IDOLATRIA E GENTILISMO


Sermão pelo Rev. W. Cairns Henderson


“Ainda tenho outras ovelhas que não são deste curral; também me convém trazer estas, e elas ouvirão a minha voz, e haverá um rebanho e um pastor”.

(João 10, 16)

A existência do mal humano, a prosperidade dos maus e a ocorrência das guerras são fatos de que se aproveita o homem meramente natural para se confirmar na negação da Divina Providência, negação que ele sempre conserva em seu coração. E acha depois motivos para fortalecer sua descrença, quando reflete sobre a multiplicidade de religiões antagônicas existentes no mundo; verificando que há povos que nada sabem de Deus; vendo outros que adoram, mesmo, o sol e a lua, e muitos outros que praticam a idolatria; existindo ainda milhões de criaturas que estão arroladas sob a bandeira do Islã.
Se há uma Divina Providência, tendo por fim a formação de um céu constituído pela raça humana, ele (o homem natural) pergunta a si mesmo: como podem existir tantas religiões discordantes? Por que não há uma única religião verdadeira em toda a terra, pela qual os homens pudessem ser guiados para o céu? E como não pode responder a essas perguntas, conclui, novamente, que não há Providência.
Implícita nessas questões está a crença de que os que não são da Igreja, não podem ser salvos, porque não têm a Palavra por meio da qual o Senhor é conhecido e, portanto, não conhecem o caminho do céu. É este um ponto de vista que nos leva a fazer a monstruosa injustiça de presumir tacitamente que Deus predestinou ao inferno os membros da raça humana que, sem culpa de sua parte, nasceram fora da Igreja. Isso, porém, nada tem de verdade. Embora não se possa fazer coisa alguma pelos que se confirmam contra a Divina Providência, há entretanto muitos que desejam instruir-se sobre este assunto antes de se confirmarem a seu favor. Por causa destes, as verdades que resolvem essas dificuldades foram reveladas na Doutrina Celeste.
Há no mundo uma religião verdadeira pela qual, somente, os homens podem ser salvos; uma verdade de Deus, que é o único caminho para o céu. Essa verdade é a verdade da Palavra, na qual o Senhor está revelado e pela qual, somente, Ele pode ser visto e reconhecido como o único Deus do céu e da terra; sendo a salvação possível apenas para os que vivem de acordo com ela.
A Igreja onde está a Palavra e onde, através dela, o Senhor é conhecido, é o único instrumento nas mãos de Deus para a salvação de toda a raça humana. Contudo, ainda que a salvação da raça dependa da existência dessa Igreja, que é chamada de “Igreja Específica”, ser membro dela durante a vida terrena não é indispensável para a salvação. A misericórdia do Senhor é universal e, pelo fato de existir a Igreja Específica, os homens podem ser salvos por qualquer religião existente sobre a terra, sem distinção de raça, cor, nacionalidade, classe ou credo.
Todos os homens, qualquer que seja a sua religião, podem ser salvos, desde que reconheçam um Deus e vivam de acordo com o que acreditam ser a sua vontade. Essas exigências podem ser satisfeitas por todos, porque o Senhor implantou na mente de cada homem um ditame interno de que há Deus e de que esse Deus é único. Além disso, Ele inseriu, em todas as religiões, um substrato de verdades que ensinam a crença de que há um Deus cuja vontade é a lei da vida, e contém preceitos análogos aos Dez Mandamentos tornando, assim, possível para todos os homens, reconhecer o Divino e viver na caridade mútua. É verdade que eles não podem ser regenerados neste mundo, se não têm a Palavra; mas, se satisfizerem essas duas condições, poderão ser dotados com uma espécie de caridade e receber um certo grau de purificação. O Senhor pode conferir-lhes uma certa inocência interior e pode protegê-los contra o amor interno do mal e a confirmação interna das falsidades de sua religião.
Eles gostam de ser instruídos e quando chegam ao outro mundo recebem com prazer a instrução sobre as verdades da Palavra e são, por essa forma, introduzidos no céu. Assim não há injustiça no fato de muitos homens nascerem fora da Igreja, nem isso é obstáculo à sua salvação. Realmente, não podia ser de outro modo, uma vez que muitos homens estão e permanecem fora do pálio da Igreja Específica.
É uma lei da Divina Providência que o homem seja guiado e ensinado pelo Senhor por intermédio do céu, mas ninguém é instruído por imediata revelação do céu. O Senhor ensina e guia através do céu, por intermédio da Palavra e da Doutrina, e pela pregação que delas se faz. Sua direção e Seu ensino pela Palavra são imediatos, embora pareça que o homem é guiado e ensinado pelo clero ou por seu próprio estudo da Palavra. Mas a divulgação da Palavra escrita, por meio da qual o Senhor ensina e guia imediatamente, é efetuada, unicamente, por meio da instrumentalidade humana, através das atividades de sociedades organizadas para pregar o Evangelho e evangelizar o mundo não cristão, não sendo assim possível a difusão do Evangelho por todos os habitantes da terra.
Alguma espécie de religião, porém, podia ser transmitida aos gentios por várias formas, e como estava previsto pelo Senhor, em Sua Providência, que o Evangelho não alcançaria a todos eles, isso foi preparado desde tempos remotos e devidamente executado. Nenhum homem adquire qualquer religião por si mesmo, mas através de outros que a conhecem, quer pela Palavra, que é a única fonte de todo conhecimento, quer pela tradição de outros homens que a tenham aprendido, pela Palavra, que há um Deus, que há um céu e um inferno e uma vida depois da morte, e que Deus deve ser adorado e Sua vontade obedecida a fim de que o homem se torne verdadeiramente feliz. Em Sua Divina Providência, portanto, o Senhor proveu para que essa religião se espalhasse por toda a terra; primeiro pela Palavra Antiga, que se difundiu por muitas partes da Ásia, e depois pela Palavra judaica. E assim foi dada uma religião aos gentios.
Depois que uma religião é, desse modo, estabelecida numa nação, as pessoas que a abraçam são conduzidas pelo Senhor de acordo com os seus preceitos e regras e, como já vimos, o Senhor provê para que, em toda religião haja preceitos semelhantes aos do Decálogo como, por exemplo, que Deus deve ser adorado, que seu nome não deve ser profanado, que devem ser observadas as festas sagradas, que os pais devem ser honrados, que não se deve matar, nem cometer adultério, nem roubar e nem dar falso testemunho.
As pessoas desses povos, que guardam estes preceitos como Divinos e vivem de acordo com eles por princípio de religião, estão salvas porque pensam em favor do Divino, qualquer que seja a sua forma de concebê-lo, e vivem na caridade mútua. E é um fato que a maior parte dos povos fora do mundo cristão considera estas leis mais como verdadeiramente Divinas do que como meramente civis, e as têm como sagradas. É verdade que eles não podem ser salvos neste mundo, como o podem os membros da Igreja Específica, e que não podem ir para o mesmo lugar do céu que os membros desta Igreja, mas podem ser conservados em estado de querer ser salvos na vida futura, o que lhes dá a possibilidade de gozar a alegria celeste.
A Doutrina nos faz compreender a relação que há entre a Igreja Universal — a Igreja dos gentios — e a Igreja Específica. Ela nos ensina que aos olhos do Senhor, o céu angélico inteiro é como um homem — o Macro Homo — de que o Senhor é a alma e a Vida. Este homem é homem quanto a todas as particularidades de sua forma; quanto a seus membros e órgãos internos e externos; quanto à pelo, às membranas, às cartilagens e aos ossos. Estas partes, entretanto, não são materiais, mas espirituais, isto é, são constituídas por anjos constituídos em sociedades tendo um amor dominante comum; desempenhando cada uma delas, para o Macro Homo, um uso espiritual paralelo ao uso material desempenhado no corpo pelo membro, órgão ou víscera correspondente. Assim como a vida de todos os órgãos do corpo lhes vem por meio do coração e dos pulmões, a vida espiritual de toda a raça humana provém do Senhor por meio da Igreja Específica que constitui o coração e os pulmões do Macro Homo.
E para que possam viver na alegria do céu do mesmo modo que os outros, o Senhor provê para aqueles que o Evangelho não pôde alcançar, contudo têm alguma religião, um lugar no Macro Homo, isto é, no céu; onde constituem as partes a que correspondem a pele, as cartilagens e os ossos do corpo.
Pelo fato do homem não tomar parte na determinação da raça, da nacionalidade ou da religião em que nasce e, também, pelo fato de não ser responsável por nascer dentro ou fora da Igreja, pode parecer à primeira vista que há nisso alguma coisa mal feita. Realmente, pois parece que quanto mais elevado for o uso de alguém no céu, maior será a felicidade que encontra no seu desempenho e que, sendo os gentios destinados a usos externos, no Macro Homo ficam, assim, sem qualquer culpa de sua parte, restringidos a uma menor felicidade do que a que poderiam alcançar se essas condições não lhes fossem impostas. Mas isso é uma simples aparência.
É verdade que os gentios desempenham, no céu, usos relativamente externos e que a sua felicidade é, por isso, menor do que a dos anjos mais elevados. De fato, porém, toda pessoa que é recebida no céu entra no gozo da suprema felicidade de seu coração. Ninguém teria possibilidade de gozar maior felicidade, pois seria sufocado por ela. Assim para o anjo, não faz diferença alguma se está na felicidade que é sentida no mais alto céu, ou na que enche os céus inferiores; pois está em seu lugar próprio, e possui a maior felicidade que é capaz de gozar. O último — como o primeiro, no céu — goza a felicidade celeste; cada um em seu próprio grau. Os que viveram fora da Igreja Específica, desde que evitem os males como pecados contra Deus e por serem contrários aos preceitos de sua religião, recebem no céu a plenitude daquilo que se tornou a alegria íntima de seus corações.
Isto é verdade mesmo para os que estão nos limites extremos do gentilismo; os que adoram o sol e a lua, e pensam que Deus está neles. Não sabem outra coisa e, portanto, isto não lhes é imputado como pecado. Pois o Senhor disse “Se fosseis cegos, isto é, se não soubésseis, não teríeis pecado” (João 9,41). Há outros que adoram ídolos e imagens — prática que existe mesmo no mundo cristão —, os quais são realmente idólatras, embora não de todo, pois há alguns para os quais as imagens servem como meio de estimular o pensamento a respeito de Deus. Em virtude do influxo do céu, todos os que reconhecem Deus, desejam vê-lo. Entre estes, os que não podem elevar a mente acima das coisas sensuais precisam de uma estátua ou de uma gravura para concretizar a sua idéia de Deus.
Se não adoram a própria imagem como Deus e vivem de acordo com os preceitos do Decálogo — ou os preceitos análogos de sua religião —, esse também são salvos. Mesmo esses gentios, não são, portanto, postos fora de toda salvação por causa da natureza de sua religião.
Vemos, então, que o Senhor, querendo a salvação de todos, providenciou para que cada um tenha seu lugar no céu, se viver bem. Estabeleceu, e mantém aberto, um caminho de aproximação e de entrada para o céu, para todo homem que nasce no mundo. Nenhuma circunstância de nascimento, educação ou meio, e nenhuma modalidade de fé ou de ignorância fecha jamais esse caminho. A oportunidade para trilhá-lo é dada a todos, e só o homem pode fechá-lo, rejeitando livremente sua oportunidade e seguindo, em vez dele, os desvios de seu próprio coração. Qual a razão pela qual tantos homens nascem e permanecem gentios, só o Senhor o sabe.
Em alguns casos é porque a cristandade não é apropriada ao seu gênio; em outros, talvez seja porque não poderiam resistir aos males e falsidades interiores que consomem a Igreja Cristã; e ainda em outros, pode ser porque podem ser salvos sem necessidade, neste mundo, da assistência mais poderosa, da imediata presença do Senhor na Palavra, que é indispensável aos homens da Igreja Específica. De um modo geral, podemos acreditar que é a fim de que sejam preenchidos os usos que eles podem desempenhar no Macro Homo. Seja, porém, qual for a razão, a Doutrina ensina com clareza que eles, do mesmo modo que os membros da Igreja Específica, podem alcançar a plenitude de sua felicidade no reino celeste do Senhor.
Certamente o mais notável exemplo de uma religião provida pelo Senhor para atender às necessidades daqueles a cujo gênio o cristianismo não era adaptado é o maometismo. Para muitos, a larga influência desta religião e o fato do Islã fazer, na Zona Tórrida, mais prosélitos do que o cristianismo é um sério obstáculo à aceitação do conceito de uma Divina Providência, sendo que alguns se confirmam na sua negação por causa disso. Mas esse fato não apresenta dificuldade alguma para os que acreditam que todas as coisas são determinadas pela Divina Providência, e que procuram saber como ela age.
Estes, ao contrário, vêem no aparecimento desta religião um maravilhoso exemplo do trabalho da Providência. Antes do nascimento do maometismo, a Ásia, o norte da África, e certas partes da Europa estavam entregues à idolatria da pior espécie e que, se tivesse continuado por mais algum tempo, teria resultado na morte espiritual para os habitantes dessas terras. A fim de que todas essas idolatrias pudessem ser extirpadas, foi permitido pela Providência que se levantasse, acomodada ao gênio das nações da zona tórrida, uma nova religião em que houvesse alguma coisa tirada de ambos os Testamentos da Palavra, e que se ensinasse que o Senhor veio ao mundo, que Ele era o maior dos profetas, o mais sábio dos homens e o Filho de Deus que veio à terra para ensinar os homens.
Isto foi feito por intermédio de Maomé, que deu o nome a essa religião. Ela surgiu pela Divina Providência do Senhor, acomodada ao gênio do Oriente a fim de que pudessem ser vencidas as idolatrias aí predominantes, e transmitidas aos povos das terras orientais alguns conhecimentos sobre o Senhor, antes deles entrarem no mundo espiritual. Essa religião não teria sido recebida, e não teria todo aquele poder, se não tivesse sido adaptada às idéias e modos de vida predominantes entre esses povos, permitindo, por exemplo, a poligamia. É verdade que o Islã não reconhece o Senhor como o Deus do céu e da terra e que é apenas uma acomodação ao fato das nações que o abraçam confessarem um Deus supremo, Criador do universo, mas não podem compreender que Ele desceu à terra e assumiu o Humano.
Assim, o maometismo também teve a sua origem na Divina Providência do Senhor; e todo maometano que reconhece o Senhor como Filho de Deus e vive de acordo com os princípios do Decálogo, que se encontram no Alcorão, evitando os males como pecado, é recebido no céu depois da morte. O céu maometano é, realmente, distinto do céu cristão, e é também dividido em três céus: o céu supremo, para aqueles que alcançam o reconhecimento de que o Senhor é igual ao Pai e, portanto, o único Deus do céu e da terra; o céu médio, para aqueles que não vão longe, mas podem renunciar à poligamia; e o último céu, para os que apenas podem ser iniciados. E aqui também se aplica a lei de que todo aquele que atinge um desses céus goza a suprema alegria de seu coração.
Gentilismo, idolatria e maometismo não são, portanto, tropeço algum no caminho da fé na Divina Providência do Senhor para aqueles que acreditam que ela está em todas as coisas e que se esforçam por descobrir a sua presença. A misericórdia do Senhor é universal, por isso são salvos os homens de toda e qualquer religião que existe na face da terra. Quando o Senhor veio ao mundo foi para redimir o espiritual, portanto, toda a raça humana em seu conjunto, e mais ainda, toda a raça humana daquela época e das épocas futuras. Em todas as idades Ele estende a salvação a todos, redimindo todos os homens, quer sejam ou não da Igreja Específica.
O trabalho Divino de salvação é realmente efetuado por meio da Igreja Específica que é o único instrumento apropriado para isso; mas a salvação se estende a todos os homens e mulheres que estão fora da Igreja porque a todos é dada a possibilidade de pensar em favor do Divino, qualquer que seja o seu modo de concebê-lo. Esses homens e mulheres constituem a Igreja Universal. E o Senhor os traz também para Seu Reino celeste, no Macro Homo do céu, em que eles se unem à Igreja Específica sob Sua Divina direção.
Isto era o que Ele significava quando dizia: “Ainda tenho outras ovelhas que não são deste curral; e também me convém trazer estas, e elas ouvirão a minha voz, e haverá um rebanho e um Pastor”.
Amém.

•   1ª Lição:     Isaías 61
•   2ª Lição:     João 10, 1-18
•   3ª Lição:     A. C. 3263, 2-3