LIBERDADE ESPIRITUAL


Sermão pelo Bispo George de Charms


“E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.

(João 8, 32)

Ser livre é o mais profundo desejo do coração humano. Para serem livres os homens têm trabalhado e lutado, sofrido e morrido, em todas as épocas. Entretanto, o seu esforço em prol da liberdade tem falhado sempre. O progresso só tem sido conseguido à custa de lutas longas e penosas, avançando por passos lentos e invisíveis; ganhando um pouco aqui e outro pouco ali. Muitas vezes o que já foi alcançado tem se perdido e só à custa de novas lutas e sacrifícios, é reconquistado.
Na era moderna os resultados pareciam ser mais animadores. Os homens pensavam ter, por fim, descoberto o segredo da liberdade. Acreditando que ela reside na subjugação das forças da natureza, concentravam todas as suas energias nessa tarefa. Objetivos da mais alta importância foram atingidos, aumentando e desenvolvendo, com rapidez crescente, a liberdade natural do homem. O adiantamento dos conhecimentos, combinado com a difusão da educação, afastou progressivamente os limites da ignorância. Gênios inventivos multiplicaram as descobertas destinadas a reduzir a parte penosa do trabalho; descobertas que nos dão comodidade, conforto e prazer. A aplicação das leis científicas tem aliviado bastante o sofrimento humano. A educação tornou possível um maior grau de responsabilidade pessoal, o que assegura ao indivíduo uma medida maior de liberdade civil e política.
Não obstante tudo isso, não é certo que se tenha alcançado algum resultado permanente. O mundo moderno, sob o próprio peso do seu desenvolvimento intelectual, parece estar envolvido em uma rede de forças misteriosas de que não possui o controle; forças que o estão inexoravelmente constringindo, numa crescente ameaça de esmagar cada vez mais a sua liberdade tão duramente conquistada, e inutilizar tudo o que foi obtido. Chegamos a perguntar se existirá mesmo isso que se denomina “liberdade humana”! Será possível obtê-la? Ou os homens têm estado a lutar por uma miragem que os tem levado a embrenhar-se, cada vez mais profundamente, num deserto de escravidão sem fim, de que não há como escapar?
É isto realmente o que tem acontecido; não porque seja inexistente a liberdade humana, mas porque os homens não conhecem a sua verdadeira essência. Tomam a aparência pela realidade. Supõem que ela consiste na faculdade da vontade humana poder realizar os seus próprios desejos. Imaginam que esses desejos poderão ser progressivamente satisfeitos pelo domínio das forças da natureza. Sabendo que os desejos da vontade humana tanto podem ser bons como maus, acreditam, entretanto, que a causa do mal é a ignorância e que, à medida que os conhecimentos se multiplicarem e a inteligência aumentar, os bons desejos prevalecerão sobre os maus.
É exatamente o oposto que tem acontecido. A fonte da liberdade não é a vontade do homem, mas a vontade de Deus. A verdadeira liberdade consiste em sermos conduzidos pelo Senhor. Resulta não da vitória sobre as forças naturais, fora do homem; mas da vitória sobre as forças do mal dentro de seu próprio coração. O aumento dos conhecimentos naturais e o desenvolvimento da inteligência externa, somente, não assegurarão essa vitória. Essas coisas podem ser usadas tanto para bons como para maus fins. Servem para aumentar em nós tanto o poder do bem como o do mal.
O homem, por sua própria inteligência, não pode distinguir o que é verdadeiramente bom, daquilo que lhe parece bem apenas porque dá prazer e satisfação ao seu amor natural. Só o Senhor conhece o que é verdadeiramente bom, e Ele só nos pode conceder o bem à medida que colocamos a nossa mente sob Sua direção. É este o único caminho que conduz à liberdade. E é esta a clara significação das palavras do Senhor no oitavo capítulo do de João.
Aí se conta que Ele estava ensinando no Templo e quando falava “muitos creram n’Ele”. Então Jesus a estes: “Se permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos tornará livres”. Pensando que Ele falava da liberdade externa, eles replicaram: “Somos descendentes de Abraão e nunca servimos a ninguém; como dizes ‘Tu sereis livres’?” respondeu-lhes Jesus: “Em verdade, em verdade vos digo que todo aquele que comete pecado é escravo do pecado. Ora, o servo não fica para sempre em casa; o Filho fica para sempre. Se pois o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres”. Isto constitui um ensinamento bem claro: a liberdade externa — a liberdade de pensar, de falar e de agir como quisermos — é uma ilusão.
Pelo fato de nos dar prazer, ela nos dá a impressão de que somos livres. Mas esse prazer é mau porque se concentra no eu e destrói a liberdade dos outros, procurando subjugá-los à nossa vontade e visando a própria satisfação à custa deles. Acaba por exercer sobre os outros uma dominação opressiva e cruel que espalha o sofrimento em torno de si. E como é necessário que esta vontade desordenada de dominar seja reprimida pela misericordiosa Providência do Senhor, em defesa dos outros homens, isso redunda inevitavelmente em punição e sofrimento, o que acarreta a inutilização final dos nossos esforços e a escravidão às nossas próprias paixões.
A Lei de Deus é uma Lei de amor ao Senhor e de caridade para com o próximo. Agir pelo amor de si mesmo, isto é, procurar como mais alto bem a satisfação de sua própria vontade, constitui a essência mesma do pecado. E “quem comete pecado, torna-se escravo do pecado”. Podemos imaginar que somos senhores de nossa própria sorte e, por algum tempo, seremos bem sucedidos, tendo assim uma sensação de liberdade; mas isso durará somente enquanto o nosso mau amor puder ser usado pela Providência do Senhor para alcançar resultados que são torcidos para um fim bom; somente enquanto podemos, ainda que inconscientemente, agir como um servo da Divina Vontade. Mas um servo desta espécie “não permanecerá em casa para sempre”. Seu amor de si é incansável. Precisa ser posto na prisão para não prejudicar e destruir o bem. Esta é a escravidão do inferno. O amor de si, portanto, é a causa e a origem da escravidão; pelo contrário, o amor ao Senhor é a causa e a origem de toda liberdade verdadeira.
O que nos habilita a amar o Senhor é o que se chama inocência. Inocência é a boa vontade em ser guiado. É de duas espécies: externa e interna. A inocência externa é uma boa disposição para ser guiado por aqueles em quem temos confiança. A inocência interna, porém, é uma boa disposição para ser guiado pelo Senhor somente. Todo homem ao nascer é dotado pelo Senhor da inocência externa. É um prazer que nos torna aptos a ser instruídos e guiados na infância, na meninice e na juventude, por nossos pais e professores. Quando avançamos em idade, este prazer decresce e é gradativamente substituído pelo prazer de nos guiarmos a nós mesmos.
Entretanto, esta inocência da infância, pelo fato de conter em seu íntimo o verdadeiro prazer do céu, fornece-nos os meios e nos prepara o caminho para a inocência interna. Se a criança for instruída sobre o Senhor, se for levada a conhecê-l’O e amá-l’O como Seu Pai Celeste, a ter fé inquebrantável no ensino da Palavra, então, embora estas coisas não tenham sido compreendidas, embora elas sejam pouco mais do que palavras e frases aceitas sob a autoridade de outros, ainda assim contêm a semente da fé espiritual e da inocência interna, isto é, do prazer de ser guiado pelo Senhor.
Quando a idade adulta for alcançada, quando os dias da inocência da infância tiverem passado e o homem se encontrar diante da responsabilidade de determinar a sua própria sorte, perceberá então que, por meio daquela inocência, foi formado em sua mente um templo onde o Senhor pode lhe aparecer direta e individualmente para lhe ensinar o caminho do céu. E neste templo espiritual haverá idéias, afeições e prazeres correspondentes aos ensinamentos do Senhor, impelindo-o a aceitá-l’O e crer n’Ele.
Esta primeira fé é o verdadeiro santuário da liberdade do homem. Sem ela o homem seria levado inevitavelmente para longe pela corrente de seus próprios amores e desejos egoísticos, não conhecendo outro prazer e supondo que somente assim poderia ser livre. É esta fé que lhe faz sentir a proteção e um poder fora de si mesmo — um poder que está vigilante sobre ele com desvelado cuidado. É esta fé que lhe dá o sentimento de sua própria fraqueza e ignorância, e de sua dependência de um poder mais alto. Utilizando o prazer desta fé, o Senhor estabelece um equilíbrio com o prazer de dirigir-se por si mesmo — e pela sua própria vontade, que o homem recebe por herança natural e que aumenta com os anos — até não poder ser mais refreado pelo constrangimento externo.
Devido a esse equilíbrio, o Senhor pode dar-lhe o poder e a liberdade — como sendo propriamente seus — para escolher o prazer da inocência, de preferência ao prazer de dirigir-se por si mesmo. Se fizer esta escolha, então não estará mais num prazer imposto de fora — um prazer a que tenha sido compelido por pressão de outros. Isso exige que não continue a ser guiado por outros homens que são também falíveis e sujeitos a erro, como ele próprio. Trata-se de um prazer que livremente escolheu e em que há o emprego de sua própria determinação e, por isso mesmo, uma sensação de liberdade interna. É um prazer que o impele a submeter voluntariamente seu coração e sua mente à direção do Senhor quando ouve os ensinamentos de Sua Palavra.
É isto a essência da vida espiritual. Mas ainda não é uma religião viva. Aos que deste modo chegam a crer n’Ele, o Senhor diz: “Se permanecerdes em minha Palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos tornará livres”. Os judeus a quem o Senhor dirigiu estas palavras tinham chegado a crer n’Ele; mas a sua fé era um estado temporário, produzido pela esfera de Sua presença e pela força de Seus ensinamentos. No momento eles viram a verdade e sinceramente a reconheceram. Mas havia muitas coisas em suas mentes — coisas inocentemente aceitas como verdadeiras e profundamente confirmadas pelos hábitos adquiridos — que se opunham a essas verdades. Quando esse estado momentâneo passava, aquelas idéias costumeiras voltavam a atacar a sua fé e a levantar dúvidas a seu respeito. Se quisessem conservá-las, se quisessem transformar as suas vidas, se quisessem fazer-se verdadeiramente discípulos do Senhor, então deveriam ir de encontro a essas dúvidas e vencê-las.
Para isso, porém, não dispunham de conhecimentos suficientes. Precisavam adquirir uma instrução mais desenvolvida. Precisavam voltar ao Senhor e estudar com interesse a Sua Palavra para obter resposta às dúvidas que os perturbavam. Precisavam persistir em manter seus pensamentos sob a direção do Senhor como antídoto contra a tentação de confiar em seus próprios conhecimentos e inteligência. Antes que isso fosse feito, não seriam verdadeiramente discípulos do Senhor. Aceitando apenas, em parte, os Seus ensinamentos, iriam torcê-los, gradualmente, de acordo com sua errônea concepção e, dessa forma, os falsificariam. Por isso o Senhor lhes disse: “Se permanecerdes em minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos”.
Esta permanência na Palavra apresenta-se ao homem como uma luta intelectual. Requer leitura, estudo e reflexão. Essa essência é uma luta para manter a fé, isto é, a boa disposição para ser conduzido e instruído pelo Senhor, no combate ao desejo natural de confiar na própria vontade. Nessa luta o amor ao Senhor é fortalecido. E esse amor é uma chama que dá luz espiritual à mente e, portanto, permite uma visão interna da verdade — um entendimento mais profundo da verdade da Palavra. E com esse entendimento uma nova responsabilidade.
O entendimento da verdade indica o caminho para uma vida religiosa verdadeira. Revela a diferença entre esta vida e uma vida simplesmente moral e civil. A vida moral e civil pode ser usada pelo amor de si para atingir os seus fins. Pode ser usada para propósitos maus, mesmo quando a aparência do mal é eliminada da conduta externa. Só a vida espiritual é que afasta realmente o amor de si do coração, das intenções íntimas da vontade e põe, em seu lugar, o amor do uso e a caridade para com o próximo. Afasta o amor da dominação e põe em seu lugar o prazer do uso e um profundo respeito pela liberdade dos outros, fazendo com que o homem encontre a sua própria felicidade em promover o sucesso e o bem estar dos outros. Por isso o Senhor disse: “Se conhecerdes a verdade, a verdade vos tornará livres”. Pois no amor ao Senhor e na caridade espiritual, exercida na vida prática, reside o segredo de toda liberdade genuína.
Todos sabem que a liberdade em qualquer organização social depende da integridade de caráter, da sinceridade, da honra e da justiça daqueles que a constituem. Sabemos que estas virtudes podem ser praticadas simplesmente por considerações de interesse próprio e que, neste caso, a liberdade é insegura e transitória — em constante perigo de ser violada. Em geral, porém, não se sabe como isso pode ser evitado. Considera-se o interesse próprio como inevitável e universal, por ser inerente à natureza humana. Qualquer esforço para eliminar esse interesse é considerado como visionário. Por isso os homens procuram atingir a liberdade por todos os meios que os habilitem a exercer a sua própria vontade, deixando o amor de si imperturbável no íntimo de sua mente.
Procuram-na acumulando conhecimentos naturais, dominando as forças da natureza, eliminando a pobreza, estabelecendo sistemas ideológicos de economia e de política, acreditando em vão que quando a ignorância e a necessidade forem vencidas, o egoísmo desaparecerá por si mesmo, espontaneamente e sem luta. Mas recusam-se a encarar de frente a luta espiritual pela qual, unicamente, essa vitória poderá ser alcançada. Recusam-se a vir ao Senhor para que possam ter vida. Rejeitam o ensino de Sua Palavra que os chama ao arrependimento. Não querem submeter suas mentes à disciplina da verdade. Por isso não toleram aquela compulsão interna do eu pela qual, unicamente, o mal pode ser destruído em sua origem. Assim, mesmo quando lutam em vão para escapar aos efeitos externos do mal, conservam a causa interna do mal a qual destruirá de noite o que eles se esforçam por construir durante o dia.
É por esta razão que uma Nova Igreja precisa ser estabelecida — uma Nova Igreja em que haja fé espiritual e religião realmente viva. Para realizar isso o Senhor veio outra vez a Seu Templo. É por esta razão que uma Nova Igreja precisa ser estabelecida — uma Nova Igreja em que haja fé espiritual e religião realmente viva. Para realizar isso o Senhor veio outra vez a Seu Templo. Veio em uma Revelação racional de Sua verdade, em que podemos ver a presença e a operação de Seu Infinito Amor e de Sua Infinita Sabedoria. Todos os que O vêem aí, que ouvem o Seu ensinamento e reconhecem Sua verdade de coração e com fé, estão sempre entre os que crêem n’Ele. Mas se quisermos, de fato, ser Seus discípulos “precisamos permanecer em Sua Palavra”. Não podemos nos contentar só com uma formal profissão de fé. Temos que nos esforçar ardentemente para compreender a verdade como meio espiritual de vida. Devemos aceitar Seu conselho e no meio de todas as tentações, submeter nossa vontade à direção do Senhor — à direção de Sua verdade que governará não só as nossas palavras e ações, mas também os nossos propósitos e intenções íntimas. Somente assim a Igreja crescerá e se tornará forte em espírito — forte no espírito do amor ao Senhor e na caridade para com o próximo; preparando-se assim o caminho para a restauração final da genuína liberdade no mundo.
Amém.

•   1ª Lição:     Isaías 41
•   2ª Lição:     João 8, 16-38
•   3ª Lição:     A. C. 1937,4-5