ESFERAS HUMANAS


Sermão pelo Rev. N. H. Reuter


“Nada há encoberto que não haja de ser descoberto; nem oculto, que não haja de ser sabido. Porquanto tudo o que em trevas dissestes à luz será ouvido; e o que falastes ao ouvido no gabinete sobre os telhados será apregoado”

(Lucas 12, 2-3).

Para os que têm ciência da existência do sentido interno da Palavra, a importância espiritual de nosso texto em sua forma geral, é tão clara que não necessita de qualquer elucidação. O esclarecimento desse sentido espiritual será suficiente. Aquilo que está encoberto no homem, aqui na terra, é o seu homem interno, e nós sabemos pela Doutrina Celeste que não há coisa alguma desse homem interior, agora encoberto, que, depois da morte, não seja revelado, nem coisa alguma escondida que não venha a ser sabido. “Portanto, tudo o que falastes nas trevas será ouvido na luz; e aquilo que falastes ao ouvido nos gabinetes — o que significa as coisas que o homem pensou e intentou em seu íntimo — será proclamado sobre os telhados”. A lição que aí se contém é que a natureza interior do homem, tanto passada como presente, tornar-se-á conhecida de todos que estiverem à roda dele na outra vida, quando aprouver ao Senhor, o que acontecerá para seu controle e benefício.
É sabido por todos — e a Doutrina repetidamente o afirma — que, presentemente, na terra, não existe esta exposição e aberta visibilidade dos internos do homem. A razão disso é que desde a queda do homem, o seu interno e o seu externo foram separados um do outro, podendo agir sem estar em perfeita correspondência entre si. A causa e a necessidade dessa mudança residem na introdução do mal e da falsidade no coração e na mente do homem. A sua liberdade de escolha só podia ser mantida por meio dessa separação entre o seu interno e o seu externo, e só assim podia também ser preservada a sua possibilidade de salvação. Pois com a presença dos males hereditários e atuais, tornou-se necessário que o homem agisse e falasse desconhecendo o espiritual, a fim de poder alcançar os novos meios de sua regeneração. Nos seus estados primitivos, porém, não era assim, e se ele estivesse na ordem da sua vida agora, também não seria assim, pois então ele não teria necessidade nem desejo de encobrir ou esconder coisa alguma, e tudo nele estaria descoberto. O homem não teria vergonha de sua nudez.
Pensamentos como estes sempre fizeram com que homens ou mulheres espiritualmente sérios se detivessem a refletir, desejando saber o que seria revelado, caso seu ser interior fosse assim aberto, na terra, como o é no Céu diante dos anjos e diante do Senhor também. E essa reflexão leva a mente a pensar na regeneração, exatamente como o Senhor deseja.
Quando a atenção do homem — especialmente do homem natural — é atraída para o fato de que deve emendar a sua vida, que precisa descobrir seus males e evitá-los, e quando então a idéia da recompensa celeste é oferecida como um incitamento, como o homem natural não deseja evitar os seus males, nem mesmo ser perturbado com o conhecimento de que eles existem, então hábil e defensivamente procura um meio de considerar a regeneração como uma espécie de egoísmo visando a recompensa futura.
Diz que é egoísmo regenerar-se por causa do Céu como recompensa, e que é melhor para o homem seguir os seus próprios impulsos naturais para o bem, e que este progresso espontâneo é muito melhor do que a aplicação forçada da Doutrina à vida; esquecendo-se de que homem algum tem qualquer impulso natural para o bem que seja realmente bem. As pessoas espiritualmente indolentes se satisfazem com esta linha de pensamento, e evitam assim a desagradável tarefa de se examinar para descobrir seus males e depois lutar para removê-los por meio do arrependimento e da correção dos seus caminhos.
É bem verdade que se o homem procura regenerar-se não só por motivos egoísticos, esperando, dessa forma, ganhar o céu e escapar do inferno, ele será rude e tristemente desapontado, pois, desse modo, não fará mais do que abrir, para si mesmo, uma vereda do mérito próprio e de retidão própria que conduz diretamente ao inferno.
Entretanto a Revelação nos exorta constantemente à regeneração e ao renascimento. Esta é a meta principal de toda sua pregação. Mas a Palavra nos diz também que o processo da regeneração e o caminho da salvação são a estrada do amor ao próximo e dos serviços prestados aos outros, em vez do interesse exclusivo por nós mesmos. Só os que se tornam uma forma desse amor e se deleitam nesse serviço, encontram o caminho do Céu.
Ora, como poderemos servir os outros, tendo este interesse aparentemente rígido pela nossa própria regeneração e salvação? A resposta a esta pergunta pode ser encontrada se voltarmos o pensamento para o que foi revelado em relação às esferas. A Doutrina nos ensina que as esferas são coisas muito reais, e não coisas imaginárias ou teóricas. Todo homem, quanto ao seu espírito, é uma forma espiritual organizada da qual emanam minúsculas partículas semelhantes à forma que lhes deu origem, emanação que constitui a sua esfera. Esta esfera não é material, mas substancial. O substancial é o equivalente espiritual do material. A esfera de cada homem é determinada por seu amor dominante e o que dele se deriva. É o amor dominante que organiza a forma do espírito de que emana a esfera.
Estas esferas individuais, por sua ação e uso, produzem conjunções e antipatias de acordo com a natureza da forma de que procedem e, portanto, de acordo com os amores que produzem essas formas. Elas constituem os meios de comunicação entre amores semelhantes, isto é, entre os anjos, os espíritos e os homens que possuem amores semelhantes; e, conseqüentemente, produzem as disjunções ou separações ente os que são dessemelhantes.
Durante toda a vida do homem — passada e presente — os seus pensamentos, secretos ou aparentes, e as suas intenções, visíveis ou ocultas, são impressos nessas esferas que emanam de todo o ser humano. É por meio delas que, na outra vida, todo o caráter do homem se desvenda aos olhos daqueles que o Senhor acha conveniente que o vejam. Assem é que “nada há encoberto que não haja de ser descoberto; nem oculto que não haja de ser sabido”. Pois a esfera de uma pessoa é a sua imagem perfeita e, na outra vida, ela desvenda as suas qualidades, revela o seu caráter e define o homem. Sá, ela não pode ser abafada ou encoberta, nem admite alteração alguma que não provenha de sua própria fonte — o homem mesmo. É adquirida gradualmente pela vida do homem sobre a terra, por seus pensamentos e por suas afeições, por suas palavras e por suas ações. Por seu procedimento na vida terrena, as substâncias de seu espírito vão sendo moldadas e fixadas indelevelmente, dentro de certos limites, sendo a natureza a qualidade de sua esfera determinada por esse meio.
Não apenas o indivíduo, mas também cada grupo de indivíduos tem a sua esfera característica. Segue-se daí que cada homem, não só influencia os outros por sua esfera, como também é influenciado por eles. Sobre isso os Escritos nos ensinam:
“Há duas esferas opostas que cercam o homem, uma do inferno, e outra do Céu; do inferno, uma esfera de males e falsidades; do Céu, uma esfera de bens e verdades; e estas esferas não afetam imediatamente o corpo, mas afetam a mente dos homens, pois são esferas espirituais e, portanto, são afeições que pertencem ao amor. Entre elas o homem está posto; por isso tanto quanto ele se aproxima de uma, ele se afasta da outra. É por isso que tanto quanto ele evita os males e os detesta, ele quer e ama os bens e verdades; pois ninguém pode servir ao mesmo tempo a dois senhores, porque ou ele odiará a um ou amará ao outro”. (A. E. 902/2)
Analisemos mais de perto estas duas esferas emanadas do indivíduo, e também o efeito que produzem sobre os outros. Se uma pessoa guarda os Mandamentos pelo amor do que é bom e uma sincera aversão pelo que é mau, essa pessoa produz uma esfera que é sentida ao seu redor — esfera que preserva a ordem, encoraja o bem, convida ao desenvolvimento espiritual e coloca essa pessoa na corrente da Providência. Pois a Providência nada mais é que a Esfera Divina destinada à preservação do universo e a outorgar aos homens as bênçãos da vida eterna. Mas se o homem viola os Mandamentos intencionalmente, então sua esfera será completamente oposta à ordem, encorajará o mal, resistirá ao desenvolvimento espiritual e, infrutiferamente, lutará contra a corrente da Providência.
Aquele que tem desprezo pelos outros emite uma esfera que prejudica ou destrói tudo o que entra em contato com ela. O inferno opera por meio dele e de sua esfera, e entra no seu prazer que consiste em ferir, devastar, destruir. Ao contrário, se o homem tem genuíno amor pelos outros e considera e atende aos outros de preferência a si mesmo, então a sua esfera traz a paz e a alegria do Céu a todos os que estão dentro de sua órbita de influência.
Se um homem ou uma mulher agem levados por um prazer egoístico, a sua esfera sugará dos outros todo o prazer da diversão em que estiverem tomando parte, procurando tirar para si somente todo o prazer, sem se importar com as conseqüências desagradáveis que isso possa trazer para os outros companheiros de recreação. A sua presença é como uma rajada abrasadora ou como um odor nauseabundo para a sensibilidade espiritual da companhia. A respeito dessas pessoas encontramos nos Escritos o seguinte:
“Durante alguns dias estiveram comigo espíritos que, enquanto viviam no mundo, não se tinham absolutamente interessado pelo bem da sociedade, não se ocupando senão deles mesmos; que, no País em que viveram, não tinham desempenhado utilmente função alguma, e tinham tido por único fim alimentar-se com refinamento, vestir-se com esplendor e enriquecer-se; estando acostumados à dissimulação e às maneiras astuciosas de se insinuar por diversas bajulações e por uma afetação de oferecimento de serviços, unicamente para se fazerem notar e para chegarem a administrar os bens do soberano, e que encaravam com olhar desdenhoso todos os que desempenhavam funções sérias. Percebi que eles tinham vivido nas cortes. Por suas esferas, eles me tiravam toda aplicação ao trabalho e me davam uma tão grande repugnância por fazer e pensar sério a verdade e o bem, que, por fim, eu mal sabia o que fazer” (A. C. 1509).
Note-se que se diz na passagem acima citada que a sua esfera era tal que embaraçava a ação útil de quem procurava fazer o que era bom e verdadeiro. Daí se deduz claramente a razão porque a regeneração se faz tanto por causa dos outros como por nós mesmos. Nenhum homem pode abrigar dentro de si algum mal sem emitir uma esfera que tem efeitos deletérios. Cada mal dentro de nós é um agente prejudicial aos outros. O nosso próprio estado não é, pois, um assunto inteiramente privado ou de nosso interesse exclusivo, mas é também uma coisa de conseqüências públicas que beneficiam ou prejudicam a sociedade.
Aquele que age por ódio, irritação ou exasperação, abre as portas à enxurrada do inferno e, por sua esfera, tanto quanto por suas palavras e por seus atos, torna-se um agente de prejuízos e de danos para os outros. A sua submissão a tais influxos não só envenena o seu espírito, como também cria a desordem, destroçando as esferas racionais e tendendo a destruir a liberdade de todos os que estão nas proximidades.
Vê-se assim, claramente, o quanto os outros são afetados ou influenciados pelos nossos males. Isso se verifica, particularmente, em relação ao amor conjugal.
Quando alguém está dominado por algum mal, permitindo que uma paixão do animus o empolgue, ou uma cobiça de sua vontade má se escape da prisão interna — quer se trate de ódio ou irritação, quer se trate de um prazer egoístico, quer seja um descontentamento, uma compaixão de si próprio, um desprezo pelos outros ou qualquer outra das múltiplas faces do amor de si ou do amor próprio —, quando isso acontece, não pode haver progresso algum para o amor conjugal. Nesses estados o consorte deve afastar-se, ferido até o íntimo por esta esfera oposta à sua conjunção, ou então terá que procurar a conjunção no mal, o que destruiria o conjugal de ambos.
Este afastamento interior do consorte inocente em relação ao consorte culpado se realiza infalivelmente a despeito das aparências externas que possam ser mantidas, pois a perda do controle espiritual, com a esfera decorrente, traz o frio interior que, persistindo, destrói todo conjugal. A mesma esfera do inferno, quando uma pessoa persiste em seus males, destrói todo o amor mútuo na família, dissipa toda amizade verdadeira e afasta essa pessoa dos usos da sociedade.
Em resumo, não podemos gozar os nossos males em particular. Todos nós somos parte de uma sociedade estritamente unida e solidária. Cada pensamento, cada palavra, e mais do que tudo, cada ato, deleita ou ofende aos outros, ajuda ou prejudica aos outros. A compreensão da forma porque agem as esferas torna isso realmente claro. E tendo esse pensamento em mente, será fácil ver que a regeneração é também uma obra de caridade para com o próximo e não apenas um meio de obter uma recompensa egoística. Mas é só quando a empreendemos com este ponto de vista e nesse espírito que ela se torna, de fato, uma obra de caridade. Devemos evitar os males — os males que estão em nós — porque eles são pecados contra o Senhor, e porque, também, eles ferem as almas dos homens — dos outros homens, além de nós mesmos. Nesse espírito, nós poderemos nos transformar em membros úteis da sociedade, e não prejudicar os outros. A caridade então crescerá, a cooperação se tornará possível e o Reino do Senhor será estabelecido sobre a terra.
Amém.

Lições:   • Lucas 12, 1-23
• Lucas 12, 30-37
• A. C. 1504-1507