; outras nos são negadas.
Esta negação, entretanto, leva o homem a compreender coisas que interessam a sua paz. As relações humanas começam então a assumir certa significação espiritual. O sentimento do dever suplanta o egoísmo integral do começo da existência — sentimento que é fundado sobre o respeito pelos outros. O respeito ou consideração pelo próximo ainda não é o amor ao próximo, é apenas um rudimento desse amor. Entretanto aí já existe alguma coisa sadia — alguma coisa que promete desligar-nos do eu. É isto que a Escritura representa pelo estado de Marta.
Em Marta encontramos uma mulher cujo sentimento de dever era limitado à administração das funções naturais. A presença do Senhor em sua casa instigou aquele sentimento do dever que nasce do reconhecimento das necessidades dos outros. Nisto ela estava justificada; sim, mais do que justificada. Pois essa consideração é a semente de todo desenvolvimento espiritual. Não é egoísmo; contudo ainda não está livre da mácula do eu, como se evidencia pelo seu ressentimento contra Maria. Mas é um começo em si mesmo salvífico, pois de tais pessoas são compostos os céus naturais. Aí, no grau inferior do reino do Senhor, residem aqueles que servem os outros de boa vontade, mas que nunca alcançam uma concepção mais interna das obrigações da vida. Se o homem quiser progredir mais, se quiser construir sua morada espiritual em um plano mais lato, uma única coisa é necessária, a saber: a parte que Maria escolheu.
Em seu aparente descaso pelos encargos que competem à dona de casa, em face da inesperada visita do Senhor, Maria parece em falta. Tanto quanto podemos julgar pela Escritura, ela não estava de modo algum interessada nas ocupações de Marta. O fato de sua irmã ficar só no arranjo da cada para receber o Senhor parecia não preocupar a sua consciência. Era disso que Marta se queixava. Maria, porém, sabia o que Marta ignorava, isto é, que esta era uma oportunidade espiritual, uma ocasião que exigia que se pusessem de lado os pensamentos e as considerações mundanas. Seu Mestre tinha vindo, e as palavras que Ele falava eram as palavras da vida eterna. O seu dever estava em ficar a Seus pés.
A vida no mundo sendo absorvente como é, a nossa mente está, na maior parte do tempo, ocupada com os problemas da vida cotidiana. E não pode deixar de ser assim, pois desta maneira somos protegidos contra os pensamentos egoísticos que a ociosidade inspira. Mas o círculo dos negócios mundanos deve ser quebrado, de tempos em tempos, por momentos de reflexão espiritual. Por nossa própria vontade devemos, de vez em quando, pôr de lado todos os pensamentos e cuidados do mundo e procurar fazer a renovação de nossas relações com Deus. É só por esse meio que poderemos alcançar aquela perfeição de vida expressa nas palavras: “Seja feita a tua vontade”.
A vontade do Senhor não pode ser feita de uma maneira completa, a não ser que saibamos o que é que Ele quer. Devemos, portanto, aproximar-nos d’Ele com espírito de adoração através da Palavra que revela a Sua vontade, falando a todas as gerações. Somente deste modo podemos nos elevar acima do estado representado por Marta para uma viva percepção de nossas relações com o próximo. Nos primeiros estágios da regeneração isso só pode ser feito por compulsão. Pois como vimos, há aquela resistência interna engendrada pelo eu. Como o Israel da antigüidade, precisamos ser compelidos a observar o Sabbath, isto é, os períodos de repouso das coisas naturais que nos foram prescritos. Mas esta compulsão deve vir de nós mesmos, ou melhor, deve ser um sacrifício do eu próprio. Enquanto o homem ainda está em um estado não regenerado, uma aproximação para o Senhor só tem valor se envolver o sacrifício de algum desejo natural. O que lhe oferecemos quando lemos a Escritura a nosso bel-prazer? Que utilidade tem o culto que se tornou um mero assunto de conveniência pessoal? Na realidade, poderemos nos sentir necessidade de tais coisas. Na realidade, poderemos nos salvar reconhecendo o Senhor e tendo consideração pelo próximo, apenas. Mas a salvação é uma coisa e a regeneração, outra. A primeira garante-nos a admissão no Céu natural; a outra leva-nos ao desenvolvimento do progresso espiritual que resulta em um mais elevado desempenho do uso para o qual fomos criados.
Este estado de Marta, embora não seja propriamente mau, entretanto muito pouco promete para o nosso desenvolvimento espiritual. A não ser que nos aproximemos do Senhor com ardor, a não ser que cultivemos os meios de regeneração que Ele põe à nossa disposição, não passaremos, por assim dizer, de um caso de desenvolvimento espiritual paralisado.
Como membros da Nova Igreja, conhecemos quais são as nossas responsabilidades. Sabemos que o dia não deve passar sem que procuremos o Senhor em Sua Palavra. Sabemos qual é o nosso dever na manutenção do culto organizado. Conhecemos especialmente a necessidade de guiar os nossos filhos tanto pelo exemplo quanto pelas palavras. A maior herança que lhes podemos dar é essa esfera de culto que recebemos cultivando em nossa mente a Palavra do Senhor. Temos os conhecimentos suficientes; resta-nos aplicá-los em proveito do progresso espiritual.
Não imaginemos, porém, que o culto é um assunto sobre o qual sempre será necessário insistir. Isso é verdade somente no estado representado por Marta. Vem depois o tempo em que o homem começa a sentir prazer no cumprimento dos deveres espirituais. Então, aquilo que antes exigia um esforço de nossa parte, torna-se uma fonte crescente de prazer. Aquela afeição espiritual da verdade que nos foi implantada na infância, começa a brotar, e então o estado representado por Maria se aproxima. A responsabilidade torna-se privilégio. O dever torna-se prazer.
Como o amor conjugal, a afeição da verdade espiritual “é tão rara, hoje em dia, que não se sabe o que ela é, ou mesmo se ela existe”. A razão disso é clara. A verdade espiritual não é conhecida fora da Nova Igreja do Senhor. Há pessoas que atingem neste mundo o estado de Marta e que, no outro, podem ir além, embora aqui isso não lhes fosse possível; porque conhecem a Deus e servem o próximo, mas sua visão está restringida ao plano natural. Na Nova Igreja, entretanto, as possibilidades são outras. Podemos, se quisermos, nos assentar aos pés do Senhor. Mesmo aqui na terra, podemos agora aprender a amar aquelas Verdades Divinas que nos dão um horizonte espiritual sempre crescente. A nossa visão está, muitas vezes, obliterada por concepções errôneas. E há ocasiões em que a luz do sol espiritual fica obscurecida por estados ameaçadores. Entretanto, em certos momentos, nos são dadas claras visões das coisas espirituais. Algumas vezes podemos gozar vislumbres de coisas pertencentes à paz espiritual. Mas isso só será possível se, como Maria, nos tornarmos sensíveis aos encantos de Sua Palavra.
Amém.

Lições:   • Deuteronômio 6
• Lucas 10, 25-42
• H. H. 309-310