GLÓRIA A DEUS NAS ALTURAS


Sermão pelo Bispo George de Charms


“Glória a Deus nas alturas, e paz sobre a terra, e boa vontade para os homens”.

(Lucas 2,14)

Acreditamos que o Senhor fez vários adventos no mundo no decorrer da história dos homens sobre a terra. De fato, se diz que Ele veio toda vez que uma Igreja foi devastada e outra tomou o seu lugar. Propriamente falando, porém, o Senhor veio apenas uma vez. O ato de assumir o humano e de glorificá-lo só podia ser realizado uma vez. Todos os adventos do Senhor antes da encarnação, eram apenas profecias daquele grande acontecimento, e o que chamamos de Segundo Advento é apenas a sua efetivação. A assunção de um humano material e a união desse humano com o Divino é o ato supremo do Infinito em relação ao finito. A descida de Deus à terra como homem é o fato central de todos os tempos — é um ponto fixo no caleidoscópio da história.
Mas embora a vinda do Senhor ao mundo para assumir e glorificar o humano e, conseqüentemente, estabelecer um plano de imediata presença do Divino no natural, tenha sido inteiramente executado (no que se refere à ação do Infinito) dentro dos trinta e três anos da vida externa corporal do Senhor Jesus Cristo, contudo a execução daquilo para que o  Humano foi assumido — o estabelecimento de um Reino que não passará mais — é um trabalho para muitos e muitos séculos ainda. A história de todas as idades, interiormente considerada, é apenas a história dos meios maravilhosos pelos quais Deus, em sua Providência, dirige as ações dos homens para a realização final daquele maior de todos os fins !
Assim é que, na profecia, o Senhor veio várias vezes antes que viesse na realidade, a fim de que os homens fossem preparados para recebê-l’O livre e racionalmente. E é por isso que mesmo quando andava sobre a terra e falava face a face com os homens, Ele também se referiu a outra vinda que ainda estava para realizar-se — uma vinda nas nuvens do céu com poder e grande glória. Não está de acordo com a sã razão supor que isso era uma profecia de outro Advento na carne e nos ossos de um humano material. Pois, porque razão, Deus tendo já assumido um humano, tendo já unido esse humano com o Divino, tendo assim se revestido com o Divino Humano por meio do qual podia esta para sempre presente no mundo natural para tocar e moldar os corações dos homens — tendo se tornado Onipotente, Onisciente e Onipresente por Seu próprio poder Divino, em todos os planos da vida, no céu e na terra — por que razão iria assumir outro humano natural? O que poderia Ele realizar em uma tal vinda além do que já tinha feito antes?
Nada deve ser mais evidente do que a verdade de que, quando o Senhor completou a glorificação do Humano, a grande obra da Redenção já estava realizada e os homens já tinham sido resgatados das garras do inferno. Já “O Reino de Deus tinha vindo, e o poder do Seu Cristo”. Isto é, com o ato da Encarnação e da Glorificação, o remédio tinha sido ministrado à doente e moribunda raça humana que seria, por isso, restituída à vida e à saúde, e preservada contra a volta da moléstia.
Mas a convalescença é um processo longo e penoso. Quando o Senhor veio ao mundo, os homens não estavam preparados para recebê-lo em toda a glória de Sua Divina Majestade. Isto está claramente indicado nas próprias palavras do Senhor a Maria, depois da Ressurreição: “Não me toques porque ainda não subi para meu Pai”. Em relação ao Divino, a Redenção já tinha sido realizada; em relação aos homens, porém, os frutos daquele trabalho do Senhor ainda não estavam maduros para a colheita. O Senhor, com efeito, tinha estado presente no mundo natural e tinha se revelado até aos olhos materiais dos homens. Mas a Sua Vinda real — o seu reconhecimento por eles e a verdadeira percepção de Sua Divindade — ainda não podia se efetivar.
Poucos, com efeito, O reconheceram, poucos O tinham reconhecido em cada época e em cada povo. Um Reino de Deus universal nos corações dos homens ainda era, pois, impossível. Para os dirigentes e para a grande massa dos membros da Igreja Cristã, depois do seu primeiro declínio, o Senhor não tinha feito o Seu Advento. Jesus Cristo tinha vindo realmente, mas era apenas um grande mestre, um grande profeta, um grande homem, enfim. Deus, porém, não tinha descido à terra destes corações humanos e às suas mentes para se apresentar aí como verdadeiro Deus e como verdadeiro Homem. Anos e séculos tinham ainda que passar antes que isso acontecesse — antes que o fim e objetivo real do Advento do Senhor fosse atingido.
O alvo não seria alcançado enquanto, por meio desses Escritos Divinos que são chamados o Segundo Advento, o Senhor não se tornasse verdadeira e racionalmente presente nos corações e nas vidas dos homens. Pois é este, e não outro, o Seu Segundo Advento — aquela gloriosa e eterna vinda preparada desde o começo dos tempos. É o estabelecimento de uma Nova Igreja fundada na percepção racional, no reconhecimento e conseqüente adoração do Senhor como o único Deus do céu e da terra — Igreja que é a Santa Jerusalém, a Noiva e a Esposa do Cordeiro.
É importante ter essa concepção do Segundo Advento como o cumprimento, no campo da mente racional, daquilo que o Senhor veio ao mundo para realizar, pois só assim se pode compreender a significação do cântico que os anjos entoaram naquela primeira manhã no Natal — aquele cântico que tem sido repetido pelos homens e ecoado alegremente nos corações humanos desde cerca de dois mil anos: “Glória a Deus nas alturas, e paz na terra, boa vontade para os homens”.
Assim cantaram os anjos cheios de contentamento, porque em sua sabedoria viam que, no menino Jesus, a obra redentora já tinha sido potencialmente realizada. Mas viam também que o essencial da vinda do Senhor não era o Seu aparecimento no corpo material diante dos olhos naturais dos homens. Isto era apenas uma presença natural, externa, corporal. O essencial de Sua vinda era que, desta forma, Ele tomava para Si Mesmo o poder eterno de se aproximar dos homens — em seus amores e em suas vidas — para que pudessem unir-se para sempre com Seu Criador no céu. Viam que, baseado na percepção externa e sensual, havia surgido, pelo poder do Divino Humano glorificado, um reconhecimento racional do Senhor como Homem Divino; em conseqüência disso Deus podia, em verdade, descer à terra das mentes humanas, estar presente aí com a plenitude do Seu Infinito poder salvífico.  Era por esta vinda que eles se regozijavam, tendo uma visão do seu pleno cumprimento no fato supremo da Divina Encarnação. Era assim que os anjos, encarando a vinda do Senhor pelo interior e não pelo exterior, cantavam, não a primeira Igreja Cristã, que seria o fruto imediato daquele Advento, mas a Nova Igreja, por cujo intermédio, somente, podia ser realizado o propósito íntimo e o fim da Encarnação.
Toda revelação deve ser como uma nuvem. A Divina Verdade, em si mesma, não poderia ser contemplada pelos homens. Precisaria ser temperada, adoçada, acomodada à percepção deles. E a nuvem, pela misericordiosa Providência do Senhor, é de tal natureza que tanto pode desvendar o Senhor e as belezas do Seu Reino Celeste, como escondê-los. Essa nuvem é descrita, propriamente, como uma gaze colocada entre este mundo e o mundo dos espíritos. Se a luz projetada sobre ele provém do sol natural — de raciocínios meramente naturais — e, portanto, de baixo ou de fora, tudo o que pode ser visto é apenas um véu. Mas se a luz projetada sobre ela provém do interior — do Sol do céu — então o véu desaparece e vemos através dela as formas maravilhosas do Reino do Senhor no céu. Mesmo os Escritos, que dizemos ser o sentido interno da Palavra, são um véu dessa espécie, uma nuvem dessa natureza, uma nuvem de aparências racionais que podem ser usadas para revelar o Senhor ou para confirmar o homem contra Ele.
Mas aquela Glória que os anjos cantavam, era o próprio Sentido Interno da Palavra — o aparecimento do Divino Humano glorificado dentro das nuvens dos ensinamentos literais externos. Esta glória pode ser revelada somente aos que estão no amor ao Senhor. Pois é esse amor que pode abrir a vista interna espiritual dos homens, fazendo com que possa atravessar o véu e ver o Divino Humano do Senhor. E amar ao Senhor é, de acordo com as Suas próprias palavras, guardar os Seus Mandamentos: “Aquele que guarda os meus mandamentos, é o que me ama”. E assim, também glorificamos a Deus, como nos diz o Senhor em João: “Nisto é meu Pai glorificado, que deis muito fruto; assim sereis meus discípulos”.
Então as palavras dos anjos — “Glória a Deus nas alturas” — são uma profecia de que o Senhor, assumindo o Humano, unindo-o a Seu Divino, subjugando os infernos e pondo os céus em ordem, e tornando-se eternamente presente no mundo natural, tomava para Si o poder de fazer voltar os homens, na plenitude dos tempos, ao Seu amor e à obediência a Seus Mandamentos. Em conseqüência disso, podia revelar-lhes as maravilhas do sentido interno da Palavra e dar-lhes um conhecimento racional D’Ele.
Esta grande obra — a vinda real do Senhor para estar conscientemente presente nos homens, para governar seus corações e guiar suas ações — pode agora ser realizada por meio do milagre do Segundo Advento do Senhor. Por meio da Divina Revelação que nos foi dada nos Escritos, é agora permitido aos homens, pela primeira vez na história do mundo, “entrar intelectualmente nos mistérios da fé”. Agora, pela primeira vez, o Senhor Mesmo pôde assumir, nas mentes dos homens, uma forma racional, espiritual e celestial, e ser compreendido como o Homem Divino, o Senhor Jesus Cristo, em quem reside corporalmente toda a plenitude da Divindade. Agora, pela primeira vez, pode Ele tornar-se espiritualmente e internamente presente nos homens, e ao mesmo tempo natural e externamente a fim de guiá-los para o céu.
Dissemos que esta presença interna do Senhor realizou-se por meio do sentido interno da Palavra, vendo o Senhor em Seu Divino Humano Glorificado dentro do sentido literal, e o resultado de tal vinda do Senhor para cada homem é abrangido pela profecia das últimas palavras do cântico dos anjos: “Paz na terra, boa vontade para os homens”.
O resultado do primeiro Advento do Senhor não foi trazer a paz à terra. De acordo com as suas próprias palavras: “Não penseis que vim trazer a paz à terra. Não vim trazer a paz, mas a espada”. A revelação do sentido interno da Palavra, mostrando-nos os nossos males e falsidades, põe-nos em guerra conosco mesmos. Esta nova revelação atava as falsas concepções da letra da Palavra de que estão imbuídas as nossas mentes. Ela nos convida a abandonar aquilo que temos amado e que temos considerado como a verdadeira felicidade da vida. E só depois que lutamos contra estes males e falsidades, e os vencemos, iniciando-nos assim no amor da verdade por ela mesma, é que atingimos por fim o estado da paz. Tendo chegado a ver o Senhor como Divino Amor e Divina Sabedoria; tendo chegado a reconhecer a Sua Providência em todas as coisas de nossa vida; tendo chegado ao estado de querer que Ele guie as nossas vidas pelo caminho que julgar melhor, subjugaremos, por fim, os nossos desejos egoísticos e as nossas ambições naturais e entraremos num estado de paz, de confiança perfeita e de esperança.
Embora não entendamos tudo o que a Palavra ensina, embora as contradições, as dúvidas, as falsas aparências que vemos diante de nós perturbem o nosso espírito, tudo isso, entretanto, fica desfeito com a compreensão de que se trata, com efeito, da Palavra de Deus, cheia de Amor e de Sabedoria do Infinito — de que podemos conceber somente uma porção finita, mínima. Devido a esse reconhecimento, nós nos afastamos dos raciocínios falsos referentes à autoridade da Escritura, ou à razão porque foi escrita, e fazemos um esforço para cumprir aquilo que claramente vemos aí ensinado, exatamente de acordo com a profecia de Isaías: “E eles transformarão suas espadas em arados e suas lanças em podadeiras”.
É esta paz, conseqüente à entrada do homem em um estado de amor dos usos, que é significada pela “paz na terra” que os anjos cantaram; o que ainda é confirmado pelas palavras finais: “boa vontade para os homens”. Pois por “boa vontade para os homens” é significada a caridade espiritual — o amor mútuo. A caridade espiritual nada mais é que o amor dos usos. É o desejo de tornar-se um instrumento do Senhor na condução dos homens para o céu. O amor de realizar, numa medida finita, o trabalho da salvação que Ele realiza infinitamente para toda a humanidade. Os homens e os anjos são usados pelo Senhor como instrumentos do Seu trabalho Divino.
Quando os homens põem à parte o pensamento do eu e se entregam de pleno coração aos usos que estão diante deles, tornam-se servos do Senhor — argila moldada por Suas Divinas mãos —, campo para a realização de um trabalho que não conhecem. Este amor do uso é o coração e a essência do verdadeiro amor ao próximo. É a fonte de toda caridade genuína. É a fonte de onde flui toda a “boa vontade para os homens”.
Apreciada nesta luz, quão importante se torna a significação do Natal para os membros da Nova Igreja! Nós — os homens e as mulheres a quem o Senhor se dignou revelar o sentido interno da Palavra, e para quem Ele desceu e tomou forma corporal, como verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, nas substâncias de nossas mentes e de nossos corações — somos os herdeiros do Reino. Aquele estado celeste que os anjos cantavam pode agora ser realizado nos homens e mulheres da Nova Igreja.
Até agora temos apenas examinado o que é significado pelo cântico dos anjos, comparando-o com nosso estado atual, como o Senhor permite que o percebamos, para compreender que não temos feito pleno uso das bênçãos que o Senhor colocou diante de nós. Podemos bem perguntar até que ponto a Glória de Jeová — o verdadeiro sentido interno da Palavra —, o Divino Humano do Senhor, nos tem sido revelado.
Até que ponto estamos no amor do Senhor, o qual, unicamente, nos pode fazer dar “Glória a Deus nas alturas”? Até que ponto estamos no amor dos usos, que conduz ao amor para com o próximo — à caridade espiritual —, que promove o bem estar do próximo, tanto espiritual como temporal e, finalmente, conduz ao estado de paz celeste e de confiança no Senhor, estado predito pelas vozes angélicas no dia do nascimento do Senhor?
Seguramente ainda estamos nas trevas da noite, embora o sol já esteja se levantando próximo de nós. Estamos ainda perdidos no deserto dos pensamentos e cuidados do mundo, embora as belezas do céu estejam abertas diante de nós. Contudo o próprio fato disso nos ter sido revelado é motivo para regozijo. Se ouvirmos “a voz do que clama no deserto, preparai o caminho do Senhor”, Ele nos dará forças para construir na solidão em que nos encontramos, uma estrada para Deus, porque “Deus não mandou Seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por Ele”. Ele veio ao mundo, está presente aqui conosco, hoje, com todo o poder do Seu Divino Humano Glorificado. Os homens têm apenas que voltar-se para Ele e elevar-se acima da terra de uma concepção meramente natural, para que Ele os “atraia a todos para Si”.
Ao Cordeiro foi dado poder para abrir o livro e para quebrar os seus selos, e assim tornar conhecido aos filhos dos homens o Caminho Divino. A Nova Jerusalém começou já a descer à terra, e a hora se aproxima para o Senhor se tornar conscientemente presente nos homens — Emanuel, Deus conosco —, e estabelecer Seu Reino eterno no mundo natural.
Voltemo-nos então neste dia de Natal para o pensamento desta vinda real do Senhor. Oremos para que ela se realize em cada um de nós, e juntemo-nos ao coro feliz dos anjos em agradecimento ao Senhor porque desceu à terra e tomou para Si Mesmo o poder de dirigir todos os homens para aquele estado interno de paz e luz celeste a que, em Sua Misericórdia, Ele nos destina.
“Glória a Deus nas alturas, e paz na terra, boa vontade para os homens”.
Amém.

•   1ª Lição:     Lucas 2, 1-20
•   2ª Lição:     João 14, 15-31
•   3ª Lição:     A. R. 820