DOR E ALEGRIA


Sermão pelo Bispo George de Charms


“Bendito o Rei que vem em nome do Senhor; paz no Céu, e glória nas alturas”.

(Lucas 19,38)

Havia um notável contraste no espetáculo da entrada triunfal do Senhor em Jerusalém. Era como se o máximo de pesar e de sofrimento humanos caminhassem lado a lado, com o cúmulo da alegria e da exaltação. Tinha chegado a hora em que o Homem-Deus seria entregue aos escribas e fariseus (ardendo em ódio contra Ele) para ser escarnecido, açoitado e crucificado. Ele sabia o que ia acontecer: a completa imolação de Sua vida natural, a deserção de Seus discípulos e de todos que O amavam, a exposição ao ridículo e ao desprezo daqueles que rejeitavam a Sua Palavra e blasfemavam contra o Seu nome.
Para Ele a jornada da Betânia pela estrada real, descendo a encosta ocidental do Monte das Oliveiras para o Jardim de Getsêmani, e pela áspera subida para as portas da cidade, era uma aproximação para a morte. Era uma calma aproximação para o sacrifício a que toda a Sua vida estava votada e que envolvia sofrimentos superiores aos que o homem mortal podia suportar; a entrega deliberada d’Ele Mesmo nas mãos de Seus inimigos para dar, por Sua própria e livre vontade, a Sua vida para a salvação da raça humana.
Entretanto, por Sua própria ordem, esta jornada tornou-se uma alegre procissão, uma renovação dos ritos do mundo antigo para investidura e coroação de um rei. Os olhos dos seus discípulos estavam cegos para a tragédia iminente. Ignoravam, felizmente, os dias terríveis que estavam próximos. Sabiam realmente dos perigos que O ameaçavam. Estavam prevenidos a respeito dos fogos abafados do ódio nos corações dos chefes judeus, prontos a explodir contra o Senhor. Muitas vezes o Senhor tinha falado de Seus sofrimentos, e profetizado mesmo o tempo exato em que deveriam ocorrer.
Quando foi avisado de que Herodes procurava matá-l’O, respondeu: “Ide e dizei àquela raposa: Eis que Eu expulso demônios e efetuo curas, hoje e amanhã, e no terceiro dia sou condenado. Importa, porém, caminhar hoje, amanhã e no dia seguinte; para que não suceda que morra um profeta fora de Jerusalém” (Lucas 13, 32-33).
Contudo, tão fixas eram as suas idéias a Seu respeito, tão alheio àquelas idéias era o pensamento de Sua morte, que eles compreenderam as Suas palavras. Acreditavam de todo coração em Seu Divino poder, e procuravam uma explicação de Seus clamores, uma miraculosa destruição de Seus inimigos, e depois, o firme estabelecimento de um reino terrestre, onde todos reconhecessem n’Ele o Messias prometido e O colocassem no trono de Davi para restaurar a antiga glória de Seus povos, de acordo com as palavras dos profetas. Quando, portanto, Ele ordenou que trouxessem um jumentinho e colocassem suas roupas sobre ele, para que o cavalgasse até Jerusalém, consideraram isso como o sinal indubitável de que suas esperanças estavam prestes a se realizar. Ele ia realmente tornar-se rei e, então, saindo do desespero em que viviam, saindo da prisão de longos anos de espera na degradação, eles, subitamente, emergiriam na glória de uma nova segurança que exultava em suas vozes e nas da multidão que se juntava a eles pelo caminho, cantando com eles o cântico da coração: “Bendito o Rei que vem em nome do Senhor; paz no Céu e glória nas alturas”.
Não devia ter sido das menores a aflição que o Senhor sentia por saber que esta alegria de Seus discípulos era apenas momentânea e que devia, quase que imediatamente, ser substituída por terrível desespero, o que faria com que a fé que eles tinham (a sua fé n’Ele) fosse abalada até aos fundamentos, e que toda esperança de glória que em vão alimentavam, cairia em ruínas irrevogavelmente.
Seu infinito amor desejava conceder-lhe as alegrias do Céu. Por causa deste amor, quando estava se aproximando da cidade, chorou sobre ela, dizendo: “Ah, se tu conhecesses também, ao menos neste teu dia, o que à tua paz pertence! Mas agora isto está encoberto aos teus olhos” (Lucas 19,42). Sabia que aquela alegria não se baseava em uma felicidade real. Era a alegria de amores egoístas e mundanos, de modo que satisfazê-los seria plantar a semente da eterna infelicidade em seus corações. Por isso Ele olhava, não para eles, mas para o bem mais alto de toda a raça humana, e seguia calmamente para diante, para fazer a vontade do Pai, despreocupado dos acontecimentos imediatos.
E, tendo em vista este Divino propósito, a entrada em Jerusalém tornou-se, mesmo para Ele, uma marcha triunfal. Ele bem sabia que para além das horrendas portas da morte, (agora mesmo) abertas para recebê-l’O, viria a gloriosa aurora da ressurreição, a hora de Sua completa união com o Pai. Sabia muito bem que isto era apenas a última tentação, logo seguida pela vitória final em que o poder do inferno seria quebrado para sempre. Via, como resultado de Seu sacrifício, a libertação das almas dos homens da escravidão em que se achavam, para que pudessem receber a felicidade do céu. Comparadas com esta grandiosa realização, as provações do momento — a cruel desilusão daqueles discípulos que tinham aprendido a amá-l’O, e os Seus próprios sofrimentos na cruz — tornavam-se de muito pouca importância. Por isso havia n’Ele um coração alegre. No íntimo de Seu espírito perturbado havia uma alma de paz.
O contraste, aqui, não é, como a princípio podia parecer, entre o máximo de alegria e o máximo de pesar. É, antes, um contraste entre a alegria terrestre e a celeste. É um contraste entre o objetivo da felicidade que os homens, em sua ignorância e loucura, tinham em vista, e a felicidade eterna que, em Sua sabedoria e em Sua amante bondade, Ele queria dar-lhes.
No regozijo da multidão vemos apenas a esperança de alcançar o poder terreno e a vitória de assumir o governo nacional e de conseguir o restabelecimento da paz, de obter a proeminência entre os homens, e a riqueza, a prosperidade e a fama. No Senhor, porém, a alegria era porque Seu Humano ia ser unido ao Divino, e porque, por essa união, os infernos seriam completamente subjugados, e a raça humana seria redimida. Em uns havia o pensamento do eu e daquilo que lhe dizia respeito — suas próprias famílias e sua própria nação. No outro vemos somente o amor da humanidade — uma infinita misericórdia e compaixão por um povo caído, e o regozijo pela restauração de sua felicidade.
Esta alegria suprema, que animava o Senhor durante a paixão da cruz, era uma alegria Divina, e era a alegria do Céu. Continha no íntimo a inefável felicidade espiritual. E é esta felicidade que foi prometida aos homens. Muito tempo tem sido ela esperada, não porque o Senhor não a esteja sempre oferecendo, mas porque os homens não têm querido recebê-la. O Senhor prometeu, entretanto, que no final do estabelecimento de Seu reino, os homens virão a reconhecer esta bênção Divina. É a promessa dada à Nova Igreja quando, com a Revelação da Segunda Vinda, a profecia de João foi cumprida: “Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, e com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles, e será o seu Deus” (Apoc. 21,3). Pois daquele tempo se diz: “E Deus limpará de seus olhos toda lágrima, e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas” (idem, 21,4).
Estamos no próprio limiar daquela era final da história do mundo para a qual os olhos dos homens têm se voltado continuamente, ansiando pelo seu início. Pertence-nos a maior herança que jamais foi concedida a qualquer geração de homens pela mão misericordiosa de Deus. A nós foi dado ver e conhecer o Senhor em Seu Humano Glorificado. A nós Ele veio em uma forma e presença vivas, para morar continuamente conosco, para nunca mais nos deixar. Em nosso meio Ele permanece em Sua gloriosa majestade como o único Deus vivo e visível, ensinando-nos por meio de Sua Divina Sabedoria, tocando os nossos corações com a percepção de Seu Divino Amor, pondo Suas mãos sobre nós, dia após dia, para nos abençoar.
Esta presença diante de nossa vista espiritual, que nos habilita a conhecer e amar as verdadeiras qualidades de Sua Natureza Divina é, sem dúvida, motivo de grande regozijo para nós. Ela nos dá uma alegria muito superior à dos apóstolos, que O conheceram apenas no corpo. Quando pensamos sobre o que Ele realizou com a Sua Segunda Vinda, Sua última Vinda à raça humana — o julgamento e separação dos bons e dos maus no mundo espiritual; a formação de um novo céu, em cujo centro Ele mora; a descida daquele corpo de Divina Sabedoria, que nós chamamos os Escritos, para nos dar conhecimento seguro das coisas eternas; aquela Nova Revelação de Si Mesmo, que é chamada a Cidade Santa, a Nova Jerusalém, descendo de Deus pelo céu —, seguramente nossos corações são levados a dar glória e honra a Ele, o nosso Salvador e o nosso Deus.
No grau em que compreendemos a plena significação dessas coisas, poderemos dizer como Zacarias: “Bendito seja o Senhor Deus de Israel, porque Ele visitou e redimiu Seu povo”. Quando pela primeira vez compreendemos o fato estupendo de que, agora, a Palavra da Divina Verdade pode nascer em nossos corações e que o Senhor pode entrar nele e habitar conosco para sempre, somos levados a repetir, com íntima alegria, as palavras de Maria: “Minha alma engrandece ao Senhor, e meu espírito regozija-se em Deus meu Salvador”.
Entretanto, nós nos achamos, a respeito de vários assuntos, na posição dos discípulos e da multidão que seguiam o Senhor quando cavalgava para Jerusalém, os quais cantavam cheios de alegria pela esperança de alcançar os seus próprios objetivos terrenos: “Bendito seja o Rei que vem em nome do Senhor; paz no céu, e glória nas alturas”.
Temos o costume de conservar diante dos olhos a nossa humana concepção da felicidade e procurar a Igreja, procurar o Senhor em Sua Segunda Vinda para a satisfação dos nossos desejos externos. Estamos sempre dispostos aquela espécie de felicidade que tem suas raízes nos sucessos mundanos. Essa felicidade, porém, depende de coisas do tempo, de coisas da natureza, que deixam de existir para nós quando cessa a nossa vida corporal. Se tal felicidade fosse o nosso único apoio, então no outro mundo ela, inevitavelmente, se transformaria em infelicidade. Pois tal felicidade não tem o Senhor no seu íntimo, não tem a essência da vida eterna no seu interior. O Senhor nos dará paz, mas será a paz do céu a que Ele deseja nos conceder, porque esta é para sempre e aumenta infinitamente. Por isso Ele disse a Seus discípulos: “A Paz Eu deixo convosco, minha paz eu vos dou; mas não como o mundo a dá, eu vos dou”.
A paz é a fonte interna de toda felicidade. Tem sua origem na conjunção com o Senhor que é chamado o Príncipe da Paz. Ela existe no homem, especialmente, pela conjunção do bem e da verdade, isto é, pelo amor à Divina Verdade da Revelação e pela vida de acordo com essa Verdade. Só isso pode produzir a conjunção com Deus. Conjunção que se efetua como resultado da tentação e da vitória sobre os males em que nascemos. Esta paz é descrita nos Escritos como comparável à “manhã ou aurora no verão, quando, tendo passado a noite, todas as coisas da terra começam a viver de novo com o levantar do sol”, quando a fragrância da vegetação aumenta e se espalha, com a brisa que desce do céu, e a doce temperatura vernal dá fertilidade ao campo e prazer à mente dos homens; e isto porque a manhã ou aurora no tempo da primavera corresponde ao estado de paz com os anjos do céu (A. C. 289).
Tal estado de alegria interna só pode emanar do cumprimento em nós da significação espiritual de nosso texto: “Bendito o Rei que vem em nome do Senhor; paz no céu e glória nas alturas”. Este estado não provém de nenhum desejo humano. Tem sua origem acima de todas as ambições mundanas, as quais, comparativamente, nada valem. Sua fonte é um estado de feliz recepção do Senhor em Sua Vinda, e de Sua Glorificação realizada para o bem de nossa raça. “Bendito seja o Rei”, isto é, “bendito seja o Senhor nosso Salvador”. Bendita seja a Divina Verdade de Sua Palavra que dá o poder de resistir ao mal e vencer o pecado.
Se recebermos estas palavras sinceramente, então desejaremos conhecer aquela verdade e compreendê-la. Não nos satisfaremos com a sua simples existência nas páginas da Revelação — como uma luz no meio das trevas. Desejaremos tirá-la daquelas páginas para que a luz brilhe em nossas próprias mentes, para termos o Senhor vivamente presente em nós, a fim de que Ele efetue a nossa própria redenção e salvação. Nem nos contentaremos com um mero conhecimento e coleta intelectual da verdade. Não descansaremos enquanto não encontrarmos um meio de aplicar aquela verdade à vida, para que possamos alcançar a percepção das coisas espirituais não só pelo conhecimento teórico, mas também pela experiência espiritual, e assim podermos amar o bem celeste e seus prazeres. Todas as coisas que servem para nos dar um vivo conhecimento do Senhor constituem o que se chama o “Seu Nome”.
Tal atitude abre o íntimo de nossa mente ao Senhor, fazendo-nos receber d’Ele prazer e bem-aventurança, que daí por diante se distribui por todas as fibras de nosso ser. É verdade que não nos tornaremos conscientes dessa felicidade, que é o próprio prazer do céu, enquanto permanecermos na terra. A razão disso é que enquanto vivemos no corpo, mesmo que este prazer celeste exista de fato profundamente escondido nos recessos de nosso coração, os cuidados do mundo e as ansiedades conseqüentes impedem aquela felicidade de ser abertamente manifestada, a não ser como uma espécie de prazer obscuro cuja origem não conhecemos.
Não podemos permanecer toda a vida numa alegria estática constante. Não é esta a felicidade que o Senhor nos prometeu. Mas pela viva recepção do Senhor, como Ele se revelou em Sua Santa Palavra, Ele pode nos conceder a felicidade celeste quando ela existir em nós potencialmente. A causa mesma não a perceberemos aqui neste mundo. Mas conheceremos seus efeitos: uma calma resistência na tentação, o poder de enfrentar e suportar sofrimentos e perdas neste mundo natural sem perturbações internas, um genuíno prazer nas coisas espirituais que se tornam mais preciosas para nós do que todos os outros prazeres, à medida que avançamos na regeneração, e um certo contentamento profundo pelas dispensações da Providência do Senhor.
Estes são os sinais da presença da paz celeste e da felicidade angélica em nós. O Senhor disse a Seus discípulos: “No mundo tereis tribulações”.
E é realmente verdade que as nossas tribulações são mais profundas do que as dos outros, porque nos tornamos mais sensíveis aos valores espirituais. Mas a despeito destas tribulações, conservamos dentro de nós a felicidade celeste. Haverá paz em nosso céu, e glória na mais alta região de nossa mente. Quaisquer que sejam os sacrifícios ou desapontamentos terrenos que tenhamos que enfrentar, haverá acima de tudo, uma alma de paz, espalhando calma sobre toda nossa vida, uma paz que será percebida depois da morte como alegria inefável.
Lembremo-nos de que o Senhor prometeu esta felicidade aos homens. Ele a prometeu à Nova Igreja; pois encontramos na Doutrina Celeste estas palavras: “Neste estado de paz estão para entrar aqueles que são recebidos na Nova Igreja que está sendo estabelecida pelo Senhor!” Esta promessa será cumprida em nós se compreendermos a beleza e o valor dessa felicidade celeste e a procurarmos como “uma pérola de grande valor”.
Se, de coração, “orarmos pela paz de Jerusalém”, então viremos a conhecer a paz “daqueles que a amam”. E a prece de Davi será atendida: “Paz esteja no interior dos teus muros, tranqüilidade no interior dos teus palácios. Por causa de meus irmãos e companheiros eu direi agora: Paz esteja convosco. Por causa da casa do Senhor nosso Deus eu procurarei teu bem”.
Amém.

•   1ª Lição:     Lucas 19, 28-48
•   2ª Lição:     Apocalipse 5
•   3ª Lição:     A. C. 1865