FÉ RACIONAL


Sermão pelo Bispo George de Charms


“E Jacó veio a Isaac, seu pai.”

(Gênesis 35, 27)

O homem é um animal racional dotado, por criação, com a faculdade do entendimento. Este dom o distingue dos animais, dando-lhe uma forma de vida mais perfeita e mais elevada.
Há duas faculdades intelectuais que se combinam para constituir o que chamamos “mente”: a faculdade de conhecer e a faculdade de compreender. Pode-se dizer que, de certo modo, os animais possuem também uma mente, pois, instintivamente, conhecem tudo o que é necessário à persuasão de sua espécie e à criação de seus filhotes. O homem, por seu lado, possui também o que se chama uma mente animal, isto é, caracterizada principalmente pela faculdade de conhecer. No homem, entretanto, o conhecimento não é instintivo; precisa ser, ao contrário, adquirido por um lento e laborioso processo de aprendizagem.
A razão disso é que, para ele, o conhecimento é apenas um meio de adquirir o entendimento. Com efeito, é preciso conhecer primeiro, para entender depois. Mas o desejo de compreender está presente, e é dominante, desde o princípio. É este desejo que dá origem à curiosidade e excita o anseio de saber. Este desejo de compreender dirige secretamente toda a nossa aprendizagem, pondo em ordem os conhecimentos adquiridos para servirem de base à obtenção de verdades mais elevadas. Por esta razão o conhecimento do homem é radicalmente diferente do conhecimento dos animais; consistindo essa diferença em que o conhecimento do homem contém a semente e o potencial do entendimento, o que falta inteiramente aos animais.
Apesar disso, mesmo no homem, o conhecimento e o entendimento são faculdades distintas. Todo conhecimento, quer se refira às coisas do céu, quer se refira às da terra, deve provir de fora, através dos sentidos do corpo. Deve ser adquirido por meio do ouvido, pela instrução ministrada por outros homens; por meio da vista, pela leitura; ou por meio dos outros sentidos, pela experiência pessoal. Assim, o conhecimento, em sua origem e essência, é natural. O entendimento, ao contrário, é essencialmente espiritual, mesmo o entendimento das coisas naturais. Vem misteriosamente do interior através da alma pelo influxo do mundo espiritual. Por isso é muitas vezes chamado de “introspecção”, sendo algumas vezes atribuído à inspiração. Vê-se que estas duas faculdades são distintas e, até certo ponto, independentes, embora o entendimento sem o conhecimento seja impossível, pelo fato de possuirmos às vezes, por muito tempo, conhecimentos cujo alcance nos escapa até que, subitamente, desperta em nós a sua compreensão.
Na história do livro da Gênesis, Jacó representa a faculdade de conhecer e Isaac a de compreender. Todas as coisas ditas a respeito deles ilustram as relações existentes entre estas duas faculdades. É significativo, portanto, que na narração da Escritura, Isaac seja o pai de Jacó, indicando que, embora o conhecimento deva vir primeiro, contudo a faculdade racional é anterior e, de fato, produz em nós a faculdade de conhecer. É significativo também que, enquanto Isaac permaneceu na Terra de Canaã, Jacó esteve separado dele por mais de vinte anos, vivendo em Padan Aram na casa de Labão, irmão de sua mãe. Pois a terra de Canaã representava a mente interna espiritual, ao passo que os países circunvizinhos — incluindo Padan Aram (a Síria) — que representavam a mente natural.
A mente espiritual é formada pela faculdade de entender; e a mente natural pela de conhecer. Esta formação é representada nesta história pelo fato de Jacó ter sido grandemente enriquecido durante a sua permanência em Padan Aram, onde lhe nasceram os doze filhos de que deveriam descender as doze tribos de Israel. Os “rebanhos e manadas” com que se enriqueceu aí, representam a riqueza de conhecimentos. Os “filhos” representam todas as verdades e bens da Igreja.
Ora, é digno de nota que estes filhos, simbolizando coisas espirituais, tivessem, entretanto, nascido em Padan Aram; isto é, na mente natural. A razão é que as coisas espirituais também devem ser adquiridas de fora — aprendidas pela instrução e pela leitura. De nenhum outro modo pode ser adquirido qualquer conhecimento das coisas espirituais e, se não houver conhecimento, não poderá haver entendimento. É, portanto, de suma importância que esses conhecimentos sejam adquiridos. E é igualmente importância que eles sejam verdadeiros, contendo em si a sabedoria espiritual, celestial e Divina; pois de outro modo não podem servir de base para um entendimento genuíno.
Pela Divina Misericórdia do Senhor nos é dado, na Palavra, um conhecimento verdadeiro das coisas espirituais. Esse conhecimento não pode ser obtido em nenhuma outra fonte. E é vital para a nossa vida espiritual futura que os conhecimentos da Palavra, junto com os conhecimentos da natureza, sejam implantados na mente da criança e do jovem antes que tenham atingido a idade racional, ou seja, enquanto Jacó está morando em Padan Aram. Os conhecimentos da natureza são como “os rebanhos e manadas” que servem para a nutrição da vida natural do homem. Os conhecimentos da Palavra, porém, são como “os filhos” por meio dos quais a vida espiritual será perpetuada e todas as bênçãos multiplicadas.
Em todas as crianças o desejo inato de saber, abre a mente a estes conhecimentos da Palavra e faz com que sejam recebidos com prazer, muito antes que a sua significação possa ser compreendida. E se forem recebidos em uma esfera de respeito, servirão para dispor todas as coisas da mente de modo que, no tempo próprio, haja um despertar para o entendimento espiritual.
Embora, porém, os conhecimentos devam ser adquiridos primeiro, não constituem um fim em si mesmos. Não satisfazem as necessidades mais profundas da vida do homem. Por esta razão se diz que Jacó não estava satisfeito em Padan Aram. Não estava satisfeito em ter que continuar como um rico rendeiro da terra que pertencia a outro. Tinha recebido a promessa de Jeová de que a sua semente herdaria a Terra de Canaã. O desejo de possuir essa terra esteve sempre presente em seu coração durante todo o tempo de sua permanência junto de Labão. Devido a isso foi ficando, progressivamente, insatisfeito e inquieto, até ser impelido a voltar para a terra (do destino) que lhe tinha sido Divinamente destinada. Quando, portanto, já tinha realizado em Padan Aram tudo o que era necessário para aquele fim — quando todos os seus doze filhos já tinham nascido —, Jacó voltou para Isaac, seu pai, como se vê na Escritura.
Desta volta dependia todo o futuro de Jacó. Assim também acontece com cada um de nós. O nosso completo desenvolvimento espiritual depende de procurarmos, não somente conhecer, mas também compreender interiormente a verdade.
Se o homem se mantivesse dentro das leis da ordem de sua vida, esta transição do conhecimento natural para o entendimento espiritual seria fácil. Como, porém, o homem nasce no amor de si e do mundo, estes amores instigam-no a procurar primeiro a aquisição das riquezas naturais e até se contentar com os prazeres e satisfações da mente externa. Eles o persuadem a permanecer em Padan Aram, desprezando, assim, o seu destino espiritual. Absorvido na luta pelos sucessos mundanos, sentindo que precisa empregar todas as suas energias para adquirir habilidade e competência em uma profissão que lhe assegure o lugar cobiçado na sociedade humana, o homem é tentado a aceitar os ensinamentos da Palavra e da religião sem refletir seriamente sobre sua significação. Enquanto está entregue a estas tentações, esses ensinamentos permanecem simplesmente como conhecimentos armazenados na memória. Embora creia neles, sua fé é apenas uma fé tradicional, baseada na autoridade dos outros e não sobre qualquer entendimento profundo propriamente seu.
Muitas pessoas, hoje em dia, passam pela vida contentando-se só com a fé tradicional, eximindo-se de qualquer responsabilidade pelo entendimento das coisas espirituais. Ocasionalmente, sua mente pode se voltar para a contemplação dessas coisas; mas, por estar o seu amor concentrado nas coisas do mundo, a necessidade da verdade espiritual só é compreendida vagamente, e os ensinamentos da religião parecem distantes, abstratos e difíceis de entender. Qualquer concentração do pensamento sobre eles é um esforço de que a mente se afasta com uma sensação de alívio e de sossego, para recair em reflexões mais convenientes sobre as coisas realmente amadas.
Entretanto, em todo homem há um desejo inato de saber. O homem consiste, mesmo, numa possibilidade de compreender, não só as coisas terrenas, como também as celestes; e isto porque o homem nasce, não apenas para a vida no mundo natural, mas para a vida eterna no céu. A razão de ser de todo entendimento — mesmo o das coisas naturais — é dar ao homem a possibilidade de adquirir a inteligência espiritual e a sabedoria necessárias ao desempenho de uso celestes. Por esta razão a faculdade mesma do entendimento é, em essência, espiritual. Tem a sua origem no Senhor — no fato do Senhor ter criado todas as coisas segundo uma ordem imutável —, no fato da operação da Sua Providência ter em vista um fim eterno, e da mente do homem ter sido formada como um instrumento que lhe permite perceber essa ordem, compreender os usos Divinos e os propósitos existentes em todas as coisas. É esta a essência do entendimento para a qual foi criada a mente humana.
Por conseguinte, o verdadeiro amor humano de compreender não pode parar no meio do caminho. Não pode contentar-se com meras demonstrações naturais que, apesar de tudo, são apenas simples verdades naturais. Deseja, por sua própria natureza, penetrar no âmago das coisas e acompanhar a verdade até a sua fonte, isto é, até ao Senhor que é a Causa Única Final de tudo. Este desejo é simbolizado pela ordem de Jeová a Jacó para voltar à Terra de Canaã, com a promessa de que a sua semente herdaria essa terra.
O objetivo Divino da vida do homem é, portanto, que Jacó volte a Isaac, seu pai; ou seja, que o homem, na idade adulta, procure a inteligência espiritual e, por meio dela atinja a fé racional. Este propósito do Senhor tem sido revelado na Palavra em todas as idades. Mas por terem sido falsificados os ensinamentos das Escrituras anteriores, por terem os homens se persuadido de que os conhecimentos e o entendimento espirituais são impossíveis, por terem os amores de si e do mundo se tornado tão preponderantes que detiveram o desenvolvimento espiritual da raça, o Senhor, em Sua Segunda Vinda, revelou o sentido interno de Sua Palavra expondo, de novo, numa linguagem racional, o destino espiritual do homem. Deu-nos então uma grande riqueza de conhecimentos concernentes às coisas Divinas e celestes.
Por estes conhecimentos podem agora ser corrigidas as idéias errôneas do passado — idéias a respeito de Deus, da natureza de Sua Redenção, do mundo espiritual e da vida depois da morte. E como estas idéias são expressas em termos racionais, podem ser, primeiro, adquiridas de fora, pela instrução e pela leitura, da mesma forma que qualquer outro conhecimento.
Os Escritos são, com efeito, a única forma dos verdadeiros conhecimentos espirituais no mundo. Na verdade os seus ensinamentos constituem o que é significado pelos filhos que deviam nascer a Jacó em Padan Aram, para que a promessa do Senhor fosse cumprida. O objetivo central de toda educação deve ser ministrar esses conhecimentos na infância e na juventude a fim de que possa ser estabelecida uma fé espiritual na idade adulta. Contudo, embora esses conhecimentos sejam dados em grande abundancia, não produzirão uma fé racional, a não ser que Jacó volte para Isaac, seu pai.
Esta volta a Canaã não pode ser assegurada pela educação. Não pode ser imposta de fora. É uma responsabilidade individual, e a decisão de fazê-la deve ser tomada como uma livre resposta ao chamado do Senhor. Nada é mais vital ao estabelecimento da Nova Igreja — ou mesmo do futuro da raça — do que a cultura ativa e resoluta do amor à verdade espiritual por parte de todos aqueles que têm a ventura de receber os conhecimentos da Doutrina Celeste. Nada mais é importante — para nosso futuro e o futuro de nossos filhos — do que não nos recusarmos a fazer isso, contentando-nos apenas com o conhecimento natural; nada é mais importante do que insistirmos em procurar compreender cada vez mais profundamente — e mais verdadeiramente — o que o Senhor nos revelou.
De nenhum outro modo pode ser obtida a fé racional. De nenhum outro modo pode o Senhor conceder-nos a inteligência espiritual e a sabedoria, e multiplicá-las e aumentá-las em nós até se tornarem uma forte nação, capaz de, com o auxílio do Senhor, conquistar a terra, expulsar os amores egoísticos e mundanos que agora habitam nela, e receber, por fim, como uma herança eterna, o prometido reino do Céu.
Amém.

•   1ª Lição:     Gênesis 24, 1-9
•   2ª Lição:     Gênesis 35, 9-20 e 27-29
•   3ª Lição:     A. C. 9020