ILUMINAÇÃO PELA PALAVRA


Sermão pelo Bispo George de Charms


“E Moisés disse a Aarão todas as palavras do Senhor que o enviara”.

(Êxodo 4,28)

Uma Igreja viva só existe quando os homens recebem a iluminação espiritual. A única fonte dessa iluminação é a Palavra Divina; por conseqüência, sem a Palavra não pode haver Igreja. A simples presença da Palavra, entretanto, não faz a Igreja; para isso é indispensável uma verdadeira compreensão de Deus e o culto que, de coração, lhe prestamos. Ver a Deus é, espiritualmente, compreender a Divina Verdade que a Palavra ensina; e adorar a Deus é querer esta verdade para viver de acordo com ela.
O entendimento espiritual e o querer, ou a vontade, são atributos da mente humana. Só podem existir, portanto, no homem. Por isso se diz que “o reino do céu está dentro de vós”. A Igreja é o reino do céu sobre a terra e, tal como o céu, está, segundo dizem os Escritos, “onde o homem está e de modo algum fora dele”. A Palavra realmente existe fora do homem; mas a Igreja só existe nele. O meio pelo qual a Palavra atua sobre nós para formar a Igreja é o que se chama ilustração espiritual.
É, portanto, da mais alta importância, compreender o que é significado por ilustração espiritual e como pode ser recebida.
A ilustração ou iluminação espiritual não consiste no conhecimento da Escritura, nem ainda na lógica compreensão de doutrinas nela baseadas, mesmo que essas doutrinas sejam verdadeiras. Não é resultante da acuidade intelectual com que nascemos, nem do pensamento exercitado em assuntos religiosos, em estudos acurados. Não pode ser alcançada por qualquer esforço humano; mas pode ser concedida tanto ao homem simples como ao ilustrado. A sua doação é sempre um milagre da misericórdia do Senhor. Para que ela possa ser dada, são necessárias, entretanto, certas condições que envolvem um esforço consciente por parte do homem. Quando essas condições são preenchidas, a iluminação vem espontaneamente, talvez não no mesmo momento, nem do modo como a esperamos, mas segundo os desígnios do Senhor.
Ele tem em vista o nosso bem-estar eterno e procura conceder-nos, pela ação de Sua Providência, toda a iluminação que nos pode ser dada para obtenção desse bem-estar eterno. A verdade é poderosa e a sua força tanto pode ser usada para o bem como para o mal. O conhecimento da verdade por uma mente má, pode se transformar em uma arma de destruição. Conhecer a verdade espiritual da Palavra e usá-la com um mau propósito, é o que se chama profanação. Isto destrói toda vida espiritual. É um pecado imperdoável de que não há redenção.
Para o homem ser salvo, precisa não só ser iluminado como também protegido contra a profanação. Por esta razão o Senhor conserva inteiramente em Suas mãos o poder de iluminar e exerce esse poder segundo Seus próprios métodos e de acordo com Sua Infinita Sabedoria. É só quando recebemos a iluminação que o céu e a Igreja podem ser estabelecidos em nós.
A iluminação verdadeira é o entendimento perceptivo da verdade espiritual, único meio de nos ser concedida a verdadeira sabedoria da vida. É isto que dá vida à religião e faz com que os ensinamentos da Palavra sejam focalizados sobre as necessidades reais de nosso espírito, para reformar a nossa mente e regenerar o nosso coração. Quando isso acontece, a Igreja vive realmente em nós. Mas quando não há iluminação, a Igreja morre. E então a Palavra que ainda permanece em nós, se transforma em fonte de heresias. As falsas doutrinas baseadas na Palavra vão se acumulando e mantêm, com poder crescente, a mente dos homens na escravidão de uma fé cega que se prolonga pela tradição. Isso é permitido para evitar que a verdade, sendo conhecida, venha a ser profanada.
Deste estado de escravidão espiritual não há meio de escapar enquanto o Senhor não traz a libertação, dando-nos mesma nova Palavra, uma nova revelação da verdade interna que se tinha perdido. Por meio desta nova Palavra pode ser restabelecida a vida da Igreja. Não esqueçamos, porém, que esta nova Palavra também pode ser lida sem iluminação. A sua doação vem restabelecer a possibilidade do entendimento perceptivo da verdade espiritual. Entretanto, para que esse entendimento venha a se produzir, é indispensável o cumprimento das condições que ela nos impõe.
O modo porque é dada a iluminação está descrito representativamente na história do Êxodo concernente à libertação de Israel da escravidão do Egito. Recordemos que quando o Senhor apareceu a Moisés, na sarça ardente, e o encarregou de desempenhar essa missão, Moisés apresentou objeções, dizendo: “Ah, Senhor!, eu não sou homem que bem fala, nem de ontem nem de anteontem, nem ainda desde que tens falado ao teu servo; porque sou pesado de boca, e pesado de língua” (Êx. 4,10). Ao que o Senhor replicou:
“Não é Arão, o levita, teu irmão? Eu sei que ele falará muito bem; e eis que ele também sai ao teu encontro; e, vendo-te, se alegrará em seu coração. E tu lhe falarás, e porás as palavras na sua boca; e eu serei com a tua boca, e com a dele, ensinando-vos o que haveis de fazer. E ele falará por ti ao povo; e acontecerá que ele te será por boca, e tu lhe serás por Deus” (idem 4,14-16).
E aconteceu que quando Moisés se aproximava do Egito, Aarão “foi, encontrou-o no monte de Deus, e beijou-o. E relatou Moisés a Arão todas as palavras do Senhor, com que o enviara” (idem 4,27-28).
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A libertação de Israel da escravidão do Egito representa a libertação da mente humana das falsidades da tradição e dos males da Igreja devastada. Esta libertação é efetuada através de uma nova Palavra Divina. Devemos notar, porém, que a Palavra tem uma dupla ação. Opera, simultaneamente, por dentro e por fora, pelo interior e pelo exterior. Estas duas operações da Palavra são representadas por Moisés e por Aarão.
A Palavra, em sua essência, é a Divina Verdade procedendo de Deus. Mas essa verdade procede por dois modos distintos: imediata e mediatamente. A Verdade que procede imediatamente é incompreensível para qualquer mente finita. É a Lei Divina, a Sabedoria de Deus, segundo a qual o universo foi criado no princípio, é constantemente preservado em seu ser e em sua existência, e é ordenado e governado eternamente. É isto que está descrito nos versículos iniciais do Evangelho de João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava a princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito, se faz. N’Ele estava a vida e a vida era a luz dos homens”.
Esta Palavra é Deus Mesmo, Infinito, dentro, fora e acima da criação. Entretanto, se diz que “procede de Deus” porque está presente em toda parte, em toda a criação, vivificando, ordenando e dirigindo todas as coisas. Está junto a nós, produzindo todos os inúmeros milagres da vida. Contudo, este Verbo permanece invisível. Vemos os seus efeitos, porém, sua verdadeira natureza e qualidade conservam-se fora das nossas vistas como alguma coisa que ultrapassa as possibilidades de compreensão do entendimento humano. Só pela ação desta Lei Divina — como a vemos em seus efeitos —, ninguém pode alcançar uma visão verdadeira de Deus. Só com isso a Igreja não pode ser estabelecida. Só isso não é bastante para libertar o homem das prisões do mal e da falsidade. Isso, apenas, não dá ao homem o entendimento perceptivo da verdade espiritual. Por esta razão, Moisés, que representa esta Lei Divina, não pôde, sozinho, tornar-se o salvador de Israel. Ele era “pesado de boca e pesado de língua”, como se vê no versículo 10 do 4º capítulo do Êxodo.
Aarão, seu irmão, representa a Palavra escrita. É esta a Divina Verdade que procede mediatamente de Deus, através dos céus angélicos e das mentes dos profetas e reveladores inspirados, onde se reveste de roupagens finitas, sob a forma de palavras e de idéias da linguagem humana. E desse modo, ela se fixa, por fim, no conteúdo material de livros impressos. Estes livros são chamados a Palavra, não pelo que são em si, mas pelo que contêm. Em si mesmos, não são a verdade infinita de Deus. Sua linguagem é apenas a palavra dos homens; a sua origem repousa na experiência da raça. Isto está muito claro no Antigo e no Novo Testamento que, em sua maior parte, descrevem, em sua forma externa, coisas materiais: pessoas, lugares e acontecimentos históricos.
Até mesmo a linguagem dos Escritos, quando abertamente expõe as condições do mundo espiritual, ou explicam em termos racionais as leis espirituais do influxo e da Providência, até mesmo essa linguagem está também inseparavelmente associada às idéias do tempo e do espaço que são atributos do mundo material. De modo que as idéias derivadas dos Escritos podem ficar longe da verdade, se essas noções de tempo e de espaço não forem afastadas e se a mente não for elevada à luz do céu. E isto porque toda revelação escrita, encarada de fora, é inteiramente finita. Quando considerada assim, aparece só a cobertura, e esta, em si mesma, não passa de uma coisa morta, sem vida espiritual alguma. Não nos dá qualquer visão de Deus, mesmo quando fala a Seu respeito. Por isso, nesta história, Aarão, por si só não podia guiar os filhos de Israel para fora do Egito.
Contudo, a linguagem da Revelação — diferentemente de todas as outras linguagens — é Divinamente inspirada. E devido a essa inspiração, possui um poder único: o poder de trazer a Divina Verdade ao alcance da compreensão finita do homem. Por esta inspiração, ela tem o poder de falar ao homem as palavras do Senhor, de modo que, por meio dela, o Senhor pode instruí-lo, dar-lhe entendimento, iluminação e ilustração nas coisas espirituais e eternas. Este poder resulta do arranjo inspirado da linguagem, em virtude do qual ela se torna translúcida à luz do céu; e isso de forma que a linguagem humana ordinária jamais poderia alcançar.
O propósito da Revelação é ensinar a verdade espiritual. É esta a função da Palavra escrita. E por este motivo Aarão foi indicado para agir por Moisés como um porta-voz para o povo. Dele se diz: “E acontecerá que ele te será por boca”. Por isso os Escritos dizem que Aarão representa a doutrina tirada da Palavra. É, porém, a doutrina mesma da Palavra que é mencionada, pois que os Escritos nos ensinam que “pela doutrina é significada a Palavra tal como é no sentido literal, assim como está no mundo”.
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Devemos ter bem presente que embora a Palavra escrita tenha potencialmente o poder de ensinar a Divina Verdade e nos dê o entendimento perceptivo dela, entretanto ela só faz isso quando a mente é ao mesmo tempo afetada interiormente pela ação do que se chama a “Lei Divina”. A iluminação só vem quando Aarão se encontra com Moisés na montanha de Deus. A Lei Divina deve encontrar-se e conjuntar-se com a Palavra escrita. Este encontro tem lugar na mente humana e então, pela primeira vez, a própria verdade do céu resplandece nas páginas sagradas. Nesse momento, “Relatou Moisés a Arão todas as palavras do Senhor, com que o enviara”. Se quisermos aprender os segredos da iluminação, precisamos conhecer o que se passa nesse encontro “na montanha de Deus”.
A Lei Divina — a ação imediata de Deus no universo — não pode ser aprendida pelo entendimento do homem, mas afeta e impressiona sua vontade. E isso é feito pela descida da Lei Divina através dos céus, onde se acomoda à recepção humana. Atua por meio dos espíritos e dos anjos que estão presentes no homem. A sua ação incita o amor à verdade, o desejo de compreender, tocando o nosso coração com os prazeres celestes dos anjos quando eles percebem a verdade da Palavra. Insinua essa aflição tão sutilmente que o homem supõe que ela é propriamente sua, quando, entretanto, apenas lhe é emprestada pelos seus consociados espirituais. Esta afeição é, pois, secretamente inspirada pela Lei Divina, atuando no microcosmo da mente humana, do mesmo modo que opera no macrocosmo do universo, preparando todas as coisas para que seja alcançado o fim Divino que é a salvação do homem. Esta operação interior da Palavra é que dá a iluminação. E é isto que se chama o Espírito Santo, o “Espírito de Verdade que conduz a toda verdade”.
A iluminação, entretanto, só pode ser dada até onde não haja perigo de profanação; só até o ponto em que o homem está disposto a obedecer à verdade; só até o ponto em que ele pode ser levado, livremente, a resistir ao mal. Isso só se alcança gradual e lentamente. A iluminação não nos traz conhecimentos pelo caminho interior da mente. Apenas nos dá luz para vermos a verdade, para compreendermos espiritualmente os conhecimentos da Palavra já presentes em nós pela leitura e pela experiência. Se estes forem poucos, a compreensão concedida pela iluminação é, correspondentemente, vaga e geral.
Só quando os nossos conhecimentos são multiplicados pelo trabalho e pelo estudo, é que temos a possibilidade de ver aumentada a nossa iluminação. Se a mente está cheia de falsas idéias, recebidas pela instrução e aceitas como verdadeiras, a iluminação só pode vir como um vislumbre momentâneo de introspecção que é completamente obliterado pelas dúvidas e questões que se levantam como nuvens para obscurecê-la só gradativamente e por um esforço consciente, podem estas nuvens ser afastadas. A luta para removê-las é o conflito da tentação.
Antes da regeneração, a iluminação só pode ser dada ocasionalmente, porque toda tendência de nossas afeições é separar Moisés de Aarão, é afastá-los um do outro, para que a Palavra escrita seja vista somente em sua forma externa. Gravitamos continuamente em torno desse estado que tem sua origem no amor de si e na conseqüente má vontade contra a instrução e direção do Senhor; má vontade em reconhecer a verdade porque se opõe aos amores e ambições naturais. Este estado de má vontade fecha, misericordiosamente, a porta e barra o caminha à iluminação. Se assim não fosse, profanaríamos a verdade, estudando-a só com o intuito de alcançar fins egoísticos. É só quando esta má vontade é temporariamente dissipada por afeições insinuadas do céu, que a iluminação pode ser dada. Quando entramos espiritualmente na casa do Senhor, quando nos aproximamos da Palavra com humildade desejando sinceramente a instrução do Senhor, então Aarão vai ao encontro de Moisés na montanha de Deus. E aí “Moisés anuncia a Aarão todas as palavras do Senhor que o enviou”.
Este encontro tem de ser repetido muitas vezes. A verdade espiritual então percebida deve ser conservada e cultivada no coração depois do estado de iluminação ter passado. O amor daquela verdade deve levar o homem a lutar contra as falsidades e os males que lhe são opostos. Deve levá-lo a ler e estudar a Palavra, enchendo sua mente com seus conhecimentos, sem os quais a iluminação ulterior não poderá ser dada. E depois da luta deve fazê-lo voltar atrás muitas vezes à montanha onde, unicamente, Moisés e Aarão podem se encontrar. É este o único meio de progredir espiritualmente.
A iluminação é, pois, um miraculoso dom de Deus. Só Ele tem poder para concedê-la. Ele nos deu a Palavra escrita. Ele criou a mente humana com a faculdade de ler e entender naturalmente a Palavra. Pôs essa mente em consociação com os anjos para que fosse influenciada por seus prazeres celestes. Inspira estas afeições pela secreta atuação de Sua Providência, e por meio delas leva Aarão ao encontro de Moisés na montanha de Deus.
Se o homem quiser fazer ao menos a sua parte e, ao mesmo tempo, reconhecer o trabalho Divino que o Senhor está executando, recebendo com alegre agradecimento os dons espirituais de Sua Misericórdia, e resistir com firmeza aos males e falsidades que os destruiriam, então o Senhor seguramente lhe dará a iluminação suficiente em cada dia e, progressivamente, estabelecerá nele uma Igreja viva.
Amém.

•   1ª Lição:     Êxodo 1-12
•   2ª Lição:     Êxodo 4, 10-16 e 27-31
•   3ª Lição:     A. C. 7058