GUARDANDO O SÁBADO


Sermão pelo Bispo George de Charms


“O Filho do Homem até do sábado é Senhor”.

(Mateus 12,8)

Entre os judeus, ao tempo do Senhor, o sábado tinha se tornado um dia carregado de proibições. O terceiro mandamento proibiu fazer qualquer obra nesse dia. Isso exigia uma interpretação para se determinar o que devia ser considerado como “obra”. A Lei de Moisés era explícita somente quanto a uma coisa: ninguém devia acender fogo em sua casa no sábado (Êxodo 35,3). Os sacerdotes, especialmente depois do cativeiro, tinham estabelecido pouco a pouco, um minucioso e complicado código de observância do sábado.
A tradição tinha atribuído a esse código autoridade Divina, e os fariseus, em particular, insistiam sobre o seu estrito cumprimento. O Senhor muitas vezes foi acusado por eles de violar a Lei Mosaica, por ter infringido algumas de suas disposições.
Assim, aconteceu certo sábado, quando os discípulos do Senhor, passando em Sua companhia por um campo de trigo, colheram e comeram algumas espigas porque estavam com fome. “E os fariseus, vendo isso, disseram-lhe: Eis que os teus discípulos fazem o que não é lícito fazer num sábado”. O Senhor, porém, os defendeu relembrando o caso de Davi que, quando fugia de Saul, sentindo fome entrou na casa da Deus e comeu os pães da proposição, violando a Lei, porque não havia outro alimento e ele se achava em situação desesperadora com seus companheiros. O Senhor citou ainda o fato dos sacerdotes que ficam sem culpa, oferecendo sacrifícios ao Senhor no sábado, violando a Lei que proíbe acender fogo nesse dia. E acrescentou, referindo-se à conhecida profecia de Oséias: “Se soubésseis o que significa ‘Misericórdia quero, e não sacrifício’, não condenaríeis os inocentes. Porque o Filho do Homem até do sábado é Senhor” (Mateus 12, 2-8).
O Senhor estava claramente defendendo o que é essencial, em vez da simples observância formal da Lei. Estava apelando para uma Lei mais alta do que o código dos sacerdotes — para a Lei da Palavra que é a Lei da Misericórdia. Estava mostrando que todos os costumes externos estabelecidos pelos homens para distinguir o sábado dos outros dias, eram feitos com a intenção de servir a esta Lei Divina e não de violá-la. Portanto, onde quer que houvesse conflito entre aquela Lei e os costumes estabelecidos, estes deviam ceder, para que a Lei da Misericórdia prevalecesse. Na Igreja Cristã tem havido também a mesma tendência para multiplicar as formas de observação do sábado, e para sustentar que qualquer desrespeito a essas formas é uma profanação. Estas proibições mais modernas, em parte, provêm de uma errada interpretação do que é significado pela palavra “obra”, e em parte se originam da idéia de que certas atividades são estranhas ao espírito da religião e devem ser proibidas do sábado.
Todos podem ver, entretanto, que estas disposições artificiosas não são em si mesmas essenciais. Podem ser ignoradas sem que isso nos impeça de guardar o sábado com profundo respeito, e de considerá-lo como santo em nosso coração. Ao contrário, podem ser rigorosamente obedecidas por quem não ama a religião, empregando-a apenas para alcançar os seus objetivos pessoais e mundanos. Instintivamente, os homens compreendem que o verdadeiro espírito do sábado não consiste numa cega obediência a uma multidão de fórmulas sem significação. Para libertar seu espírito dessas incômodas limitações tem eles lutado, deliberadamente, com crescente sucesso, conseguindo, pouco a pouco, desembaraçar-se de todas as regras que o falso puritanismo e a tradição vêm impondo sobre a observância do sábado.
Mas como não havia uma clara compreensão do que é o sábado, como não se tinha uma idéia espiritual do que é significado pelo terceiro mandamento — “Lembra-te do dia do sábado para o santificar” —, a rejeição das fórmulas tradicionais ultrapassou os justos limites, acarretando um completo desrespeito do próprio sábado. Conserva-se ainda com prazer o hábito de guardá-lo, mas apenas como um dia de repouso das atividades e negócios mundanos. É empregado, cada vez mais, em meros divertimentos, na satisfação das próprias paixões ou em prazeres puramente sociais. Estes interesses mundanos adquiriram tal primazia que a freqüência ao culto público está diminuindo em muitas igrejas progressivamente. As Igrejas vendo que há muito pouco, ou mesmo que não há interesse algum pelas coisas espirituais, procuram atrair seus adeptos por meio de apelos aos seus desejos e ambições naturais, abandonando quase completamente a instrução nos assuntos da doutrina. Seguramente, não é isto que o Senhor quis significar quando desculpou seus discípulos por terem colhido trigo no sábado, dizendo: “O Filho do Homem até do sábado é Senhor”.
É da mais alta importância para a nossa vida espiritual saber o que é significado pelo sábado, o que é lembrar-se dele, e o que é santificá-lo. Pois sem uma verdadeira observância do sábado, não há salvação. No sentido mais elevado, o Sábado representa o Senhor e, especialmente, a união do Divino e do Humano n’Ele, o Príncipe da Paz, o casamento do bem e da verdade na mente humana. O Sábado foi estabelecido por intermédio de Moisés como um sinal perpétuo e como uma profecia da prometida vinda do Senhor ao mundo. A Lei da sua observância foi dada com a intenção de se conservar a lembrança perpétua do Senhor e de Sua redenção. Os seus dias de trabalho prefiguravam as tentações do Senhor até a paixão da cruz; e o sétimo dia — o dia de repouso — predizia a Sua vitória final sobre os infernos e a ultimação da glorificação de Seu Humano. Com isto Ele adquiriu o poder de manter os infernos em eterna sujeição à Sua Divina Vontade, para que os homens pudessem ser libertados de sua influência então preponderante. É esta a razão porque, quando a profecia foi cumprida, tudo o que tinha sido representado pelo sétimo dia da semana, foi transferido para o primeiro dia — o dia da ressurreição, chamado daí por diante o “Dia do Senhor” (Dominus Dei), o Domingo.
Para o homem, a verdadeira essência do Sábado é o reconhecimento desta verdade; reconhecimento não de boca, mas de coração e com fé. É o reconhecimento de que se o Senhor não tivesse subjugado os infernos e glorificado Seu Humano, nenhum homem podia ser salvo e que, se o Senhor não efetuar em nós uma redenção individual correspondente, não poderemos ser regenerados ou preparados para o céu. É uma profunda convicção de que necessitamos perpetuamente da presença do Senhor, de que necessitamos da proteção de Sua Providência e da direção de Sua Palavra; e de que, sem isso, nada podemos fazer de bem e nem pensar coisa alguma de verdadeiro. Só onde esta convicção existe como uma fé viva, é que o homem se mantém sob a direção do Senhor, e que o verdadeiro sábado é dirigido pelo Senhor e não pelo eu. É isto que significam as palavras do profeta Isaías:
“Se desviares o teu pé do sábado, de fazeres a tua vontade no meu dia santo, e chamares ao sábado deleitoso, e o santo dia do Senhor, digno de honra, e o honrares não seguindo os teus caminhos, nem pretendendo fazer a tua própria vontade, nem falares as tuas próprias palavras, então te deleitarás no Senhor, e te farei cavalgar nas alturas da terra, e te sustentarei com a herança do teu pai Jacó; porque a boca do Senhor o falou.” (Isaías 58, 13-14)
Com relação a isto, encontramos na Doutrina Celeste: “Aqui, vê-se claramente o que é representado por não fazer obra alguma no dia de sábado; quer dizer, nada fazer pelo próprio, mas agir pelo Senhor” (A. C. 8495). Não é que devamos agir pelo próprio durante a semana e pelo Senhor no sábado; mas que devemos conservar esta verdade em perpétua lembrança, a saber, que agir por si mesmo ou pelo próprio é o mal, e que o bem só é possível para os que agem pelo Senhor. O homem que tem esta fé está sendo guiado pelo Senhor em todos os negócios de sua vida, mesmo quando está pensando em outras coisas, quando está empenhado em suas ocupações diárias, usando o julgamento humano e agindo, aparentemente, por sua própria prudência. Se em sua mente interna há o reconhecimento do Senhor, ele estará sob a secreta mas incessante direção da mão de Deus.
E esse é o único caminho por onde o homem pode “entrar na vida”. Pois aquele que se guia a si mesmo, aquele que age segundo a sua própria inteligência, não reconhecendo a sua dependência do Senhor e nem a necessidade da instrução Divina, nega de coração o Senhor e rejeita a Sua Palavra. Afasta-se do único caminho da regeneração. Semelhante aos maus habitantes de Sodoma é atacado de cegueira e vagueia em vão à procura da porta — o caminho que conduz ao céu. Quando alimentamos maus amores e por estes somos levados a falsas idéias, não há escapatória a não ser por meio da instrução nas verdades da Palavra. Esta instrução só pode ser recebida no dia do sábado, isto é, quando estamos em estado de reconhecimento do Senhor e queremos ser instruídos por Ele. É este o estado do sábado. Esta é a razão porque, na Lei de Moisés, foi decretado que a punição para a profanação do sábado seria o apedrejamento, que significa a privação da vida espiritual pelas destrutivas falsidades do mal.
Em sua essência, portanto, o Sábado não é um dia, mas um estado da mente. Cultivar sempre esse estado é o que prescreve o mandamento “Lembra-te do dia do Sábado para o santificar”. Lembra-te de que este é o único estado em que podes ser salvo! Apega-te a este estado; guarda-o; luta por ele em cada dia da tua vida! E se for perdido, volta a ele, porque ele vale mais que tudo! É esta a verdadeira — a espiritual — observância do sábado. Não nascemos, entretanto, nesse estado. Por herança natural somos inclinados ao amor do eu e à fé em nós mesmos. Embora saibamos pela Doutrina que somos completamente dependentes do Senhor, não prestamos grande atenção a essa verdade. Afrontados, como somos, por enfrentar uma complexa rede de necessidades mundanas, obrigados a desempenhar grande variedade de funções que exigem o emprego de todo o nosso tempo e energia, ficamos com a impressão de que estamos entregues a nós mesmos. O sucesso ou o fracasso parecem depender unicamente de nossos conhecimentos ou de nossa compreensão das coisas mundanas — de nosso julgamento, de nossa prudência, de nossa perseverança. As exigências da vida externa fazem pressão sobre nós e tomam conta de nossa mente, enquanto que as esperanças e aspirações da vida espiritual parecem muito distantes, muito menos imediatas e muito menos urgentes; mesmo quando intelectualmente reconhecemos a sua importância e admitimos a necessidade de estudar as verdades da Palavra e procurar pelos encargos imperativos da vida externa. Estamos acostumados a nos queixar de que não temos tempo nem oportunidade para adquirir os conhecimentos das coisas espirituais — não temos tempo para ler, para estudar, para refletir.
É para satisfazer essa necessidade primordial que o Senhor ordenou que um dia, em cada sete, fosse reservado e dedicado àquele fim. Nesse dia somos desligados das obrigações de nossas funções cotidianas, principalmente, para que tenhamos tempo de nos aconselhar com o Senhor sobre os assuntos mais profundos e mais vitais de nossa existência. Se quisermos empregar esse dia no uso para o qual foi especialmente destinado, realizando o seu intuito primordial, não devemos permitir que coisa alguma, salvo o que escapa ao nosso controle, interfira em nosso proveito. E então não encontraremos mais motivos para nos queixar de falta de tempo para cuidar dos assuntos espirituais. Se a nossa fé for viva, se reconhecermos a nossa suprema necessidade da Divina Instrução, e se mantivermos, assim, dentro de nós, o estado de Sabedoria durante toda a semana, então aguardaremos sempre com sofreguidão as oportunidades para receber essa instrução. Premeditaremos usá-las da melhor forma possível, entrando na casa do Senhor alegremente, preparados para receber o Divino auxílio. Reservaremos uma parte do dia para leitura e reflexão sobre assuntos espirituais, além de palestras e discussões sobre os mesmos. Nisto consiste, verdadeiramente, “lembrar-se do dia deSábado para o santificar”. Quem conserva diariamente essa lembrança, não tem que se preocupar com qualquer consideração pelas formalidades artificiais. Não tem necessidade de se prender a nenhuma proibição feita pelos homens. Não tem que temer executar no dia do Sábado qualquer coisa que seja exigida pela Lei Divina da Misericórdia e do amor mútuo. Pois “o Filho do Homem até do Sábado é Senhor”.
Em geral, não estamos no estado de Sábado. Nem podemos ser introduzidos nele sem o auxílio de meios externos. É este o uso e o valor da observância formal do Sábado: adiantar-se, preparar o caminho, despertar o interesse e permitir a compreensão do que é, verdadeiramente, o Sábado. Por esta razão é necessário que, desde criança, sejamos exercitados no cumprimento das regras externas de guardar esse dia, o que nos ajudará a sentir e apreciar as coisas do céu. Devemos ser conduzidos à esfera de santidade que se encontra no culto dominical, para que as portas do influxo celeste se abram para nós. E à medida que vamos avançando em idade, devemos aprender por esforço próprio, a estabelecer o hábito de comparecer ao Templo, de ler e refletir sobre os assuntos espirituais, dando assim demonstrações externas de nosso sincero desejo de reconhecer a inteira dependência em que estamos do Senhor.
De nenhum outro modo poderemos ser iniciados nesse desejo. De nenhum outro modo pode ele ser preservado, fortalecido e confirmado em nós. O valor atribuído às formas específicas de observância do Sábado deve ser medido pelo grau em que elas servem a este uso. Assim elas adquirem grande importância e devem ser tratadas com respeito, com reverencia, e observadas com consciência. Não é desta espécie de cumprimento das formalidades externas que devemos procurar nos libertar, porque, como servas do Senhor, elas são indispensáveis. É só quando elas passam a ser consideradas como um fim em si mesmas, quando a sua observância externa é erradamente tomada pela guarda espiritual do Sábado, quando a sua adoção é imposta como verdadeira exigência do espírito do Sábado, é somente então que a elas se aplica o que está no íntimo das palavras do Senhor aos fariseus: “Se soubésseis o que significa ‘Misericórdia quero e não sacrifício’, não condenaríeis os inocentes. Porque o Filho do Homem até do Sábado é Senhor”.
Toda religião está incluída na verdadeira observância do Sábado. Sem isso a Igreja não pode ser estabelecida. A vida espiritual e os frutos da Redenção do Senhor só podem ser dados na medida em que os homens obedecem o mandamento divino: “Lembra-te do dia do Sábado para o santificar”. Amém.

•   1ª Lição:     Isaías 58
•   2ª Lição:     Mateus 12, 1-15
•   3ª Lição:     A. C. 8495, 1-3